Este talvez seja o post mais longo deste blog, mas necessário.
Apesar do título auto-concedido de cidade das mangueiras, repetido, irrefletidamente, há décadas, a realidade mostra que a capital do Pará é já de muito uma das lanterninhas nacionais no quesito arborização.
O déficit de árvores por habitante foi apontado já na década de 70, por meio de um estudo já apontado neste blog. E era ainda uma época de jardins, quintais, e várias áreas cobertas de vegetação cercando o perímetro urbano.
A Rodovia Augusto Montenegro, hoje mais parecida com uma avenida, por exemplo, cortava uma mata fechada, região hoje totalmente tomada por condomínios, empresas e invasões.
Quem chega a Belém de avião pode observar que no entorno da cidade, além das ilhas que vem se mantendo a salvo da predação, aparentemente por descuido, restaram apenas as manchas verdes do Parque do Utinga, uma pequena reserva ao lado do conjunto Médici, os terrenos da aeronáutica, além do Bosque, do Museu Goeldi e das praças na região central.
A expansão desordenada da cidade, enquanto aumentava exponencialmente a área construída, custou-nos o desaparecimento daquelas matas e quintais, resultando em elevação da temperatura e diminuição da ventilação. Notícia recente dá conta de que os níveis de temperatura e baixa umidade do ar chegaram a um patamar inédito.
Daí ter a arborização das ruas crescido tanto em importância. Mas como avançar num amplo projeto de arborização, se Belém mal dá conta de manter o que uma gestão de mais de cem anos atrás lhe legou?
Além do aspecto estético, esses antigos administradores entendiam que uma cidade situada em tal latitude precisava de densa cobertura vegetal para atenuar o tórrido calor e a cegante luminosidade. Já as administrações municipais mais recentes têm se contentado em tratar da arborização como mera figura de marketing, cada vez mais difícil de sustentar na realidade (a logomarca do governo local atual pretende ser uma mangueira).
Os prefeitos se sucedem, gasta-se tinta e saliva discutindo as espécies mais apropriadas e nada de realmente sério nessa área vem sendo feito há décadas.
Na verdade, os prefeitos da virada do século foram os responsáveis pela única área de Belém que pode se considerar verdadeiramente arborizada (aliás, única também nos quesitos: calçadas niveladas e esgotamento sanitário), o chamado quadrilátero das mangueiras, ao qual a cidade deve a sua imerecida fama. Este, apesar do nome, envolve ruas também plantadas com acácias, oitizeiros, benjaminzeiros e amendoeiras, compreendendo o perímetro entre a Presidente Vargas e as principais avenidas, ruas e travessas dos bairros de Nazaré, Batista Campos e São Brás. Nos outros bairros a presença de árvores é bem menor, estando elas ainda mal distribuídas, plantadas erraticamente, ao sabor dos caprichos dos moradores, que muitas vezes se equivocam na escolha das espécies.
Para um pedestre e antigo morador do tal quadrilátero, é fácil observar que houve perda considerável de árvores neste perímetro, perdidas por morte morrida ou matada. Algumas tombaram em um vendaval ao qual ficaram mais vulneráveis por podagens mal feitas, outras, vítimas de parasitas ou veneno, comidas por cupins, regadas por urina, encurraladas por fios, canos, entulho e lixo.
A prefeitura vem replantando, é verdade, novas mudas no lugar das árvores perdidas mais recentemente. Muitas delas não vingam, já que plantas pequenas são presas fáceis de predadores. E a lista destes é grande. Mas não está dando atenção aos trechos em que, após a perda, tapou-se a cova onde a árvore estava plantada. É assim que nesse perímetro foram aparecendo tantos horríveis clarões, trechos de calçada descarnada, que a grande legião de pedestres belemitas conhece muito bem e evita o quanto pode, com cada vez menos alternativas de sombra.
As sucessivas prefeituras também colaboram para isso, quando na reforma do passeio de ruas e praças, passam por cima de antigos canteiros sem árvores ou já fechados. Agora mesmo, no projeto de nivelamento das calçadas que a prefeitura vem realizando na José Malcher, Magalhães Barata e Brás de Aguiar não se aproveitou a oportunidade para reconstituir o renque de mangueiras que essas avenidas perderam ao longo dos anos, reabrindo covas há muito cimentadas, numa demonstração de que os diferentes órgãos da administração municipal trabalham desarticulados entre si e com os outros órgãos de alguma maneira afetados à arborização, como Rede Celpa, Cosanpa, Telemar e Detran.
