sábado, 6 de dezembro de 2008

Da arte de ser, por João Augusto O' de Almeida

No último dia 13 de novembro, meu pai, Emanoel O'de Almeida, faria 78 anos. Já faz 12 anos que se foi. Mas ficou. O exemplo, a saudade; ficou o seu jeito de ser.
Dia 13 não estava em Belém. Fiz uma oração por ele distante daqui.
Em sua homenagem, reproduzo um texto de meu irmão, publicado em 25 de abril de 1996, apenas cinco dias depois do falecimento de nosso pai, no jornal, também já falecido, A Província do Pará. Na verdade o texto era para sair com o papai ainda vivo, mas D. Morte o levou antes.
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Da arte de ser
João Augusto O'de Almeida

"Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa?
Ela corou.
- Não sabia que você estava me observando.
- Não é por nada que olho: é que eu gosto de ver as pessoas sendo" (Uma Aprendizagem, Clarisse Lispector)

Essa espécie de voyerismo espiritual é um dos maiores prazeres possíveis, capaz de uma gratificação, pra mim, superior ao que a arte proporciona. Consiste em surpreender, sempre que a sensibilidade está disponível, onde, entre pessoas e coisas, a vida acontece. E é raro, a maioria das pessoas tem uma existência presumida.
Parece que essa participação no que é essência mesmo da vida nos foi sendo subtraída sem mesmo que a gente pudesse chorar pelo leite derramado. O pensamento, a afetividade e a ética estão cheios de convencionalismo, de condicionamento, de artificialidade. Vive-se por reflexo, por auto-sugestão, acha-se mais ou menos a mesma coisa sobre tudo, nem contra nem a favor muito pelo contrário, e quase tudo o que se sente já nos sai impregnado de clichês psicológicos, bengala sem a qual ninguém sabe mais dar um passo, e que age como um filtro que retém toda a espontaneidade, como um véu que não deixa mais divisar sutilezas. Ama-se, sofre-se, deseja-se, sonha-se no diminutivo, como nos prescrevem os manuais, e mesmo a alegria é compulsória e inautêntica. Por trás de tudo talvez esteja o que Luís Fernando Veríssimo chama de a degradação geral do sentido das coisas.
Não vivemos mais no mundo de que nos fala Adélia Prado: "Só quadros religiosos nas paredes, só um lugar aonde ir - e já haviam Nova Iorque e Roma".
Parece tudo muito mais complicado. Temos muitos lugares aonde ir, mesmo nos limites de nosso quintal. Temos supostamente escolha. A vida continua nos açodando com as mesmas demandas, mas dispomos de problemas novos, do último tipo, dos reais e dos imaginários e é tarefa vultosíssima essa a de achar o seu lugar no mundo, o físico, o material também, mas principalmente, o espiritual.
"É tanta coisa pra gente saber: o que cantar, como andar, onde ir, o que dizer, o que calar, a quem querer", diz a queixosa canção de Gilberto Gil. Tanta coisa que frequentemente desiste-se da empreitada, desiste-se de si, em troca de algo menos trabalhoso, talvez menos perigoso. O resultado pra mim mais incômodo é que as pessoas perdem toda a graça.
É bom ver uma pessoa sendo, ver alguém em pleno exercício de si mesmo, alguém que não se toma distância, que estando a salvo de ter uma imagem ideal fora de si, não tem com o que se parecer, como os outros seres na natureza só sabem ser o que são, aliás sem o menor esforço. E que conforto deve ser, que liberdade. Aí pode-se cuidar de outras coisas, pode-se até viver.
Essa deve ser a condição: dizer um grande "sim" à natureza, à vida, o que só pode vir de uma saúde, de uma lucidez, de uma sabedoria do instinto que não se explica, mas que se sabe.
E quem ensina, e como é que se aprende a inventar a própria vida, a achar o lugar intransferível onde vamos existir?
Resolvi falar sobre isso por causa de meu pai, que involuntariamente me despertou para o assunto e tem sido um infalível exemplo de como se faz. Sobretudo porque quero falar de algo que não se encontra nos anais, nos discursos, nos currículos, nos títulos; é inapreensível, é volátil, se estabelece no presente, no enquanto, acontece sem aviso, diante de algumas condições dadas pelo acaso, sempre que uma pessoa como meu pai está por perto, e constituem verdadeiras obras-primas cotidianas.
