terça-feira, 26 de novembro de 2013
A mais longa viagem: rumo ao próprio coração - Leonardo Boff
Observava o grande conhecedor dos meandros da psiqué humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o Todo.
Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las.
Indo diretamente ao assuto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento.
Mais que idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida.
O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos, surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e inteligente, Todos nós esamos vinculados a esta tradição primeva.
O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco em Lampedusa face aos imigrados africanos criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadeer e de chorar.
Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se começou resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50).
Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passa a vida, a Humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar a inteligência emoconal sem o que não construíremos uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor.
Um dado entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psiqué humana. Partindo de Aristótles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura( chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher, Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo.
O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido tambem pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano.
O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.
Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito.
Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As Confissões testemunha com comovido sentimento:
Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei.Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não respousar em ti (livro X, n.27).
Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigíla. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso humano e divino.
Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes 2002.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Pelo Direito de usar meu O'
Nasci em uma família cujas origens ainda não conseguimos esclarecer: seria francesa? seria portuguesa?
Pelo menos um historiador paraense diz que a família O' de Almeida é originária de Salvador, Bahia.
O fato é que crescemos tendo que esclarecer e explicar o O' de nosso nome composto O'de Almeida.
Outro dia descobrimos um ramo da família com uma escrita diferente: eles são "do O'de Almeida", com raízes em Belém. Estaríamos nós do ramo de Antônio O' de Almeida a grafar incorretamente o nome?
Isto será trabalho para quando o tempo deste seja o mesmo do lazer.
Aliás, em Belém, a família O' de Almeida registra o nome de duas vias e uma praça: a Rua O' de Almeida, em homenagem a Antônio O'de Almeida, não o pai, mas seu filho, que foi intendente (prefeito) de Belém. A sua irmã Teodósia se casou com Lauro Sodré, duas vezes governador do Pará e várias senador. Os filhos de Lauro Sodré fundaram o Botafogo Football Club, mas não ficaram conhecidos pelos seus nomes O'de Almeida, mas pelo Sodré. Aliás, em quase todos os registros históricos no Rio, onde moraram, e do Botafogo relacionados à Emmanuel e Benjamin(o Mimi, grande artilheiro) se intitulam "de Almeida Sodré" e não "O'de Almeida Sodré". A passagem Vereador Emanoel O'de Almeida e a praça Emanoel O'de Almeida são em homenagem a meu pai (1930-1996), fotógrafo, jornalista e vereador (de 1976 a 1996).
Mas, voltando ao assunto, desde que me entendi por gente percebi que temos problemas com o O'. Parece incrível, mas o O' é como se fosse invisível ou uma grande oportunidade para as pessoas demonstrarem como são atenciosas e espertas para perceberem que o O' é uma abreviação. Então, tomem a me chamar de Mauro de Almeida, ou Mauro Oliveira de Almeida. Chegam até a dizer Mauro "O' de Oliveira" (é muito perspicaz o ser humano). Alguns primos resolveram capitular, simplesmente excluíram o O' da sua vida. Mas, eu não.
Como hoje em dia sou um homem público, em qualquer evento que me chamam para falar ou palestrar, 99% das vezes meu O' é excluído. Vai daí que começo sempre lembrando que a única herança que meu pai me deixou foi meu nome e que por isso tenho o dever de lutar por minha própria existência. Normalmente, isso serve para quebrar o gelo na minha fala, já que as pessoas recebem como uma coisa engraçada. Mas, elas não sabem o que é passar décadas corrigindo o nome. Tentei ver se a numerologia me socorria, quem sabe mudando a estrutura, o nome se tornasse até mais forte. Nada. Forte mesmo é o O' de Almeida, numerologicamente falando.
O pior é que, agora, na ditadura digital, o apóstrofo (sim, reconheço que essa parte é difícil, afinal o apóstrofo, segundo o Houaiss, é um sinal diacrítico freq. em forma de vírgula voltada para a esquerda, mas tb. reto, que, alceado a um nível superior ao das letras minúsculas, serve para indicar a supressão de letra(s) e som(ns) - como, p.ex., mãe-d'água, Vozes d'África etc.- não é o que podemos chamar de uma coisa comum e também não parece estar cumprindo a sua função de acepção suprimindo alguma parte do nome que viria depois) não é reconhecido como um caractere válido. Ou seja, já era meu O' na identidade, carteira funcional, título de eleitor, passaporte. Mas, não me rendo.
Fico pensando naquelas pessoas que tem nomes bem mais complicados, como meu amigo Stoessel, ou o Wandenkolk Pasteur, deputado federal pelo Pará (como será que ele pede voto para o interiorano humilde?).
Mas, tal qual a Scarlett O'Hara (olha o apóstrofo aí de novo) e suas frases de efeito em "E o vento levou", enquanto vida tiver "jamais passarei fome outra vez". Bem, isso espero também, mas "jamais deixarei de lutar pelo direito de usar o meu O'", pois "amanhã será outro dia" e certamente terei que lutar pela sua existência, pois, uma coisa é certa, sem meu O' eu não sou ninguém.
A transfiguração na morte - Leonardo Boff
O Dia dos Mortos, 2 de novembro, é sempre ocasião para pensarmos na morte. Trata-se de um tema existencial. Não se pode falar da morte de uma maneira exterior a nós mesmos, porque todos nós somos acompanhados por esta realidade que, segundo Freud, é a mais difícil de ser digerida pelo aparelho psíquico humano. Especialmente nossa cultura procura afastá-la, o mais possível, do horizonte, pois ela nega todo seu projeto assentado sobre a vida material e seu desfrute etsi mors non daretur, como se ela não existisse.
No entando, o sentido que damos à morte é o sentido que nós damos à vida. Se decidimos que a vida se resume entre o nascimento e a morte, e esta detém a última palavra, então a morte ganha um sentido, diria, trágico, porque com ela tudo termina no pó cósmico. Mas se interpretarmos a morte como uma invenção da vida, como parte da vida, então não a morte mas a vida constitui a grande interrogação.
Em termos evolutivos, sabemos que, atingido certo grau elevado de complexidade, ela irrompe como um imperativo cósmico, no dizer do Prêmio Nobel de Biologia Christian de Duve, que escreveu uma das mais brilhantes biografias da vida sob o título Poeira vital (1984). Mas ele mesmo assevera: podemos descrever as condições de seu surgimento, mas não podemos definir o que ela seja. Na minha percepção, a vida não é nem temporal, nem material, nem espiritual. A vida é simplesmente eterna. Ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte. Transformamo-nos pela morte, pois ela representa a porta de ingresso no mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo mas só a eternidade.
Consintam-me testemunhar duas experiências pessoais de morte, bem diversas da visão dramática que a nossa cultura nos legou. Venho da cultura espiritual franciscana. Nos meus quase 30 anos de frade, pude vivenciar a morte como São Francisco a vivenciou.
A primeira experiência era aquela que, como frades, fazíamos toda sexta-feira, às sete e meia da noite: “o exercício da boa morte”. Deitávamo-nos na cama, com hábito e tudo. Cada um se colocava diante de Deus e fazia um balanço de toda a sua vida, regredindo até onde a memória pudesse alcançar. Colocávamos tudo, à luz de Deus e aí, tranquilamente, refletíamos sobre o porquê da vida e o porquê dos zigue-zagues deste mundo. No final, alguém recitava em voz alta no corredor o famoso salmo 50, o Miserere, no qual o rei Davi suplicava a Deus o perdão de seus pecados. E também se proclamavam as consoladoras palavras da epístola de São João: “Se o teu coração te acusa, saiba que Deus é maior do que o teu coração”.
Éramos, assim, educados para uma entrega total, um encontro face a face com a morte diante de Deus. Era um entregar-se confiante, como quem se sabe na palma da mão de Deus. Depois, íamos alegremente para a recreação tomar algum refresco, jogar xadrez ou simplesmente conversar. Esse exercício tinha como efeito um sentimento de grande libertação. A morte era vista como a irmã que nos abria a porta para a Casa do Pai.
A outra experiência diz respeito ao dia da morte e do sepultamento de algum confrade. Quando morria alguém, fazia-se festa no convento, com recreação à noite com comes e bebes. O mesmo ocorria depois de seu sepultamento. Todos se reuniam e celebravam a passagem, a páscoa e o natal, o vere dies natalis (o verdadeiro dia do nascimento) do falecido. Pensava-se: ele na vida foi, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de nascer em Deus. Por isso havia festa no céu e na terra. Esse rito é sagrado e celebrado em todos os conventos franciscanos.