A desarticulação atinge, de novo, as insuficientes equipes responsáveis por plantio e abertura de canteiros. Cito dois exemplos já antigos, que continuam se reproduzindo. Sei, que o dono de um estacionamento que funcionava próximo ao palacete Bolonha foi autuado e multado pela derrubada da mangueira que ficava em frente ao seu estabelecimento. Mas a cova fechada nunca foi reaberta, nem outra árvore foi até hoje plantada no lugar onde, depois, foi construída uma casa noturna e hoje é um buffet infantil, no que se tornou mais um ponto de desmangueirização perene. Um outro exemplo desses é de um dos primeiros casos de punição por mangueiricídio, já há pelo menos duas décadas, na Gentil, em frente à extinta loja O Ganha Pouco. Na época o proprietário foi multado, mas a calçada permanece até hoje careca. Essa é uma ocorrência comum, que conta com o desinteresse conivente da população, especialmente daqueles motorizados, munidos de película e ar-condicionado. Pensei que essa indiferença estivesse mudando quando soube do protesto de populares na Pedro Álvares Cabral, onde dezenas de oitizeiros tombaram para o alargamento da avenida. Mas a manifestação tinha a ver exclusivamente com a conversão da via em mão única. Pela perda das árvores, única pincelada de verde naquele trecho favelizado, nenhuma lágrima.
Entre tantas e tantas outras, mangueiras também foram retiradas na Gentil, já próximo à José Bonifácio, quando estava sendo construído o prédio que atualmente abriga a SEFA, agora é como se nunca tivessem ali existido.
Sou testemunha de que o órgão do meio ambiente começou no ano passado um trabalho de rearborização lá pela Dr. Moraes. Em poucos metros se observou uma resistência quase generalizada de moradores e comerciantes. Na quadra entre Nazaré e Braz de Aguiar, uma empresa que merece os maiores elogios pela caprichosa recuperação do palacete onde funcionou o colégio Rui Barbosa, conseguiu licença para retirar um pé-de-manga mal ele tinha sido fincado na calçada em frente. Alegaram que a árvore iria impedir a visão do prédio tombado. Ora, ela, na verdade, iria reconstituir o cenário original de cem anos atrás, mais completo e bonito quando estivesse sombreado pela copa da mangueira. A arborização nesse trecho, aliás, deveria estar tão tombada, quanto o edifício.
O trabalho que começou tímido não parece ter prosseguido. Pergunto, que tal continuar reabrindo as covas, onde for possível? Muitas administrações foram indiferentes à questão e permitiram a construção de garagens na direção das antigas mangueiras, mas mesmo assim há espaço de sobra para realizar essa reposição sem obstruir o acesso às garagens. Além dos notórios benefícios ambientais para a cidade como um todo, do refrigério para grande maioria da população, que é pedestre e enfrenta diariamente a suadeira nos escaldantes caminhos de Belém, o verde tem o poder adicional de amenizar a feiúra de tantos prédios públicos e particulares em Belém, retocados à luz filtrada pelas folhagens. Devemos às árvores, aliás, boa parte da dignidade das nossas avenidas.
Aproveito para registrar, entre tantas perdas, algumas que me ocorrem no momento, e sugerir o plantio de amendoeiras no lugar das centenárias árvores dessa espécie que pareciam dois grandes guarda-sóis na frente do antigo colégio “12 de Outubro”, agora Ideal, cujas covas estão devidamente cimentadas, e a mangueira que ficava em frente de onde agora é uma lavanderia expressa, na Benjamim, entre Braz de Aguiar e Gentil. Tenho certeza que cada amigo das árvores e de Belém tem uma longa lista para recomendar.
Ao lado desse esforço de reconstituição seria o momento de continuar o trabalho daqueles antigos administradores, estendendo a arborização aos trechos periféricos de avenidas como Gentil, Conselheiro, Dr. Moraes, Mundurucus, Pariquis, Serzedelo, Alcindo Cacela, Pe. Eutíquio, etc..., chegando a zonas com quase nenhuma cobertura vegetal.