Meu espanto começou assim, de observar que ele era 100% ele, inédito, com seus gestos, voz, expressões, sua vitalidade, seu estilo, que era uma pessoa de sua própria autoria, que pensava e sentia com toda expressão de sua sigularidade, que se exercia em regime de tempo integral, e aí era só vê-lo interagir nas mais diferentes situações. O resultado sempre era de um convencimento e de uma verdade que eu atribuo ao nexo total entre o que ele sente e o que ele faz, de não haver o menor espaço entre a intenção e o gesto, a uma essencialidade, a uma integridade, a um permanente "estar quite", quando se brinca, quando se briga, quando se acolhe, quando se alegra ou se sofre. Atitude de quem está pagando à vista e no ato as suas contas com o mundo.
Pode-se revirar a sua biografia e vamos ver que a vida não lhe cobrou barato, ele bem teria justificativa para ficar inadimplente ou dividir a carga em suaves prestações, mas aí ele já não estaria sendo.
Espantava-me também que as coisas tinham outro peso, eram mais leves, mais reais talvez, menos complicadas, mais fáceis e que tinham um jeito de não se dar tanta importãncia para o que valia a pena.
Nunca o vi fora do seu lugar com ninguém, grande ou pequeno, em tudo e com todos a mesma sem-cerimônia de ser ele mesmo. O mundo do jeito descomplicado que ele concebe é a sua casa e a vida o seu elemento. Por onde ele vai, vai levando o seu lugar consigo e assim não há lugar onde ele não possa estar à vontade, não há pessoa diante de quem se sentir desconfortável ou intimidado.
Bom ver o jeito sempre inusitado de reagir, o jeito extravagante e enérgico de defender seus pontos de vista, as tiradas impagáveis que quando estou longe me fazem sempre imaginar "o que ele diria se visse isso?", com aquela habilidade em reduzir as coisas a sua mais estrita dimensão. Bom ver o seu enorme senso de dever para com os outros, um sentido de solidariedade sem ostentação, que faz atenção às menores necessidades cotidianas das pessoas próximas, esta sim, a sua maior área de atuação. Um jeito de farejar, de se antecipar, um jeito de nunca esquecer das necessidades dos outros, que se traduz em incansável prontidão para atendê-las, sempre que isso é possível.
Mas é preciso tirar o véu de que falei para ver nesse jeito direto e sem arestas, o mais perfeito cavalheiro, para ver na irreverência a afabilidade, para ler na ausência de sua frescura uma apuradíssima etiqueta, no desprezo em soar politicamente correto o renitente homem de bem, é preciso entender bem o humanês.
No caso do meu pai o princípio espiritual em que ele achou de fundamentar a sua vida, ainda que isso nunca tenha se convertido em discurso (daí talvez o seu valor superior) mas expresso nas mais eloquentes atitudes está resumido numa doutrina simples, a da fidelidade.
Fidelidade a si e uma resposta sempre afirmativa aos trabalhos da espécie.
Porque é preciso vingar, é preciso fazer o melhor com que a vida nos concedeu, dignificá-la, é preciso cumprir bem os nossos deveres, porque é bom se comprometer com a vida. Erigir uma casa sua, constituir uma família, trabalhar, assistir, não desamparar, não faltar, não esquecer, proporcionar o melhor de si, abraçar uma causa, devotar-se integralmente a um amor, promover que se esteja sempre juntos para celebrar generosamente nossas alegrias, ser uma ponte espaçosa e segura que vai ligando os filhos à vida. Estar atento aos misteres inadiáveis de viver. Ser grato, estar presente se nascem, se colam grau, se fazem aniversário, se adoecem, se morrem, porque é assim que tem que ser, porque é disso que é feita a vida, ele diria, dando de ombros.
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João Augusto O'de Almeida é jornalista, mestre em música pela UNIRIO e cantor erudito.

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