O frade que deixou este mundo entrava na comunhão dos santos, está vivo, não é um ausente, apenas um invisível. Há celebração mais digna da morte do que esta inventada por São Francisco de Assis, que chamava a todos os seres de irmãos e irmãs e também a morte de irmã?
A percepção da morte é outra. As pessoas são induzidas a conviver com a morte, não como uma bruxa que vem e arrebata a vida mas como a irmã que vem abrir a porta para um nível mais alto de vida em Deus.
Cada cultura tem a sua interpretação da morte. Estive há tempos entre osmapuches,no sul da Patagônia argentina, falando com os lomkos, os sábios da tribo. Eles têm bem outra compreensão da morte. A morte significa passar para o outro lado, para o lado onde estão os anciãos. Não é abandonar a vida, é deixar seu lado visível para entrar no lado invisível e conviver com os anciãos. De lá acompanham as famílias, os entes queridos e outros próximos, iluminando-os. A morte não tem nenhuma dramaticidade. Ela pertence à vida, é o seu outro lado.
Poderíamos passar por várias outras culturas para conhecer-lhes o sentido da vida e da morte. Mas fiquemos no nosso tempo moderno. Há um filósofo que trabalhou positivamente o tema da morte: Martin Heidegger. Em sua analítica existencial afirma que a condição humana, em grau zero, é a de que somos um ser no mundo, este não como lugar geográfico mas como o conjunto das relações que nos permitem produzir e reproduzir a vida. A condition humaine é estar no mundo com os outros, cheios de cuidados e abertos para a morte. A morte é vista não como uma tragédia e, sim, como a derradeira expressão da liberdade humana, enquanto último ato de entrega. Essa entrega sem resto abre a possibilidade para um mergulho total na realidade e no Ser. É uma espécie de volta ao seio de onde viemos como entes mas que buscam o Ser. E finalmente, ao morrer, somos acolhidos pelo Ser. E aí já não falamos porque não precisamos mais de palavras. É o puro viver pela alegria de viver e de ser no Ser. Para o homem religioso, este Ser não é outro senão o Supremo Ser, o Deus vivo que nos dá a plenitude da vida.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro 'Vida para além da morte' ( Vozes, 2012)
O júbilo e a hipocrisia - Mauro Santayana
O ministro Joaquim Barbosa escolheu a data de 15 de novembro, Proclamação da República, para ordenar a prisão e a transferência para Brasília, em pleno feriado, e sem carta de sentença, de parte dos réus condenados pela Ação-470.
O simples fato de saber que os “mensaleiros” — como foram batizados pela grande mídia — viajaram algemados e em silêncio; que estão presos em regime fechado, tomando banho com água gelada, e comendo de marmita, encheu de regozijo parte das redes sociais.
É notável o ensandecido júbilo, principalmente nos sites e portais frequentados por certa minoria que se intitula genericamente de “classe média”, e se abriga nas colunas de comentários da mídia mais conservadora.
Parte da população, a menos informada, é levada a comemorar a prisão do grupo detido neste fim de semana como se tratasse de uma verdadeira Queda da Bastilha, com a ida de “políticos” “corruptos” para a cadeia.
Outros, menos ingênuos e mais solertes, saboreiam seu ódio e tripudiam sobre cidadãos condenados sob as sombras do “domínio do fato”, quando sabem muito bem que dezenas, centenas de corruptos de outros matizes políticos — alguns comprovadamente envolvidos com crimes cometidos anos antes desse processo — continuam soltos, sem nenhuma perspectiva de julgamento.
Esses, para enganar os incautos, já anteveem a queda da democracia. Propõem a formação de grupos de “caça aos corruptos”, desde que esses tenham alguma ligação com o governo. Sugerem que cidadãos se armem. Apelam para intervenções golpistas. Torcem para que os presos de ontem, que estejam doentes morram, ou que sejam agredidos por outros presos.
Ora, não existe justiça sem isonomia. Já que não se pode exigir equilíbrio e isenção de quem vive de manipular a opinião pública, espera-se que a própria população se manifeste, para que, na pior das hipóteses, o furor condenatório e punitivo de certos juízes caia, com a sutileza de um raio lançado por Zeus, sobre a cabeça de outros pecadores.
Há casos dez, vinte vezes maiores, que precisam ser investigados e julgados. Escândalos que envolvem inclusive a justiça de outros países, milionários e recentes ou que se arrastam desde a época da aprovação do instituto da reeleição — sempre ao abrigo de gavetas amigas, ou sucessivas manobras e protelações, destinadas a distorcer o tempo e a razão, como se estivéssemos em órbita de um buraco negro.
Seria bom, no entanto, que tudo isso se fizesse garantindo o mais amplo direito de defesa, no exclusivo interesse da Justiça. Ou a justiça se faz de forma equânime, desinteressada, equilibrada, justa, digna e contida, ou não pode ser chamada de Justiça. .
domingo, 15 de setembro de 2013
Impactos de um suicídio - JAIRO BOUER
O ESTADÃO - 15/09
A morte do baixista Champignon, de 35 anos, no início da última semana, trouxe o tema do suicídio novamente para o noticiário. Além do triste desfecho, alguns aspectos dessa história chamam a atenção. Em primeiro lugar, não parece mera coincidência o fato de três músicos que se conheciam - e eram praticamente de uma mesma geração - terem morrido de forma dramática em um intervalo tão curto de tempo. Outro ponto importante: essas mortes todas acontecem entre ídolos dos jovens, faixa da população em que está havendo um crescente número de casos de suicídio.
A primeira reação de muitos fãs ao saber, logo nas primeiras horas da madrugada da última segunda-feira, da morte de Champignon deve ter sido a incredulidade por mais um músico dessa turma morrer. Após a overdose de cocaína que matou Chorão (parceiro na banda Charlie Brown Jr. e grande amigo do baixista), em março, e o suicídio de Peu Sousa (ex-parceiro na banda Nove Mil Anjos), que foi encontrado enforcado em sua casa na Bahia, em maio, a morte do baixista podia parecer parte de uma sequência trágica de eventos.
De fato, alguns estudos apontam uma possibilidade maior de suicídio em pessoas que já conviveram com esse drama. Assim, filhos e parceiros de pessoas que cometeram suicídio estariam mais expostos ao risco. É como se "vivenciar" intensamente a perda de alguém próximo por essa causa tornasse o suicídio uma possibilidade mais concreta na vida das pessoas.
Na maioria das vezes, existe algum transtorno emocional ou psiquiátrico por trás do planejamento da própria morte. A depressão aparece como uma das principais causas de suicídio em todo o mundo. Talvez a experiência (perda de alguém de forma trágica) e os sintomas depressivos não estejam assim tão dissociados. Assim, quem conviveu com o suicídio pode carregar a depressão por anos a fio e, em algum momento da vida, por algum tipo de "descompensação", acaba tendo potencializado o risco de se matar. Pelas notícias publicadas na última semana, talvez cobranças e críticas que vinham sendo feitas pelos fãs ao músico por assumir o posto de vocalista em uma nova banda, ou, ainda, dívidas financeiras, teriam sido a gota d'água. Mas, nesse ponto, essas considerações são mera especulação.
Outro aspecto que chama a atenção é que o músico era jovem e fazia sucesso entre os mais novos. Artigos publicados na revista científica Lancet, em 2012, chamavam a atenção para o suicídio como um problema crescente de saúde pública entre os jovens. Dados da publicação apontavam o suicídio como segunda principal causa de mortes entre jovens em todo o mundo. Entre as garotas de 15 a 19 anos, foi considerado a principal causa de morte. Entre os garotos dessa faixa de idade, foi a terceira causa, atrás dos acidentes de trânsito e dos homicídios. Ainda de acordo com a Lancet, de 1980 a 2000, a taxa de suicídio aumentou cerca de dez vezes entre os jovens: de 0,4 para 4 em cada 100 mil pessoas. No Brasil, estima-se de 20 a 25 suicídios por dia, e se supõe que o número de tentativas seja 20 vezes superior ao de mortes.
Identificar fatores de risco talvez seja o primeiro ponto importante para a redução das tentativas de suicídio. Alterações agudas de comportamento, sintomas depressivos, quadros psiquiátricos graves, história recente de perdas trágicas, grandes problemas familiares, inconformismo com o fim de relacionamento amoroso, grande desmoralização por questões financeiras ou sociais e problemas crônicos de saúde são alguns desses fatores.
