quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Ocupação urbana desordenada começou no período colonial

Fonte: Agência Senado



Há algo de extremamente poético na silhueta das cidades brasileiras, mas que está entre as causas estruturais dos desastres verificados ultimamente em muitas de nossas áreas urbanas. O exemplo mais recente é o da região serrana do Rio. Esse elemento de beleza decorre justamente da forma como a maioria das cidades surgiram e se desenvolveram desde os tempos coloniais: acompanhando as linhas do relevo e com pouco ou nenhum planejamento.



Uma igreja que medita no outeiro, o casario que sobe e desce ladeiras, edifícios que se estabelecem sem medo à margem dos rios. Tudo isso impressiona o viajante e lhe dá o conforto de imaginar uma sociedade que se amoldou à paisagem sem conflitos, quase como se estivesse deleitosamente confundida à natureza.



No clássico Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda observa que essa urbanização sinuosa é um reflexo do tipo de colonização empreendida pelos portugueses e da própria psicologia e visão de mundo dos colonizadores lusos. O historiador também mostra como foi diferente a construção de cidades pelos espanhóis em suas colônias.



De acordo com Sérgio Buarque, o interesse dos portugueses no Brasil era o de enriquecer rapidamente e com pouco esforço, não levando em conta o estabelecimento nas terras brasileiras a longo prazo e dentro de bases econômicas sustentáveis. Por isso, instalaram-se preferencialmente no litoral, de onde era fácil enviar para a Europa o fruto da exploração.



Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não se produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole, diz o historiador. Ele cita trecho de uma carta do padre Manuel de Nóbrega, de 1552: de quantos lá vieram, nenhum tem amor a esta terra [...] todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir.



Rios



O avanço para o interior deu-se dentro da mesma visão econômica e sob o cuidado de que ninguém se instalasse de forma definitiva.



Os regimentos forais concedidos pela Coroa portuguesa, quando sucedia tratarem-se de regiões fora de beira-mar, insistiam sempre em que se povoassem somente as partes que ficavam às margens das grandes correntes navegáveis, como o rio São Francisco, diz o historiador.



O desinteresse por planejar cidades não derivava apenas do fato de que a empresa colonial era vista como um meio de enriquecimento rápido e impulsionada por espírito aventureiro. Refletia a própria experiência urbanística de Portugal e um traço do caráter português de então, avesso à transfiguração da realidade por meio de métodos, sistemas ou códigos racionais. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra 'desleixo', anota Sérgio Buarque.



De acordo com o historiador, os portugueses preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras. Assim, é comum a coexistência das chamadas vilas velhas, com os novos centros urbanos de origem colonial, o que o historiador considera o persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.



O capítulo 4 do livro é rico em exemplos e análises. Conta ele que na Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio dos 1700 espantou-se ao ver que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. E continua: tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seu lugar. Ainda no primeiro século da colonização, em São Vicente e Santos, o desalinho das casas era de tal ordem que o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, reclamava por não poder murar as duas vilas, pois isso acarretaria grandes transtornos aos moradores.



Em suas cartas a amigos fictícios, escritas no começo do século 19, o professor de grego Luis dos Santos Vilhena criticava a escolha da situação na qual foi edificada a cidade de Salvador: uma colina escarpada cheia de tantas quebras e ladeiras quando ali perto havia um sítio dos melhores.



No que se refere à colonização espanhola, o caso foi bem outro: caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa, por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados, de acordo com Sérgio Buarque.



Do ponto de vista urbanístico, o historiador ressalta que o traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer a retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste. Conforme Sérgio Buarque, é um ato definido pela vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhes antes o acento voluntário da linha reta.



Ao contrário dos portugueses, os espanhóis evitaram a costa, por considerar que, além do perigo dos corsários, não havia ali lugares sadios para a construção de moradias. Temia-se ainda o que eles consideravam a pouca disposição para o trabalho dos habitantes do litoral, associada a uma liberalidade dos costumes.



Quanto à escolha dos locais de erguimento das cidades, os espanhóis estabeleceram uma série de normas, levando em conta o tipo de região a ser ocupada. Para as chamadas povoações de terra de dentro, não deveriam ser escolhidos lugares altos, expostos aos ventos e de acesso difícil, nem muito baixos, pois costumam favorecer as doenças, mas sim os que se achassem a altura mediana descobertos para os ventos do norte e do sul.



