quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O desastre. Do planejamento

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro 26 de janeiro de 2011 às 9:52h

A tragédia expõe os vícios de um modelo baseado no vale-tudo urbano. Somente uma burocracia técnica forte e valorizada poderá pôr fim ao "laissez-faire" que impera nas cidades. Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Foto: Mauricio Lima/AFP

A tragédia expõe os vícios de um modelo baseado no vale-tudo urbano

Quando foi o último desastre? Angra dos Reis? Morro do Bumba? Santa Catarina? Já perdemos as referências diante de tantos incidentes climáticos que assolaram o País. Os mais recentes, na região serrana do Rio de Janeiro, impactam pela extensão e gravidade. Também porque desfazem a visão preconceituosa de que são apenas os pobres e as moradias irregulares os atingidos por esses fenômenos. Condomínios de classe média alta desapareceram sob um mar de lama, pedras e detritos.

As autoridades públicas explicam tais tragédias, invariavelmente, como as consequências de eventos climáticos incomuns, fora dos padrões previstos. Atribuem a culpa ainda à suposta irracionalidade da população, que aceita morar em áreas de risco. Desencadeiam-se, então, verdadeiras operações emergenciais. Engenheiros, bombeiros, policiais e técnicos são mobilizados de maneira excepcional para diminuir os estragos.

Desta vez, o governo federal chamou para si a responsabilidade de tomar a iniciativa quanto às ações preventivas. Na segunda-feira 17, a Presidência da República anunciou a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Alerta de Desastres Naturais. A previsão é a de que ele esteja em funcionamento integral em quatro anos. No entanto, os dados das áreas de risco mais críticas já deveriam estar disponíveis no próximo verão. E esse sistema, por si só, não basta.

A intensidade e a extensão dos desastres não ocorrem por ausência de informações mais precisas, muito embora elas sejam imprescindíveis para mitigar os efeitos. A raiz do problema está na precariedade das cidades. Não é novidade que o espaço urbano foi e continua a ser apropriado à margem da regulação pública, dos planos diretores, das leis de uso e ocupação do solo. Impera um verdadeiro laissez-faire, reproduzido não apenas nas áreas pobres, mas também naquelas habitadas por setores de alta renda.

A explicação para a fatalidade das catástrofes que assolam as nossas improvisadas cidades é padrão catastrófico de gestão urbana. A reconhecida fragilidade institucional das nossas prefeituras resulta da inexistência de mecanismos de gestão fundados no universalismo de procedimentos. Torna-se necessária a constituição de uma burocracia técnica para exercer o importante papel de racionalização política, capaz de se impor como mediadora no jogo dos interesses particulares.

É a adoção do universalismo de procedimentos que permite à administração funcionar sob baixa influência do jogo político imediato e particularista. Como já mostraram vários analistas das relações entre Estado e sociedade, a constituição de burocracias com estas características ocorreu apenas nas áreas de interesses das classes capitalissas, como forma de proteger os pedaços do Estado que asseguram as condições gerais da acumulação de capital. Fenômeno que o cientista político Edson Nunes chamou de insulamento burocrático. São exemplos, ainda hoje, de ilhas de racionalidade técnica o BNDES, o Banco Central, os ministérios da Fazenda e do Planejamento. Nos outros setores de atuação do Estado, aqueles cuja função é atender às necessidades sociais, pouco ou nada foi feito nessa direção.

Na organização atual do chamado pacto federativo, coube às prefeituras cuidar da gestão urbana. Desde o início dos anos 1980 vem sendo descentralizada para os municípios parcelas significativas dos recursos fiscais. Essa descentralização, contudo, vem alimentando quatro lógicas de políticas particularistas que bloqueiam a adoção dos instrumentos de planejamento e gestão. Essas lógicas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses de quem comanda cada uma delas. São elas:

A) Clientelismo urbano, que trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local, tão bem transcrito por Vitor Nunes Leal na expressão coronelismo, enxada e voto, mas que nas condições urbanas transformou-se em assistencialismo, carência e voto. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso do povo ao poder público. O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de proteção de uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses da economia subterrânea das cidades (comércio ambulante, vans etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento às nossas favelas e às entidades filantrópicas que, travestidas de ONGs, usam recursos públicos para prestar seletivamente serviços que deveriam ser providos pela prefeitura.

B) Patrimonialismo urbano fundado na coalizão dos históricos interesses presentes nos circuitos da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos e as empresas do mercado imobiliário. Essa lógica de gestão das cidades constitui-se, historicamente, na etapa de transição da economia agroex-portadora para a economia industrial, pela reconfiguração do capital mercantil em capital urbano, mas que mantém os traços fundamentais dessa forma de acumulação. Ou seja, a manipulação dos preços e a corrupção, obtidas pelo controle privatista de parte da máquina pública. Esses setores impulsionam a realização de vultosas obras viárias e de infraestrutura. Obras custosas, mas de finalidades duvidosas.

C) Empreendedorismo urbano é uma lógica emergente, que visa a transformação das cidades em “máquinas de entretenimento”, para usar a expressão cunhada pelo sociólogo americano Terry Clark. Integra esse circuito uma miríade de atores privados, que passam a interferir na política urbana com foco na atração de grandes eventos e na renovação de áreas degradadas. A lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica o abandono e a desvalorização da burocracia estatal. Os salários dos funcionários são aviltados, a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada.

D) Corporativismo urbano, causado pelo baixo índice de associativismo – apenas 27% da população adulta integra sindicatos, associações profissionais, partidos, entidades de bairro – e pela diminuição do ímpeto dos movimentos sociais nas cidades. O resultado é que as experiências participativas resultam apenas no atendimento dos interesses dos poucos segmentos organizados, sem que exista universalização de procedimentos.

Se é verdade que estas catástrofes são geradas por incidentes climáticos fora do comum, os seus efeitos resultam de um padrão muito comum de gestão das nossas cidades, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceções. Diante desse quadro, os previsíveis problemas causados pelos eventos climáticos somente podem ser respondidos por ações emergenciais, o que contribui decisivamente para a reprodução da precariedade urbana, campo fértil para novas tragédias em nossas cidades.

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ e coordenador do Observatório das Metrópoles

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