Alguns trabalhos recentes mostram que, em tempos em que tudo acontece nas redes sociais, declarações e publicações em páginas pessoais poderiam dar pistas para amigos e parentes das intenções de alguém que enfrenta sérias dificuldades. Estar atento a esses sinais poderia ajudar a evitar suicídios.
sexta-feira, 22 de março de 2013
Caminhos para enfrentar o Frankenstein urbano - WASHINGTON NOVAES
O ESTADÃO - 22/03
Muitos leitores deste jornal devem ter tomado um susto na quinta-feira da semana passada ao lerem a mais do que contundente entrevista do respeitado arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, dono de um currículo admirável, que inclui, entre muitas criações, a participação no projeto de construção de Brasília, a rede de hospitais Sarah e, com Darcy Ribeiro, a criação do conceito dos centros de educação integral, os Cieps, para manter o aluno na escola durante todo o dia, fornecer alimentação, assistência médica e psicológica, esporte e muito mais - além de um sistema de ensino exemplar.
Lelé foi conciso e contundente na entrevista. "Cidades como São Paulo são um grande Frankenstein", disse ele, apontando o "descontrole geral", a arquitetura "correndo atrás da imagem", com os arquitetos "a reboque dessas pressões".
"Todo mundo quer morar onde convém e o mercado se aproveita disso para fazer um adensamento descomprometido com a cidade." Em sua opinião, "não há mais como planejar", até porque "as cidades estão se desintegrando" e "não oferecem soluções". A seu ver, "o arquiteto deveria ser o (médico) clínico da cidade; no entanto, não tem uma visão global e as obras vivem um Frankenstein. A cidade é o maior Frankenstein de todos".
Assustador o diagnóstico. Mas pode piorar se se lembrar que só nos dois primeiros meses do ano mais de 500 mil veículos saíram das fábricas para as ruas (Estado, 7/3) e que o Brasil já é o quarto maior mercado mundial. Que os espaços públicos urbanos, já congestionados ao extremo, só tendem a piorar com o agravamento das inundações - mais frequentes, mais intensas, mais duradouras. Cada enchente causa prejuízo de até R$ 1 milhão e há 749 pontos de alagamento já catalogados, diz estudo do professor Eduardo A. Haddad, da Faculdade de Economia da USP (Agência Fapesp, 15/3). Chuvas com mais de 80 milímetros eram raras; mas só na primeira década deste século foram nove. A Prefeitura promete quatro novos piscinões e enterrar a fiação dos semáforos para que não se apaguem durante os temporais (10/3). Mas como vai fazer, se toda a fiação elétrica em São Paulo chega a 38 mil quilômetros (só há uns 3 mil km enterrados em Higienópolis e imediações) e o custo seria de R$ 100 bilhões? Nova York tem mais de 150 mil km sepultados; a Alemanha, em três anos, passou a parte enterrada de 4,3% para 75%; a Grã-Bretanha, de 1,4% para 81% (Folha de S.Paulo, 24/2).
Não são as únicas soluções urbanas. No pedágio urbano de Londres o motorista tem de pagar mais de R$ 30 por dia para trafegar na área sob controle, e com isso a circulação ali caiu 25% e aumentou a velocidade dos ônibus. A prefeitura vai instalar 1.300 pontos de recarga de veículos elétricos e reduzir em 40% a emissão, por eles, de carbono. Já há muitos pontos de carros compartilhados, onde o usuário paga por hora e divide o custo com quem quiser. Mas quem quer ouvir falar dessas coisas por aqui e se arriscar a perder os votos dos adversários da proposta - como foi o caso da necessária taxa do lixo, depois renegada pelos criadores e revogada pelos sucessores -, embora seja a fórmula que tem dado certo em toda a Europa?
Que diria, então, de soluções mais radicais, como a da cidade de Drachten, na Holanda, que, com seus 50 mil habitantes, instituiu o espaço urbano sem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meio-fio, lombadas elétricas, etc., segundo Antenor Pinheiro, da ANTT (O Popular, 10/3). Um espaço compartilhado por pessoas, automóveis, ônibus e motos em baixa velocidade, bicicletas. Em absoluta paz e harmonia, sem acidentes desde 2003, quando foi implantado, apenas com discretos sinais que indicam a mão de direção. Uma ideia do engenheiro Hans Moderman, falecido em 2008, mas que pode ser replicada numa parte do espaço urbano, se for o caso, em qualquer cidade.
Na verdade, caminhos há. Basta consultar a legislação vigente para verificar o quanto o poder constituído deixa de cumprir - gerando e agravando dramas nas cidades. Um bom exemplo é o da legislação em vigor para novos empreendimentos, obrigatória para todos os Poderes e empreendedores, que, se executada, evitaria ou teria evitado a maior parte dos problemas. É o caso, por exemplo, das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Qualquer administrador público, assim como os Tribunais de Contas da União, dos Estados ou dos municípios, deveria começar seu exame dos processos que lhe chegam à mão pela Resolução n.º 1, de 23/1/1986, que contém uma norma que impediria a execução da maioria das propostas. É o inciso I do artigo 5.º, que obriga o estudo do empreendimento a "contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto". E isso vale para projetos urbanísticos com mais de cem hectares, aterros, rodovias, ferrovias, portos e terminais, oleodutos, gasodutos, emissários de esgotos, projetos agropecuários também com mais de cem hectares. Outras resoluções do Conama incluem o controle de ruídos de indústrias ou veículos e o controle da poluição do ar (que está no centro de uma polêmica paulistana).
Tão importante quanto é o artigo 6.ª dessa Resolução 1/86, que torna obrigatórias "as análises dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas (...), discriminando: os impactos positivos e negativos, diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais". Esta última disposição, por exemplo, quantos benefícios poderia trazer a uma cidade, ajudando a evitar impactos cada vez mais danosos para seus habitantes?
O professor Filgueiras Lima tem razão em suas visões. Mas há como começar a enfrentar o Frankenstein se de fato quisermos.
quarta-feira, 20 de março de 2013
O novo bispo de Roma - Luiz Alberto Gómez de Souza
Quero fazer uma breve nota, depois de ler e ouvir tantas declarações contraditórias. Há uma avalanche de textos e reflexões sobre Francisco e uma estranha superexposição sua na mídia. A sempre lúcida Ivone Gebara denunciou esse grande número de informações da sociedade do espetáculo, que podem ter “o poder de amortizar as mentes e de impedir que perguntas críticas aflorem”. Também muitas das leituras fazem uma análise puramente sociológica ou política, e tratam do fato como fariam com um novo presidente da república ou o novo rei da Holanda (com sua rainha, também argentina!).
Muitos dizem, com intenções ideológicas evidentes, que Francisco, falando dos pobres, retira a bandeira dos governos progressistas da América Latina. Uma grande tolice. Ao contrário, se coloca na mesma onda para exigir justiça social. Essa centralidade do pobre vem lá de trás, da Igreja primitiva e, mais recentemente, do “pacto das catacumbas” de muitos bispos ao final do Vaticano II, em 1965, pedindo uma Igreja despojada e pobre, e foi fortemente afirmada nas reuniões dos bispos da América Latina em Medellín (1968) e em Puebla (1979), com a declaração da “opção preferencial pelos pobres”.
Está, além disso, no centro da teologia da libertação das últimas décadas. Dizem que Francisco não seria favorável a essa teologia, mas ele propõe o que está no coração dela e que vem sendo afirmado nas pastorais sociais e nas comunidades eclesiais de base. É uma alegria ver o novo bispo de Roma confirmar o que tem sido o centro das comunidades cristãs católicas latino-americanas mais evangélicas, comprometidas e espirituais. Os pobres evangelizam, foi dito em Puebla.
O outro ponto que quero realçar é que Francisco se apresentou fundamentalmente como bispo de Roma e, nessa condição, ele é o primeiro entre os bispos, com quem terá de estar em profunda comunhão. Ele era, até então, cardeal arcebispo de Buenos Aires. Agora é antes de tudo, e isso basta, bispo de Roma. O título de cardeal é uma criação histórica de alguns séculos, para aqueles bispos (e mesmo sacerdotes e leigos no passado) que se ligam a Roma, teoricamente como auxiliares, onde tem uma igreja da qual são titulares. São chamados indevidamente de “príncipes da Igreja”, numa acepção de cunho monárquico, anacrônica e duvidosa, sem real sentido evangélico.