Citando também Raízes do Brasil, a arquiteta e doutora em urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Rosana Miranda lembra que as normas de construção espanholas eram muito bem definidas: a construção das cidades deveria começar pela praça maior, com dimensões adequadas ao futuro crescimento urbano e, ao redor dessa praça, o casario seria construído de acordo com o alinhamento definido com extremo rigor e o traçado das ruas também seguiria o ângulo reto como principal diretriz.



Águas de Janeiro



A ironia poética da América lusa alcançou por fim a memória do cantor dessa simbiose da sociedade com a natureza: entre as casas destruídas pela enchente do dia 12 de janeiro em São José do Vale do Rio Preto (RJ), estava a de Antonio Carlos Jobim. Ali no refúgio que construiu com tanto esforço, e que faz parte do imaginário da MPB, ele compôs a célebre Águas de Março e outras canções da fase pós-Bossa Nova.



Vêm provavelmente daquela paisagem alguns versos de Chovendo na Roseira: Olha que chuva boa prazenteira / Que vem molhar minha roseira / Chuva boa criadeira / Que molha a terra / Que enche o rio /Que limpa o céu / Que trás o azul / Olha o jasmineiro está florido / E o riachinho de água esperta /Se lança em vasto rio de águas calmas.

O desastre. Do planejamento

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro 26 de janeiro de 2011 às 9:52h

A tragédia expõe os vícios de um modelo baseado no vale-tudo urbano. Somente uma burocracia técnica forte e valorizada poderá pôr fim ao "laissez-faire" que impera nas cidades. Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Foto: Mauricio Lima/AFP

A tragédia expõe os vícios de um modelo baseado no vale-tudo urbano

Quando foi o último desastre? Angra dos Reis? Morro do Bumba? Santa Catarina? Já perdemos as referências diante de tantos incidentes climáticos que assolaram o País. Os mais recentes, na região serrana do Rio de Janeiro, impactam pela extensão e gravidade. Também porque desfazem a visão preconceituosa de que são apenas os pobres e as moradias irregulares os atingidos por esses fenômenos. Condomínios de classe média alta desapareceram sob um mar de lama, pedras e detritos.

As autoridades públicas explicam tais tragédias, invariavelmente, como as consequências de eventos climáticos incomuns, fora dos padrões previstos. Atribuem a culpa ainda à suposta irracionalidade da população, que aceita morar em áreas de risco. Desencadeiam-se, então, verdadeiras operações emergenciais. Engenheiros, bombeiros, policiais e técnicos são mobilizados de maneira excepcional para diminuir os estragos.

Desta vez, o governo federal chamou para si a responsabilidade de tomar a iniciativa quanto às ações preventivas. Na segunda-feira 17, a Presidência da República anunciou a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Alerta de Desastres Naturais. A previsão é a de que ele esteja em funcionamento integral em quatro anos. No entanto, os dados das áreas de risco mais críticas já deveriam estar disponíveis no próximo verão. E esse sistema, por si só, não basta.

A intensidade e a extensão dos desastres não ocorrem por ausência de informações mais precisas, muito embora elas sejam imprescindíveis para mitigar os efeitos. A raiz do problema está na precariedade das cidades. Não é novidade que o espaço urbano foi e continua a ser apropriado à margem da regulação pública, dos planos diretores, das leis de uso e ocupação do solo. Impera um verdadeiro laissez-faire, reproduzido não apenas nas áreas pobres, mas também naquelas habitadas por setores de alta renda.

A explicação para a fatalidade das catástrofes que assolam as nossas improvisadas cidades é padrão catastrófico de gestão urbana. A reconhecida fragilidade institucional das nossas prefeituras resulta da inexistência de mecanismos de gestão fundados no universalismo de procedimentos. Torna-se necessária a constituição de uma burocracia técnica para exercer o importante papel de racionalização política, capaz de se impor como mediadora no jogo dos interesses particulares.

É a adoção do universalismo de procedimentos que permite à administração funcionar sob baixa influência do jogo político imediato e particularista. Como já mostraram vários analistas das relações entre Estado e sociedade, a constituição de burocracias com estas características ocorreu apenas nas áreas de interesses das classes capitalissas, como forma de proteger os pedaços do Estado que asseguram as condições gerais da acumulação de capital. Fenômeno que o cientista político Edson Nunes chamou de insulamento burocrático. São exemplos, ainda hoje, de ilhas de racionalidade técnica o BNDES, o Banco Central, os ministérios da Fazenda e do Planejamento. Nos outros setores de atuação do Estado, aqueles cuja função é atender às necessidades sociais, pouco ou nada foi feito nessa direção.

