MARCELO COELHO
Liqüidação total
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Crises e catástrofes parecem o momento de colisão fatal entre destruição e consumo
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SEXTA-FEIRA passada, dia de liqüidações gigantes nos EUA, um funcionário da Wal-Mart morreu pisoteado pela multidão torrencial que invadia a loja em busca de produtos com desconto.
Tanta correria para as compras, em tempos de crise, até que se explica. Os descontos foram maiores do que de costume, uma vez que as empresas já temiam uma queda de faturamento. Os consumidores americanos, por outro lado, resolvem aproveitar o que podem, enquanto não chega o pior.
No meio disso, não deixa de ser chocante o apelo que as autoridades lançam à população: gastem mais! A ordem é consumir. Só assim, acredita-se, a economia sairá da crise, eliminando-se as famosas "poças de liqüidez".
Não é preciso ser Bin Laden ou Bento 16 para perceber que alguma coisa está errada nessa estratégia.
Imagino que algum sociólogo radical francês logo venha com uma palavra de ordem: "Sair da crise? Não, o que importa é aprofundá-la". Em francês acho que soa melhor: "Il n'est pas question de sortir de la crise, il faut l'approfondir".
Claro que não quero ver o mundo afundando na crise, mas me parece insensato voltar ao ponto de "euforia irracional" em que estávamos metidos. Não se trata apenas da "ganância de Wall Street".
A ganância é geral. Quem se endividou para comprar casas financiadas a preço de banana estava certo de fazer um grande negócio. As vítimas do sistema dançaram a música do sistema. Foram iludidas, é claro. Precisam ser salvas.
Mas será racional ajudar as montadoras para que produzam mais carros, quando é evidente que nem o planeta, nem o mais humilde bairro de Lagos, na Nigéria, suporta mais trânsito nas ruas?
Passo para uma das fotos mais impressionantes da tragédia de Santa Catarina. Com água até o peito, pessoas que perderam tudo pegavam o que podiam num supermercado: garrafas de cerveja e caixas de alimento boiavam ao alcance da mão.
Ninguém agiria de modo diferente. A sobrevivência estava em jogo. Mas a foto não ilustra apenas uma reação de desespero na catástrofe.
É também símbolo de um estado de desequilíbrio permanente entre consumo e preservação da natureza, entre o "salve-se quem puder" imediato e o "percam-se todos" a longo prazo, que caracteriza o nosso modo de vida.
Se a ocupação urbana desordenada foi a causa estrutural da tragédia em Santa Catarina, coisa muito pior está anunciada em Jacarta, na Indonésia, segundo leio na "IstoÉ".
Estão construindo prédios gigantescos por lá. Acontece que o terreno não agüenta o peso de tantos andares. Quantidades preocupantes de água são extraídas do subsolo; a cidade afunda 5 cm por ano.
Calcula-se que daqui a 40 anos ela desaparecerá. Quarenta por cento de Jacarta está abaixo do nível do mar; marés descontroladas e chuvas torrenciais não faltam ali.
Evidentemente, com a crise, devem estar pensando em pacotes de estímulo à construção civil...
Acho que não nos livraremos tão fácil dos mecanismos que, no fundo, deram início à famigerada crise dos "subprimes". A catástrofe (como todas, ou quase todas) já estava anunciada.
Em todo território americano, construíram-se casas sem que os compradores tivessem, de fato, dinheiro para pagá-las. Nas encostas de Blumenau, e sabe-se lá de quantas outras cidades brasileiras, montaram-se casas sem pensar nos riscos de deslizamento. Em Jacarta, empilham-se toneladas de concreto sobre um terreno oco.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreve sem parar sobre a "vida líqüida" e a pós-modernidade. Seus livros são vendidos como pãozinho quente nos meios de esquerda. Desconfio um pouco de seus pontos de vista; mas em "Vida para o Consumo" (ed. Jorge Zahar) há algumas passagens que vale assinalar.
Na sociedade de consumo, diz ele, diminui o espaço de tempo entre a vontade e a sua realização. Mais do que isso, diminui o prazo entre o nascimento da vontade e a sua morte. Compramos não para consumir, mas para nos livrarmos da vontade de comprar.
É evidente que se trata de um comportamento destrutivo; crises e catástrofes terminam parecendo, desse ângulo, o momento em que destruição e consumo colidem num único instante fatal. A foto do supermercado inundado, com o consumidor, que é também vítima, dando braçadas entre produtos e lama, é uma imagem dolorosa da situação.
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