Arcebispo é também uma criação para indicar que são bispos à frente de uma província eclesiástica, estrutura agora praticamente em desuso. Essas denominações históricas em nada acrescentam às funções pastorais dos bispos. Oxalá os títulos de cardeal e de arcebispo venham um dia a desaparecer e o colégio dos cardeais possa ser substituído por um colégio dos presidentes das conferências nacionais dos bispos, como a nossa CNBB. Seria uma maneira de limpar a Igreja de títulos nobiliárquicos ou atos administrativos já caducando, e de afirmar a colegialidade real prevista pelo Vaticano II. Além disso, prefiro chamar Francisco de bispo de Roma antes que de papa. Assim, podemos ver melhor os bispos do mundo unidos a seu irmão maior, o bispo romano. É mais eclesial e de uma tradição mais evangélica.
Na Igreja primitiva, o bispo de Roma era o ‘primus inter pares’ entre os patriarcas de Constantinopla, Antioquia e Alexandria. Poderia no futuro, quem sabe, não custa esperar, estar em comunhão com Igrejas articuladas no Conselho Ecumênico das Igrejas. Mas antes dessa praticamente impossível comunhão ecumênica nos nossos dias, intenção provável de João XXIII ao convocar o Vaticano II (depois posta de lado pelos entraves concretos), no momento Francisco é basicamente o bispo primeiro da Igreja Católica Romana e com isso tem o magistério universal em sua Igreja.
Vejo muitas perplexidades em caros amigos da Argentina, diante das posições do provincial dos jesuítas Bergoglio; pelo menos, há que reconhecer seu pesado silêncio durante a ditadura argentina (como o de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial). Há também a insistência de que tem posições conservadoras diante de problemas até agora congelados, como o celibato obrigatório, o uso dos contraceptivos, a moral sexual em geral, a união de homossexuais, o segundo casamento, a ordenação de mulheres e muitos outros. Lembremos que Roncalli, patriarca de Veneza, era um bispo considerado conservador, mas, como João XXIII, transformou profundamente a Igreja e quis pô-la em dia com os “sinais dos tempos” (aggiornamento).
O evangelho deste domingo, o quinto da quaresma, tem uma afirmação de Paulo em sua carta aos Filipenses (3, 13): “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta... que Deus me chama a receber em Cristo Jesus”. Agora não temos mais Bergoglio e seu passado, mas Francisco e seu futuro.
Esperemos os sinais e as decisões de Francisco. Já mostrou humildade e despojamento em suas primeiras manifestações públicas, no seguimento de Francisco de Assis. Ele foi eleito possivelmente a partir de uma crítica à cúria romana. Mas, também, transformar a cúria não basta, ainda que isso seja inadiável. Não são suficientes apenas atos administrativos. Oxalá inaugure um grande diálogo, sem medos nem autocensuras, sobre problemas como os citados acima e muitos outros, alguns já assinalados em 1999 por Carlo Martini, bispo de Milão, outro jesuíta, que tínhamos sonhado como bispo de Roma.
Agora Francisco, quem sabe, não custa esperar, poderia abrir uma reflexão coletiva com tantos temas “disputados”, com liberdade e sem censura, para que os anseios da base da Igreja se exprimam e subam até futuros atos do magistério. Francisco e seus irmãos bispos poderiam recolher desejos que são ditos em voz baixa por leigas e leigos, religiosas e religiosos, teólogas e teólogos, sacerdotes e inclusive outros bispos, para fazer um discernimento – palavra cara aos jesuítas - e para que possamos viver na Igreja, como disse o bom João XXIII, “uma inesperada primavera”. Para realizar isso, não se deveriam reduzir a análise e as práticas a posições ideológicas, ou a classificações próprias de movimentos políticos, porém explicitar uma postura valente de profunda religiosidade e com uma espiritualidade renovada e aberta aos anseios e às carências do mundo de hoje.
*Luiz Alberto Gómez de Souza é diretor do programa de estudos avançados em ciência e religião da Universidade Cândido Mendes.
É possível um exercício do papado diferente - Leonardo Boff
Quarta-Feira, 20 de Março de 2013
A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome.
A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas.
Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas.
Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma. Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade.
A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa. Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos, como a dos jovens a se realizar no Rio.
Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma.
Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas? O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina?
A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação? Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
quinta-feira, 14 de março de 2013
O colapso de sua teologia: razão maior da renúncia de Bento XVI?
Nutro séria suspeita de que o fracasso e colapso do edifício teológico de Bento XVI lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa, “sentir incapacidade de exercer seu ministério”. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar. Por Leonardo Boff
Leonardo Boff
É sempre arriscado nomear um teólogo para a função de papa. Ele pode fazer de sua teologia particular a teologia universal da Igreja e impô-la a todo o mundo. Suspeito que esse foi o caso de Bento XVI, primeiramente enquanto cardeal, nomeado prefeito da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Inquisição) e depois papa. Tal fato não goza de legitimidade e se transforma em fonte de condenações injustas. Efetivamente, condenou mais de cem teólogos e teólogas por não se enquadrarem em sua leitura teológica da Igreja e do mundo.
Razões de saúde e o sentimento de impotência face à gravidade da crise na Igreja o levaram a renunciar. Mas não só. No texto de sua renúncia dá conta da “diminuição de vigor do corpo e do espírito” e de “sua incapacidade” de enfrentar as questões que dificultavam o exercício de sua missão. Por detrás desta formulação, estimo que se oculta a razão mais profunda de sua renúncia: a percepção do colapso de sua teologia e do fracasso do modelo de Igreja que quis implementar. Uma monarquia absolutista não é tão absoluta a ponto de dobrar a inércia de envelhecidas estruturas curiais.
As teses centrais de sua teologia sempre foram problemáticas para a comunidade teológica. Três delas acabaram refutadas pelos fatos: o conceito de Igreja como “pequeno mundo reconciliado”; a Cidade dos Homens só ganha valor diante de Deus passando pela mediação da Cidade de Deus; e o famoso “subsistit” que significa: só na Igreja Católica subsiste a verdadeira Igreja de Cristo; todas as demais Igrejas não podem ser designadas igrejas. Esta compreensão estreita de uma inteligência aguda mas refém de si mesma não tinha a força intrínseca suficiente e a adesão para ser implementada. Bento XVI teria reconhecido o colapso e coerentemente renunciado? Há razões para esta hipótese.
O papa emérito teve em Santo Agostinho seu mestre e inspirarador, objeto aliás de algumas conversas pessoais com ele. De Agostinho assumiu a perspectiva de base, começando com sua exdrúxula teoria do pecado original (se transmite pelo ato sexual da geração). Isso faz com que toda a humanidade seja uma “massa condenada”. Mas dentro dela, Deus por Cristo, instaurou uma célula salvadora, representada pela Igreja. Ela é “um pequeno mundo reconciliado” que tem a representação (Vertretung) do resto da humanidade perdida. Não é necessário que tenha muitos membros. Bastam poucos, contanto que sejam puros e santos. Ratzinger incorporou esta visão. Completou-a com a seguinte reflexão: a Igreja é constituída por Cristo e os Doze Apóstolos. Por isso é apostólica. Ela é apenas este pequeno grupo. Desconsidera os discípulos, as mulheres e as massas que seguiam Jesus. Para ele não contam. São atingidas pela representação (Vertretung) que “o pequeno mundo reconciliado” assume. Esse modelo eclesiológico não dá conta do vasto mundo globalizado. Quis então fazer da Europa “o mundo reconciliado” para reconquistar a humanidade. Fracassou porque o projeto não foi assumido por ninguém e até posto a ridículo.
A segunda tese tirada também de Santo Agostinho é sua leitura da história: o confronto entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Na Cidade de Deus está a graça e a salvação: ela é o único pedágio que dá acesso à salvação. A Cidade dos Homens é construída pelo esforço humano. Mas como já é contaminado, todo o seu humanismo e demais valores não conseguem salvar porque não passaram pela mediação da Cidade de Deus (Igreja). Por isso que ela é eivada de relativismos. Consequentemente o cardeal Ratzinger condena duramente a teologia da libertação, porque esta buscava a libertação pelos pobres mesmos, feitos sujeitos autônomos de sua história. Mas como não se articula com a Cidade de Deus e sua célula, a Igreja, é insuficiente e vã.
A terceira é uma interpretação pessoal que dá do Concílio Vaticano II quando fala da Igreja de Cristo. A primeira elaboração conciliar dizia que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo. As discussões, visando o ecumenismo, substituíram o é pelo subsiste para dar lugar a que outras Igrejas cristãs, a seu modo, realizassem também a Igreja de Cristo. Essa interpretação, sustentada na minha tese doutoral, mereceu uma explícita condenação do cardeal Ratzinger no seu famoso documento Dominus Jesus (2000). Afirma que susbsiste vem de "subsistência", que só pode ser uma e se dá na Igreja Católica. As demais Igrejas possuem “somente” elementos eclesiais. Esse “somente” é um acréscimo arbitrário que fez ao texto oficial do Concílio. Tanto eu quanto outros notáveis teólogos mostramos que este sentido essencialista não existe no latim. O sentido é sempre concreto: “ganhar corpo”, “realizar-se objetivamente”. Esse era o “sensus Patrum” o sentido dos Padres conciliares.