Na organização atual do chamado pacto federativo, coube às prefeituras cuidar da gestão urbana. Desde o início dos anos 1980 vem sendo descentralizada para os municípios parcelas significativas dos recursos fiscais. Essa descentralização, contudo, vem alimentando quatro lógicas de políticas particularistas que bloqueiam a adoção dos instrumentos de planejamento e gestão. Essas lógicas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses de quem comanda cada uma delas. São elas:

A) Clientelismo urbano, que trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local, tão bem transcrito por Vitor Nunes Leal na expressão coronelismo, enxada e voto, mas que nas condições urbanas transformou-se em assistencialismo, carência e voto. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso do povo ao poder público. O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de proteção de uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses da economia subterrânea das cidades (comércio ambulante, vans etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento às nossas favelas e às entidades filantrópicas que, travestidas de ONGs, usam recursos públicos para prestar seletivamente serviços que deveriam ser providos pela prefeitura.

B) Patrimonialismo urbano fundado na coalizão dos históricos interesses presentes nos circuitos da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos e as empresas do mercado imobiliário. Essa lógica de gestão das cidades constitui-se, historicamente, na etapa de transição da economia agroex-portadora para a economia industrial, pela reconfiguração do capital mercantil em capital urbano, mas que mantém os traços fundamentais dessa forma de acumulação. Ou seja, a manipulação dos preços e a corrupção, obtidas pelo controle privatista de parte da máquina pública. Esses setores impulsionam a realização de vultosas obras viárias e de infraestrutura. Obras custosas, mas de finalidades duvidosas.

C) Empreendedorismo urbano é uma lógica emergente, que visa a transformação das cidades em “máquinas de entretenimento”, para usar a expressão cunhada pelo sociólogo americano Terry Clark. Integra esse circuito uma miríade de atores privados, que passam a interferir na política urbana com foco na atração de grandes eventos e na renovação de áreas degradadas. A lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica o abandono e a desvalorização da burocracia estatal. Os salários dos funcionários são aviltados, a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada.

D) Corporativismo urbano, causado pelo baixo índice de associativismo – apenas 27% da população adulta integra sindicatos, associações profissionais, partidos, entidades de bairro – e pela diminuição do ímpeto dos movimentos sociais nas cidades. O resultado é que as experiências participativas resultam apenas no atendimento dos interesses dos poucos segmentos organizados, sem que exista universalização de procedimentos.

Se é verdade que estas catástrofes são geradas por incidentes climáticos fora do comum, os seus efeitos resultam de um padrão muito comum de gestão das nossas cidades, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceções. Diante desse quadro, os previsíveis problemas causados pelos eventos climáticos somente podem ser respondidos por ações emergenciais, o que contribui decisivamente para a reprodução da precariedade urbana, campo fértil para novas tragédias em nossas cidades.

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ e coordenador do Observatório das Metrópoles

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Disney: apogeu e agonia de um sonho

VALE A PENA LER O RELATO DE RICARDO KOTSCHO SOBRE A VIAGEM QUE FEZ COM OS NETOS PARA DIISNEY.

Caros leitores,

voltei segunda de manhã da viagem à Disney World, mas com o colapso na malha aérea mundial, que não consegue mais atender à demanda, as minhas malas só chegaram na noite de terça, com meu caderno de anotações e o material que trouxe para escrever este texto. Por isso, a demora para contar a história que segue abaixo.

Ricardo Kotscho

***

Primeiro, os produtos chineses invadiram os Estados Unidos e os americanos compraram. Em consequência, os dólares americanos encheram as burras chinesas, que transbordaram.

Com dinheiro sobrando no bolso, multidões de chineses invadiram a Disney World, o velho símbolo do sonho americano. E o maior parque de diversões do mundo entrou em colapso no final de 2010, não mais dando conta da demanda. Ninguém entrava e ninguém saía, não se conseguia mais andar em meio ao congestionamento de pedestres.

No Magic Kingdom, onde tudo começou meio século atrás, a cidade de fantasia plantada aonde antes havia um pântano, em Orlando, na Flórida, tiveram que fechar os portões ao meio dia, às vésperas do Natal e do Ano Novo.

Além dos chineses, outros ex-pobres do mundo todo, principalmente da Índia, mas também da América Latina e da África descobriram a Disney World e se tornaram maioria na paisagem humana dos parques, desbancando os nativos americanos e os fiéis brasileiros nas filas quilométricas que se formam durante todo o dia em todo lugar. Como se vê, a freguesia do parque acompanhou as mudanças do novo mapa econômico mundial.