Pergunto ainda, porque não se arboriza a calçada que circunda o canteiro central da Doca, avenida que é um braseiro nu exposto à radiação, onde tanta gente faz suas corridas e caminhadas. Ali, mesmo às primeiras horas da manhã e depois que o sol já se pôs ainda ronda o bafo das horas de calor mais intenso. Soube através do Jornal do Lúcio Flávio Pinto que havia a intenção de arborizá-la desde a sua abertura, na gestão do prefeito Nélio Lobato. O projeto, entretanto, sucumbiu a um interminável falatório e o tempo e a inércia se encarregaram de dar a coisa como resolvida. No Rio há exemplos de canais circundados por árvores, como o do Rio Maracanã, com flamboyants plantados pelo lado de dentro do canal e a avenida Albuquerque, no Leblon, com a sombra cerrada de imensos benjaminzeiros, além do Jardim de Alá, entre Ipanema e Leblon. E não me refiro só ao canteiro central da Doca, mas também às calçadas laterais, que a população pedestre usa para o seu ir e vir. Aliás, porque não se arborizam também as calçadas de avenidas com intenso trânsito de pedestres como a Almirante Barroso e a Duque, do lado em que o passeio é mais largo, e cuja arborização atual se restringe ao canteiro central. Gostaria também de saber como deve proceder o cidadão que queira sugerir o plantiu ou replantiu de árvores na sua calçada. Os belenenses telefonam para a SEMMA mais para pedir derrubadas, mas sejamos otimistas, esses defensores de uma Belém mais verde devem existir.
Um telejornal mostrou recentemente que em Londrina, moradores e donos de estabelecimentos comerciais são obrigados, por lei, a plantar uma árvore na calçada em frente à sua casa ou negócio. Ótimo exemplo a ser seguido por Belém. São as árvores, na estação quente, que tornam a cidade transitável. Seria impossível o comércio da Brás de Aguiar sem a sombra das mangueiras. Já o Umarizal, outro raro bairro belenense com boa oferta de serviços, não é convidativo ao pedestre, com calçadas desniveladas e sem árvores é área que se percorre de carro. Este pouco movimento nas calçadas é atrativo, por outro lado, aos assaltos. Em Belo Horizonte, na zona sul do Rio de Janeiro e em bairros com melhor qualidade de vida de São Paulo, Goiânia ou Curitiba, a arborização é um índice de valorização imobiliária. Vide os tão decantados bairros da Savassi em BH, os Jardins, em São Paulo, a zona sul do Rio de Janeiro.
Pra terminar: gostaria de fazer o obituário tardio de uma comunidade de árvores que sombreavam a subida da Tiradentes, entre a Doca e a Quintino. Ali, o condomínio de três edifícios botou em baixo algo como dezoito amendoeiras com pelo menos vinte anos de idade, e que faziam daquele trecho uma espécie de bosque, oásis no meio da paisagem semi-desértica do Reduto/Umarizal. Tenho a impressão de que as árvores estavam num recuo da calçada, em terreno pertencente aos prédios que, portanto, podiam fazer delas o que bem entendessem. A alegação para a derrubada, segundo soube, era de que a sombra favorecia assaltos e que morcegos atraídos pelas árvores invadiam os apartamentos. Me pergunto se toda aquela gente que mora ali esteve de acordo com o sacrifício das amendoeiras e se nenhuma outra solução menos drástica foi cogitada. O fato, numa época de estardalhaço em torno do aquecimento global, dá uma idéia do distanciamento com que mesmo setores mais informados da população ainda percebem a questão. Ergue-se uma espessa barreira entre as informações despejadas todos os dias pela mídia – e que ninguém em sã consciência desaprova – e o dia a dia dos cidadãos, sinal da insensibilidade com a vida coletiva, uma faceta do individualismo anárquico, que grassa em Belém. Esse egoísmo individual, talvez, já seja entendida pelos belenenses como um traço cultural que nos distingue, tanto como a informalidade e o humor carioca, o tradicionalismo gaúcho, a discrição mineira. Uma individualismo orgulhoso, triunfante a corroer as esperanças de quem sonha com uma cidade melhor para todos.
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