Estas três teses centrais foram refutadas pelos fatos: dentro do “pequeno mundo reconciliado” há demasiados pedófilos, até entre cardeais, e ladrões de dinheiros do Banco Vaticano. A segunda, de que a Cidade dos Homens não tem densidade salvadoradiante de Deus, labora num equívoco ao restringir a ação da Cidade de Deus apenas ao campo da Igreja. Dentro da Cidade dos Homens, se encontra também a Cidade de Deus, não sob a forma de consciência religiosa mas sob a forma de ética e de valores humanitários. O Concílio Vaticano II garantiu a autonomia das realidades terrestres (outro nome para secularização), que tem valor independentemente da Igreja. Contam para Deus. A Cidade de Deus (Igreja) se realiza pela fé explícita, pela celebração e pelos sacramentos. A Cidade dos Homens pela ética e pela política.
A terceira de que somente a Igreja Católica é a única e exclusiva Igreja de Cristo e, ainda mais, que fora dela não há salvação, tese medieval ressuscitada pelo cardeal Ratzinger, foi simplesmente ignorada como ofensiva às demais Igrejas. Ao invés do “fora da Igreja não há salvação” se introduziu no discurso dos papas e dos teólogos “o universal oferecimento da salvação a todos os seres humanos e ao mundo”.
Nutro séria suspeita de que tal fracasso e colapso de seu edifício teológico lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa, “sentir incapacidade de exercer seu ministério”. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar.
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor.
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21734
segunda-feira, 4 de março de 2013
Valentões S/A - MARION STRECKER
FOLHA DE SP - 04/03
É muito mais comum encontrar alguém com coragem de falar no Twitter do que pelas ruas da cidade
Algumas pessoas entenderam pelo meu último artigo que não acredito em psiquiatria. Quero desfazer essa impressão.
Psiquiatria não é questão de fé. Penso que se as pessoas tomam remédio para colesterol alto ou pressão alta, por que não haveriam de tomar para "depressão alta"?
Eu falava que a depressão é um dos motivos que levam as pessoas a mergulhar de cabeça nas redes sociais. O deprimido se isola, e páginas como o Facebook podem ser um bom passatempo. Quer dizer, bom ou mau. Depende.
A depressão é uma doença que afeta algo em torno de 20% da população mundial ao menos uma vez na vida. Vamos olhar para os lados. A doença caracteriza-se pelo isolamento, pela autocomiseração, pela desesperança, pelo autoflagelo.
Depressão não é sinônimo de tristeza. Encarar depressão como um estado de humor e achar que a pessoa pode se curar sozinha é privá-la de ajuda médica. Isso é sério. Suicídio é a pior consequência da omissão de socorro.
Depressão é uma doença biológica ou comportamental. Ou ambas.
Nem toda depressão traz tristeza. Depressão pode trazer irritação e ansiedade, por exemplo.
As doenças psiquiátricas mais populares podem ser subdivididas de acordo com os sintomas em dois grandes grupos: neuroses ou psicoses. Depressão, ansiedade ou pânico estão no grupo das neuroses, enquanto alucinação, delírio ou paranoia estão no grupo das psicoses.
Parece simples? Não é. Não há distinção clara entre casos comuns e problemas mentais severos. E sintomas de neurose e psicose podem surgir simultaneamente.
Se você quer ajudar alguém ou ser ajudado, procure um médico.
Isso posto, posso voltar a falar sobre o comportamento dos usuários de redes sociais.
Minha impressão é que as redes sociais exacerbam certos comportamentos, inclusive psicoses. Sim, estou falando de perda de contato com a realidade.
Todo o mundo pode ser valentão do outro lado da tela do computador. É muito mais comum encontrar um valentão no Twitter do que nas ruas da cidade.
Fiquei boba com a reação à visita ao Brasil da dissidente e blogueira cubana Yoani Sánchez no mês passado. Na vida real, seu primeiro compromisso em solo nacional, que era a projeção de um documentário em Feira de Santana (BA), teve de ser cancelado devido a protestos. Como assim? Impede-se a projeção de um documentário por discordância ideológica? Onde estamos? Brasil? Século 21?
Na internet, o mínimo que ouvi em redes sociais foi um grito retumbante: "Fora, Yoani".
Pessoalmente, sei apreciar os avanços da sociedade cubana e sua importância para o mundo. Mas não compactuo com a falta de liberdade de expressão e com o cerco ao direito de ir e vir. Simples assim.
Não podemos conviver com opiniões discordantes? Por que os gritos de "Fora,Yoani"?
Quando perguntei isso no Twitter, os covardes se calaram.
Então penso que o embate nas redes sociais está educando os cidadãos aos poucos. É um processo longuíssimo e doloroso. Mas, no embate cotidiano, alguma coisa melhor há de surgir. Ah, sim, há de surgir.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Bento XVI: uma renúncia estratégica - Dermi Azevedo
A renúncia inesperada do Papa Bento XVI, em pleno Carnaval, assume, cada vez mais, as características de uma retirada estratégica. Ao ver o barco da Igreja Católica Romana quase à deriva, principalmente nos campos da ética pública e da ética privada, Joseph Ratzinger preferiu optar por viver semi-isolado a sua condição de octogenário.
Não é de agora a intenção de Ratzinger, afirmam fontes vaticanas. Um dos seus maiores amigos, o ex-arcebispo de São Paulo, cardeal Cláudio Hummes, preparou, a pedido do Papa, há cinco anos, um relatório secreto sobre a situação geral da Igreja e suas perspectivas. O documento foi lido na abertura do Sínodo Mundial dos Bispos, no Vaticano e continua mantido sob rigoroso sigilo.
Com base em ampla documentação, o relatório Hummes aponta graves desafios para a atuação do Catolicismo. O principal deles é o avanço do indiferentismo religioso; o segundo é a migração, diante de expectativas não respondidas pela Igreja, de legiões cada vez mais numerosas de católicos para outras confissões cristãs, de matriz pentecostal, em sua maioria, e para outras religiões, como é o caso do Islamismo; o terceiro desafio refere-se à atuação pouco eficaz dos bispos que integram a cúpula eclesiástica para coibir a prática da pedofilia por parte de clérigos; o quarto diz respeito à situação do clero quanto às questões do celibato obrigatório, da impossibilidade da admissão de mulheres ao sacerdócio e das restrições que o Vaticano faz ao controle da natalidade.
No seu relatório, Hummes chama a atenção da cúpula eclesiástica para o avanço de uma espécie de "sentimento de vazio" na sociedade global, caracterizado por uma nouvelle vague decorrente da hegemonia capitalista e da crise das utopias, no pós-queda do Muro de Berlim.
Detalhando um pouco mais esse panorama, os argumentos do cardeal Hummes são reforçados por dados da realidade: na França, o Islamismo já se tornou a religião hegemônica; enquanto velhos templos católicos se deterioram ou são alugados para famílias sem casa de baixa renda (ou são transformados em museus). A República laicista francesa é obrigada a lidar não mais com a disputa de poder com os bispos, mas com questões que (se tivessem acontecido naquela época) deixariam perplexo o rei Luís, como é o caso do uso de burkas pelas mulheres islâmicas, da permissão para a construção de mesquitas e na adoção das normas do Alcorão sobre a família, entre outras.
A preocupação do papa Ratzinger quanto ao pentecostalismo refere-se ao crescimento de um novo modelo de Igreja que adota a chamada "teologia da prosperidade" como referencial teológico e pastoral. Esse modelo baseia-se em um "toma lá dá cá" entre os seus adeptos e Deus, tendo como objetivo o enriquecimento pessoal dos crentes e a cura das doenças, numa perspectiva que desconhece os fatores sócio-econômicos entre as causas da persistência e do avanço dos males sociais (como o desemprego, a violência, as drogas entre outros).
Trunfo jogado fora
A renúncia do Papa coloca em xeque a principal vitória das correntes conservadoras do Catolicismo nos séculos XX e XXI: o enquadramento da Teologia da Libertação quando Ratzinger entrou no consistório para disputar a eleição pontifícia, já contava com pelo menos 50 votos de cardeais contrários à Teologia da Libertação. Essa leitura teológica ainda representa a primeira interpretação não européia da Teologia tradicional com base na realidade dos oprimidos do Terceiro Mundo. Foi trazida, paradoxalmente, da Europa pelo peruano Gustavo Gutierrez e por toda uma legião de bispos e teólogos, com base na Teologia Crítica alemã e nos documentos do Concílio Vaticano II.