Vinte e cinco anos depois de levar minhas filhas, em 1985, volto à Disney com os netos e encontro tudo mudado, embora os cenários, os brinquedos, as atrações, os sons e os cheiros sejam os mesmos no Magic Kingdom.

Mudou o astral, o clima, sei lá, virou tudo uma grande competição, uma agonia por espaço nos restaurantes, nas filas das lanchonetes, nos estacionamentos de carros e de carrinhos de bebê, nos banheiros. O consumismo é infernal, visível a olho nu.

Deixou de ser o paraiso de crianças e idosos, que sofrem um bocado nesta maratona do divertimento a qualquer preço e não encontram lugar nem para sentar. É algo hoje mais para atletas de alta performance que suportam passar horas em pé nas filas para entrar num brinquedo que dura dez minutos.

Para paulistano que gosta de uma fila, é um prato cheio. Tem fila para pegar o trenzinho que leva do estacionamento à entrada do parque, fila para validar a reserva do ingresso, fila para passar na segurança do parque, fila para pegar comida nos self-service, outra fila para pagar, e o resto do dia anda-se de uma fila para outra, que pode durar uma hora, duas horas, três horas…

Ao atingir seu apogeu, batendo recordes de público e de vendas, a Disney é como um grande avião com overbooking permanente, que levanta vôo assim mesmo _ um monumental shopping center a céu aberto em torno de um parque de diversões, com centenas de lojas e praças de alimentação, tudo da mesma grife e do mesmo dono. No coração emblemático do capitalismo, não há concorrência…

A velha ilha da fantasia sofre com os mesmos problemas de qualquer lugar superlotado nesta época do ano: trens quebram, o monorail atrasa, brinquedos param de funcionar, funcionários estressados, carrinhos de bebê atropelando pedestres e vice-versa.

Logo no primeiro dia tive uma boa amostra do que me aguardava. Esperando minha vez na fila do trenzinho do estacionamento, fui abalroado por um nativo de grande porte, provavelmente um herói de guerra aposentado.

O tipo de dois metros de altura por dois de largura me ultrapassou, postou-se diante da porta do trenzinho, segurou a porta e me comunicou: “My family!”, apontando para a fileira de bancos. Sem tropas para enfrentá-lo, o jeito foi esperar o próximo trenzinho.

O curioso disso é que os americanos não fazem a menor questão de ser simpáticos com os turistas, agem sempre como robôs programados para andar em alta velocidade, comem o dia todo andando ou dirigindo, engrossam com facilidade, e a cada ano mais gente no mundo inteiro quer conhecer a Disney.

A maioria dos brasileiros que encontrei e com quem conversei estava vindo pela primeira vez. Era gente de toda parte do país, feliz da vida por estar lá, apesar de todos os contratempos da gincana maluca.

Dava para notar de longe que eram brasileiros porque andam em grupos, falam alto e as mulheres são mais bonitas. Acho que depois de atendidas as necessidades básicas de teto, comida,trabalho e carro, o grande sonho desta imensa nova classe média brasileira é ir à Disney.

Além de ver de perto a turma do Mickey e do Pato Donald, os brasileiros vão a Orlando pensando nas compras e simplesmente enlouquecem nos outlets da vida _ as lojas de fábrica que, após o Natal entraram em liquidação com descontos de até 70%. Tudo nos Estados Unidos é muito mais barato do que aqui: além de roupas, a comida, os imóveis, os carros, o táxi.

“Quanto é 25% de 40?” grita uma patricinha carioca para a mãe no meio da loja, como se estivesse na feira de São Cristovão. “Acho que é dez…”, digo-lhe baixinho para ajudá-la a não dar mais vexame.

No oitavo dia, achei melhor ficar no hotel lendo (devorei o “1822″, um livro fantástico!) e descansando para não atrapalhar os passeios da família com a minha ranzizice. Sem saber falar inglês, passei algumas dificuldades ao esquecer do lado de dentro o cartão que abre a porta do apartamento e quando fui pedir para arrumar as camas. Para completar, a camareira era surda.

Quem gosta de criticar o nível da talevisão brasileira precisa ver a americana. Descontando o fato de que eu não entendia a maioria das coisas que eles estavam falando, só pelas imagens e pelos temas dos programas dava para perceber que damos de dez a zero neles.