Um dos adeptos mais destacados dessa corrente foi o colombiano padre Camilo Torres, que ingressou na guerrilha do ELN (Exército de Libertação Nacional), depois de voltar a seu país, como sociólogo, com doutorado na Universidade de Louvain, na Bélgica. Durante pelo menos 30 anos a Teologia da Libertação alimentou a esperança de milhões de cristãos, que vislumbravam, após mais de 500 anos de colonialismo e de esmagamento dos pobres.
Eleito Papa, Bento XVI tratou de concretizar em nível global a ofensiva conservadora. Seu laboratório anterior havia sido a Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Santa Inquisição) onde havia comandado os processos de expurgo de teólogos como Leonardo Boff e Jon Sobrino. De um momento para outro, a Igreja deixou de ser uma das principais referências para a produção de sentido na sociedade. Entrou em descompasso, mesmo que fosse para polemizar, com a pós-modernidade. Retomou antigos costumes que lhe foram úteis na época da Cristandade, mas que se revelaram incompatíveis com a dinâmica de um mundo em rápida mutação de valores e em plena revolução tecnológica. A linha política adotada pelo Papa afastou da cúpula da Igreja os seus quadros progressistas e a distanciou das massas empobrecidas no mundo.
Corrupção
Por outra parte, Bento XVI tentou impedir, mas não conseguiu, a crescente corrupção nas instituições financeiras do Vaticano. O próprio Instituto de Obras da Religião (como é chamado o Banco Central da Santa Sé) foi apontado publicamente como um paraíso da lavagem de dinheiro oriundo de fontes desconhecidas ou escusas. O papa teve que intervir várias vezes nos órgãos financeiros do Vaticano diante de denúncias de corrupção apresentadas pelos jornais e pelas autoridades italianas. Paralelamente, Bento XVI teve que pagar a conta política dos prejuízos causados à Igreja por causa de indenizações determinadas pela justiça nos casos de pedofilia envolvendo clérigos. A Arquidiocese de Boston, nos EUA, é recordista nesse tipo de despesa.
E o futuro?
O Vaticano e o Papa dispõem de todas as informações sobre a crise que levou Bento XVI à renuncia. A eleição do novo Papa, em março próximo, revelará se a Igreja está mesmo disposta a enfrentar a sua maior crise em dois séculos (XX e XXI) ou se continuará voltada para o seu próprio umbigo.
*Dermi Azevedo é jornalista e cientista político
'Black sites' - Kenneth Maxwell
O Open Society Institute, estabelecido pelo investidor e filantropo George Soros para "promover os direitos humanos e o governo democrático", agora tem alcance mundial e acaba de publicar um relatório assustador sobre as atividades secretas de detenção e extradição não judicial da Agência Central de Inteligência (CIA), desde os ataques terroristas aos EUA em 11 de setembro de 2001.
O relatório "Globalizing Torture" é um estudo detalhado e bem documentado sobre aquilo que o ex-vice-presidente americano, Dick Cheney, descreveu como "o lado escuro", no qual, como ele disse, "temos de viver nas sombras do mundo da inteligência".
Depois do 11 de Setembro, a CIA realizou detenções secretas, e terroristas foram encarcerados em prisões da agência, conhecidas como "black sites", fora dos EUA. Nelas, eram usadas as chamadas "técnicas amplificadas de interrogatório", que envolviam tortura e outros abusos. A CIA também recorria a extradições não judiciais a fim de transferir prisioneiros, sem processo judicial, para prisão e interrogatório em outros países, bem como para a penitenciária administrada pelo Departamento de Defesa americano em Guantánamo. O presidente Teddy Roosevelt, em 1903, adquiriu a base naval de Guantánamo, em Cuba, para os EUA, em caráter perpétuo.
O relatório do Open Society identifica o envolvimento de 54 outros países, alguns dos quais abrigaram prisões da CIA nas quais detentos foram interrogados e torturados. O estudo oferece detalhes sobre 136 casos individuais.
Portugal é um dos países mencionados, por ter permitido o uso de seu espaço aéreo e de aeroportos para voos associados à CIA. Em 2007, um relatório do Parlamento Europeu mencionava 91 escalas em Portugal, em viagens de e para Guantánamo.
Mas Portugal não estava sozinho. E nem foi o pior caso. O "Washington Post" publicou um mapa no qual todos os países envolvidos estão delineados em vermelho.
Excetuada a baía de Guantánamo, a América Latina é notável pela ausência. Greg Grandin, professor de história na Universidade de Nova York, atribui o fato à amarga experiência da América Latina depois do apoio da CIA ao golpe na Guatemala em 1952 e ao consórcio terrorista transnacional da Operação Condor, nos anos 70 e 80, que fez da América Latina o protótipo para a guerra ao terrorismo que Washington empreendeu no século 21.
Mas também agiu como antídoto. Grandin diz que o governo Lula rejeitou "múltiplas" solicitações de Washington para que o Brasil recebesse prisioneiros libertados de Guantánamo. E aponta que Dilma Rousseff foi vítima de tortura pelo regime militar do Brasil, nos anos 70.
KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/94809-black-sites.shtml
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
A explosão de liberdade - Jânio de Freitas
19/02/2013
Na amazônia de textos provocada pela renúncia de Bento 16 há algo mais, e não percebido, do que as especulações, apreciações e, às vezes, notícias. Nunca o jornalismo, tanto impresso como por transmissão, tratou com tamanha liberdade um papado, a personalidade de um papa e a própria Igreja Católica. A despeito da sua riqueza de sentidos pregressos e de implicações presentes, a grandiosidade deste fenômeno é sinal e parte de uma grandeza ainda maior, que é a modificação dos costumes, ainda incompreensível na sua real dimensão --como demonstra o insuspeitado transbordamento de liberdade verbal suscitado por Bento 16, sem dúvida, à sua revelia.
Mesmo entre os "países católicos", o Brasil é a presença mais novidadeira no fenômeno. França, Itália e Alemanha, baluartes do catolicismo e repositórios das correntes mais retrógradas da Igreja, valiam-se da sobriedade e da densidade para permitir-se alguma presença no jornalismo, informativa e analítica, das políticas da Cúria Romana e da alta hierarquia católica nesses países. Isso, desde muito tempo. Nos Estados Unidos, a presença pouco significativa do catolicismo reduziu, quase a zero, o interesse da imprensa americana pelo tema. Ocasionais notícias de relevo, sim, e nada mais.
Na imprensa brasileira, o slogan da moda foi antecipado em muito tempo: "tolerância zero". Desde que posso dar testemunho profissional e pessoal, quando João 23 oxigenou a Igreja com a redescoberta do cristianismo, no Brasil o cardeal Jayme Câmara e seu ponta-de-lança cônego Bessa impuseram uma regra simples: aqui, não!
Mesmo para manter no "Jornal do Brasil" os dois artigos semanais do pensador católico Alceu Amoroso Lima (ou, como também se assinava, Tristão de Athayde), presidente do Centro Dom Vital de estudos católicos, foi uma batalha que, descrita hoje, pareceria invenção barata.
O imenso "doutor Alceu" entregara-se a reflexões com as premissas simpáticas a João 23, como seria próprio da sua condição de maior intelectual católico daquelas décadas de 50 e 60. Apesar dessa estatura, ele e seus correligionários afinal perderam, mas não assisti à sua saída. Perdera antes dele, por aquela e por outras batalhas, estas no nível mais modesto que se limita ao jornalismo.
A grande engrenagem de populismo e culto à personalidade, que deu ao polonês João Paulo 2º a força para o seu ajuste de contas com os regimes comunistas, não incluiu a coerção tradicional praticada pela hierarquia clerical. Nem precisaria. Na maior parte do mundo, os meios de comunicação tornaram-se pequenos pravdas e izvestias para João Paulo 2º, como os dois jornais soviéticos projetaram o culto à personalidade de Stálin. O final penoso de João Paulo 2º e do seu papado estiveram ainda sob o clima dos 23 anos de suas conquistas emotivas. O que fugiu a esse clima avassalador, aventurando-se em alguma reflexão sobre o papado extinto e seus legados, foi muito pouco. E ainda é.
A personalidade Ratzinger do papa Bento 16 e as características do seu papado por certo contribuíram para que se arrebentassem os cadeados. Criaram, talvez, a vontade, mas a transformação da vontade em exercício, com a largueza de liberdade que se concedeu, precisa de outra explicação.
Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas. Escreve na versão impressa do caderno "Poder" aos domingos, terças e quintas-feiras.
Ratzinger e Martini - Wálter Maierovitch
No ano da fé, o papa Ratzinger apontou como causa do seu ato de renúncia aquilo que os geriatras diagnosticam como “síndrome da fragilidade”. Algo inevitável quando, já na estação do inverno, alcançam-se os 85 anos de idade. Não se trata de doença, mas da perda dos vigores físicos e do ânimo, mantido o intelectual. “Não tenho mais forças, me perdoem”, disse.
Poucos acreditam na “síndrome da fragilidade” e no incontido desejo de Ratzinger de voltar aos livros. Quem deseja isso não deixa uma encíclica a caminho do prelo e não declara que continuará a residir nos jardins do Vaticano, no monastério Mater Ecclesiae, recentemente restaurado. Na sua vida sacerdotal e até chegar a papa, Ratzinger sempre esteve perto do poder e participou, com intervenções progressistas, nos trabalhos desenvolvidos no Concílio Vaticano II, obra de reformulação iniciada por João XXIII.
Grande é o elenco das causas de renúncia dadas como reais. Só não é maior ao das críticas por ele “jogar a toalha”. A mais acerba crítica veio de Stanislaw Dziwisz, arcebispo de Cracóvia e ex-secretário do papa Wojtyla: “Da cruz não se desce”.
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Editorial: Cristo traído
Bento XVI pode surpreender nos soberanos 15 dias finais
O pontificado de Bento XVI foi marcado por desacertos e confusões, com destaque para os escândalos dos sacerdotes pedófilos, do Instituto para as Obras Religiosas (IOR), conhecido como Banco do Vaticano, da fuga de documentos e informações a envolver o condenado e perdoado mordomo Paolo Gabriele, do complô de assassinato do papa, transmitido a ele no ano passado pelo monsenhor Luigi Bettazzi e pelo cardeal Paolo Romeo (que desmentiu depois) e pela permanente luta intestina de poder entre alas.
Além disso, Ratzinger desgastou-se por conta própria, por exemplo, ao atacar o islamismo e, por tabela, o profeta Maomé. Ou quando forçou uma reaproximação com os lefebvrianos, com muitos nazifascistas de batina. E ao apressar a santificação do papa Pacelli, que silenciou quando judeus foram aprisionados em Roma e enviados para campos de concentração nazistas. Deve ser consignado que Ratzinger tentou se corrigir. Pregou no Muro das Lamentações e visitou uma sinagoga. As retratações, nos mundos islâmico e judaico, reforçaram as desconfianças, apesar do sustentado em contrário pelas diplomacias.
Não se deve olvidar, no campo dos “desgastes fatais”, como lembra o jornalista e historiador Corrado Augias na sua obra I Segreti del Vaticano, a inicial resistência de Ratzinger em admitir os casos denunciados de pedofilia por parte de sacerdotes e a tentativa, com o cardeal Soldano à frente, de considerar tudo chiachiericcio (conversa mole).
A mudança de atitude só veio depois de duros editoriais no The New York Times, Der Spiegel, El País, Le Monde e La Repubblica. E, lembra Augias, a resistência de Ratzinger cedeu após a publicação, em 9 de abril de 2010, pela Associated Press de uma carta de próprio punho, quando comandava o antigo Santo Ofício, na qual minimizava acusações de pedofilia contra o padre Stephen Kiesle, de Oakland, Califórnia. O reconhecimento e o pedido de perdão, em encontro com algumas vítimas, só aconteceram depois de muita resistência. No IOR, nunca foram cumpridas as ordens de Ratzinger de aplicação das normas antirreciclagem de capitais recomendadas pela União Europeia. A queda de Gotti Tedeschi, presidente do banco, ainda não foi explicada e, no momento, a magistratura italiana investiga a participação do IOR no escândalo do Banco Monte dei Paschi di Siena, um dos mais antigos em atividade no mundo e terceiro maior da Itália.
Ratzinger, como até os coroinhas da outra margem do Rio Tevere sabem, perdeu o controle sobre a Cúria, composta de ministros escolhidos pelo próprio papa para ajudar na gestão da Santa Sé. Nas sombras das “muras leoninas”, é acusado de insistir em posições conservadoras e no discurso sobre o relativismo ético-moral. Isso teria afugentado fiéis, vocações e batismos na Europa. Na América Latina, abriu espaço para seitas evangélicas. O crescimento de católicos só se verificou na África e na Ásia, e isso pelo trabalho de clérigos progressistas e interessados em melhorar as condições materiais e sociais.
Num resumo, e vale para vaticínios (termo derivado de Vaticano), é significativa a carta deixada pelo cardeal emérito de Milão, Carlo Maria Martini, falecido em agosto de 2012: “Há um tempo tinha sonhos sobre a Igreja. Uma Igreja que trilha pela estrada da pobreza e da humildade, uma Igreja independente dos poderes deste mundo… Uma Igreja que dá espaço às pessoas capazes de pensar de maneira mais aberta. Uma Igreja que infunde coragem, sobremaneira naqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje, não tenho mais esses sonhos. Depois dos 75 anos decidi orar pela Igreja”.
Bento XVI deveria ter ouvido o cardeal morto em 2012. Martini pedia uma Igreja independente
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ratzinger-e-martini/
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Para que tem servido o abaixo-assinado pela cassação do registro de psicólogo de Malafaia: (Por Waldir Santos)
1) Colocar o e-mail dos participantes na lista de endereços vendidos pelo site de abaixo-assinados, para empresas de SPAM;
2) Evidenciar a ignorância das pessoas em relação à inutilidade do documento, já que o que vai determinar a decisão do conselho de psicologia são os fatos, argumentos e a interpretação das normas, e não a quantidade de pessoas (ainda mais pessoas não filiadas) que discordam das coisas que ele pensa ou diz pensar. Basta um pedido individual no conselho regional para que o processo se inicie. O conselho federal não tem competência para cassar registros. Ele julga recursos, mantendo ou modificando a decisão dos regionais;
3) Dar publicidade ao pastor e suas ideias. Quem discorda dele jamais será seu seguidor, mas quem concorda com ele está tendo uma chance de conhecê-lo e se tornando seu fã;
4) Dar dá às pessoas a falsa sensação de que estão fazendo alguma coisa contra o que repudiam, o que lhes deixa numa falsa paz com a consciência.
A cassação do direito de exercício da profissão geraria qual consequência, além de ampliar a sua legião de defensores?
Retiraria a sua fonte de sobrevivência?
Impediria que ele continuasse a divulgar seus pensamentos equivocados, invocando a condição de graduado em psicologia?
Se abaixo-assinado valesse, será que ele não faria um com muito mais assinaturas usando seus tolos seguidores?
Ser inscrito no Conselho de Psicologia garante apenas o direito de exercer a profissão, que, é bom que se lembre, ele não exerce. Ele continuará diplomado, com diploma registrado no Ministério da Educação.
As pessoas não percebem que ele está rindo de todos e ganhando mais dinheiro com isso tudo?
Deus hipotético - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
O GLOBO - 17/02
Um religioso dirá que não faltam provas da existência de Deus e da sua influência em nossas vidas. Quem não tem a mesma convicção não pode deixar de se admirar com o poder do que é, afinal, apenas uma suposição. A hipótese de que haja um Deus que criou o mundo e ouve as nossas preces tem sobrevivido a todos os desafios da razão, independentemente de provas. Agora mesmo assistimos ao espetáculo de uma empresa multinacional às voltas com a sucessão do comando do seu vasto e rico império, e o admirável é que tudo – o império, a riqueza e o fascínio dos rituais e das intrigas da Igreja de Roma – seja baseado, há 2000 anos, em nada mais do que uma suposição.
Todas as religiões monoteístas compartilham da mesma hipótese, só divergindo em detalhes como o nome do seu deus. E todas têm causado o mesmo dano, em nome da hipótese. Não é preciso nem falar no fundamentalismo islâmico, que aterroriza o próprio islã . Há o fundamentalismo judaico, com sua receita teocrática e intolerante para a sobrevivência de Israel. O fundamentalismo cristão que representa o que há de mais retrógrado e assustador no reacionarismo americano, e as religiões neo-pentecostais que se multiplicam no Brasil, quase todas atuando no limite entre o curandeirismo e a exploração da crendice. A igreja católica pelo menos dá espetáculos mais bonitos, mas luta para escapar do obscurantismo que caracterizou sua história nestes 2000 anos, contra um conservadorismo ainda dominante. A hipótese de Deus não tem inspirado as religiões a serem muito religiosas.
Há aquela parábola do Dostoiévski sobre o encontro do Grande Inquisidor com Jesus Cristo, que volta à Terra – o filho da hipótese tornado homem – para salvar a humanidade outra vez, já que da primeira vez não deu certo. Os dois conversam na cela onde Cristo foi metido por estar perturbando a ordem pública, e o Grande Inquisidor não demora a perceber que a pregação do homem ameaçará, antes de mais nada, a própria Igreja, a religião institucionalizada e os privilégios do poder. Não me lembro como termina a parábola. Desconfio que se fosse hoje, deixariam o Cristo trancado na cela e jogariam a chave fora.
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Que tipo de Papa - Leonardo Boff
Não me proponho apresentar uma balanço do pontificado de Bento XVI, coisa que foi feito com competência por outros. Para os leitores talvez seja mais interessante conhecer melhor uma tensão sempre viva dentro da Igreja e que marca o perfil de cada papa. A questão central é esta: qual a posição e a missão da Igreja no mundo?
Antecipamos dizendo que uma concepção equilibrada deve assentar-se sobre duas pilastras fundamentais: o Reino e o mundo. O Reino é a mensagem central de Jesus, sua utopia de uma revolução absoluta que reconcilia a criação consigo mesma e com Deus. O mundo é o lugar onde a Igreja realiza seu serviço ao Reino e onde ela mesma se constrói. Se pensarmos a Igreja demasiadamente ligada ao Reino, corre-se o risco de espiritualização e de idealismo. Se demasiadamente próxima do mudo, incorre-se na tentação da mundanização e da politização. Importa saber articular Reino-Mundo-Igreja. Ela pertence ao Reino e também ao mundo. Possui uma dimensão histórica com suas contradições e outra transcendente.
Como viver esta tensão dentro do mundo e da história? Apresentam-se dois modelos diferentes e, por vezes, conflitantes: o do testemunho e o do diálogo.
O modelo do testemunho afirma com convicção: temos o depósito da fé, dentro do qual estão todas as verdades necessárias para a salvação; temos o sacramentos que comunicam graça; temos uma moral bem definida; temos a certeza de que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo, a única verdadeira; temos o Papa que goza de infalibilidade em questões de fé e moral; temos uma hierarquia que governa o povo fiel; e temos a promessa de assistência permanente do Espírito Santo. Isto tem que ser testemunhado face a um mundo que não sabe para onde vai e que por si mesmo jamais alcançará a salvação. Ele terá que passar pela mediação da Igreja, sem a qual não há salvação.
Os cristãos deste modelo, desde Papas até os simples fiéis, se sentem imbuídos de uma missão salvadora única. Nisso são fundamentalistas e pouco dados ao diálogo. Para que dialogar? Já temos tudo. O diálogo é para facilitar a conversão e é um gesto de civilidade.
Não me proponho apresentar uma balanço do pontificado de Bento XVI, coisa que foi feito com competência por outros. Para os leitores talvez seja mais interessante conhecer melhor uma tensão sempre viva dentro da Igreja e que marca o perfil de cada papa. A questão central é esta: qual a posição e a missão da Igreja no mundo?
Antecipamos dizendo que uma concepção equilibrada deve assentar-se sobre duas pilastras fundamentais: o Reino e o mundo. O Reino é a mensagem central de Jesus, sua utopia de uma revolução absoluta que reconcilia a criação consigo mesma e com Deus. O mundo é o lugar onde a Igreja realiza seu serviço ao Reino e onde ela mesma se constrói. Se pensarmos a Igreja demasiadamente ligada ao Reino, corre-se o risco de espiritualização e de idealismo. Se demasiadamente próxima do mudo, incorre-se na tentação da mundanização e da politização. Importa saber articular Reino-Mundo-Igreja. Ela pertence ao Reino e também ao mundo. Possui uma dimensão histórica com suas contradições e outra transcendente.
Como viver esta tensão dentro do mundo e da história? Apresentam-se dois modelos diferentes e, por vezes, conflitantes: o do testemunho e o do diálogo.
O modelo do testemunho afirma com convicção: temos o depósito da fé, dentro do qual estão todas as verdades necessárias para a salvação; temos o sacramentos que comunicam graça; temos uma moral bem definida; temos a certeza de que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo, a única verdadeira; temos o Papa que goza de infalibilidade em questões de fé e moral; temos uma hierarquia que governa o povo fiel; e temos a promessa de assistência permanente do Espírito Santo. Isto tem que ser testemunhado face a um mundo que não sabe para onde vai e que por si mesmo jamais alcançará a salvação. Ele terá que passar pela mediação da Igreja, sem a qual não há salvação.
Os cristãos deste modelo, desde Papas até os simples fiéis, se sentem imbuídos de uma missão salvadora única. Nisso são fundamentalistas e pouco dados ao diálogo. Para que dialogar? Já temos tudo. O diálogo é para facilitar a conversão e é um gesto de civilidade.
O modelo do diálogo parte de outros pressupostos: O Reino é maior que a Igreja e conhece também uma realização secular, sempre onde há verdade, amor e justiça; o Cristo ressuscitado possui dimensões cósmicas e empurra a evolução para um fim bom; o Espírito está sempre presente na história e nas pessoas do bem; Ele chega antes do missionário, pois estava nos povos na forma de solidariedade, amor e compaixão. Deus nunca abandonou os seus e a todos oferece chance de salvação, pois os tirou de seu coração para um dia viverem felizes no Reino dos libertos.
A missão da Igreja é ser sinal desta história de Deus dentro da história humana e também um instrumento de sua implementação junto com outros caminhos espirituais. Se a realidade tanto religiosa quanto secular está empapada de Deus devemos todos dialogar: trocar, aprender uns dos outros e tornar a caminhada humana rumo à promessa feliz, mais fácil e mais segura.
O primeiro modelo do testemunho é da Igreja da tradição, que promoveu as missões na África, na Ásia e na América latina, sendo até cúmplice em nome do testemunho da dizimação e dominação de muitos povos originários, africanos e asiáticos.
Era o modelo do Papa João Paulo II que corria o mundo, empunhando a cruz como testemunho de que ai vinha a salvação. Era o modelo, mais radicalizado ainda, de Bento XVI que negou o título de “Igreja” às igrejas evangélicas, ofendendo-as duramente; atacou diretamente a modernidade pois a via negativamente como relativista e secularista. Logicamente não lhe negou todos os valores mas via neles como fonte a fé cristã. Reduziu a Igreja a uma ilha isolada ou a uma fortaleza, cercada de inimigos por todos os lados contra os quais importa se defender.
O modelo do diálogo é do Concílio Vaticano II, de Paulo VI e de Medellin e de Puebla na América Latina. Viam o cristianismo não como um depósito, sistema fechado com o risco de ficar fossilizado, mas como uma fonte de águas vivas e cristalinas que podem ser canalizadas por muitos condutos culturais, um lugar de aprendizado mútuo porque todos são portadores do Espírito Criador e da essência do sonho de Jesus.
O primeiro modelo, do testemunho, assustou a muitos cristãos que se sentiam infantilizados e desvalorizados em seus saberes profissionais; não sentiam mais a Igreja como um lar espiritual e, desconsolados, se afastavam da instituição mas não do Cristianismo como valor e utopia generosa de Jesus.
O segundo modelo, do diálogo, aproximou a muitos pois se sentiam em casa, ajudando a construir uma Igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos. O efeito era o sentimento de liberdade e de criatividade. Assim vale a pena ser cristão.
Esse modelo do diálogo se faz urgente caso a instituição-Igreja quiser sair da crise em que se meteu e que atingiu seu ponto de honra: a moralidade (os pedófilos) e a espiritualidade (roubo de documentos secretos e problemas graves de transparência no Banco do Vaticano).
Devemos discernir com inteligência o que atualmente melhor serve à mensagem cristã no interior de uma crise ecológica e social de gravíssimas consequências. O problema central não é a Igreja mas o futuro da Mãe Terra, da vida e da nossa civilização. Como a Igreja ajuda nessa travessia? Só dialogando e somando forças com todos.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é autor de Igreja: carisma e poder, livro ajuizado pelo então Cardeal Joseph Ratzinger.
Quanto tempo...
Não tinha me dado conta do abandono deste blog, desde 2011.
Voltarei a postar textos, nem que sejam de outras pessoas...
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