Só numa coisa eles ganham: tem mais canais falando de culinária do que programas religiosos. Vai ver que é por isso que os americanos estão cada vez mais gordos. Os índices de obesidade dobraram de 15% da população no fim dos anos 70 para 33% em 2004.

No dia primeiro do ano, não por acaso, numa enquete feita pela rede ABC sobre os maiores desejos dos americanos em 2011 perder peso ficou em primeiro lugar (em segundo, fazer exercícios e, em terceiro, economizar dinheiro). Pelo jeito, querem fazer uma mudança radical de vida.

Os netos voltaram cansados, mas contentes. Só de ver a alegria deles ao encontrar ao vivo os personagens de Disney já valeu a viagem. Eles não vão esquecer tão cedo destes momentos e eu, com certeza, também não vou esquecer nunca o sorriso deles.

É o que eu tinha a contar sobre a viagem. Aos leitores que também puderam viajar nesta época, dentro ou fora do país, peço para falar das suas descobertas e impressões, dar suas dicas, contar suas histórias.

Para mim, o melhor das viagens é sempre a volta ao Brasil e o reencontro com os amigos, trazendo histórias novas para contar. Um dos meus planos para 2011 é viajar menos. E o de vocês?

Brasil tem 21 sabores sob risco de extinção

Por Rogério Ferro, do Instituto Akatu




Mapeamento é feito por ONG internacional com colaboração de consumidores; até agora, mais de 700 produtos foram catalogados em 48 países.

O Brasil tem 21 produtos alimentícios em risco de extinção, segundo o catálogo Arca do Gosto, que lista sabores em risco de desaparecer devido a fatores como a coleta não sustentável, localização do produto em área devastada, baixa procura, perda da tradição de modos de preparo, produção complexa e desinteresse mercadológico. O levantamento é feito pela Slow Food, uma Organização Não Governamental internacional com sede na Itália e com atuação no Brasil desde 2006.

“O nome procura sinalizar para a volta a uma gastronomia, que começa com a escolha dos alimentos considerando a forma de produção sustentável e o respeito aos produtores artesanais, chegando até a mesa, onde a convivência e a celebração valoriza a história do alimento”, explica Roberta Marins de Sá, doutora em bioquímica de alimentos pelo International Centre for Brewing and Distilling, na Heriott-Watt University (Edimburgo, Escócia), e presidente da comissão Arca do Gosto no Brasil.

O movimento pretende restabelecer os hábitos de convivência à mesa, protegendo os alimentos tradicionais e conservando métodos de cultivo e processamento tradicionais em contraposição à correria da vida moderna pautada pelo “fast food” e a padronização do paladar.

A Arca do Gosto, identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos que estão em risco de desaparecer, mas ainda vivos e com potenciais produtivos e comerciais. Veja aqui (http://www.slowfoodbrasil.com/content/category/6/19/59/) a lista dos sabores brasileiros em risco de extinção. “Os consumidores podem contribuir para alertar e fazer mais pessoas conhecerem produtos ricos, mas que não estão sendo explorados”, explica Sá.

Para indicar um produto, basta clicar aqui (http://www.slowfoodbrasil.com/component/option,com_performs/formid,1/Itemid,27/) e preencher o formulário, oferecendo o maior número de informações sobre o alimento. “Enviado o formulário, nossa equipe técnica faz a pesquisa, contata possíveis produtores, caso existam e, se necessário, fazemos contato com o consumidor que enviou o formulário”, diz Salles.

Além dos 21 produtos catalogados até dezembro de 2010, estão em estudo mais seis, todos do semiárido brasileiro, informa Sá. “A catalogação e a atualização da Arca é constante, vamos incorporando na medida é que os estudos são finalizados”.

De acordo com o a entidade, mais de 750 produtos alimentícios, de 48 países, estão ameaçados de desaparecer. A excelência gastronômica, ou seja, a riqueza do aroma e do sabor, também é um dos critérios que o alimento deve atender para fazer parte da lista, além de estar ligado à memória de uma comunidade e ter procedimentos artesanais de preparo.



(Envolverde/Instituto Akatu)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Como saber se Tiririca está alfabetizado?

Esther Pillar Grossi
Doutora em Psicologia da Inteligência pela Universidade de Paris


É pelo menos intrigante, para não dizer incompreensível, o que vem acontecendo com um cidadão que foi eleito deputado federal e sobre o qual paira a interrogação se é ou não alfabetizado, condição para exercer tal mandato legislativo.
O que não se pode compreender é que a avaliação para concluir se Tiririca é ou não alfabetizado seja feita por juízes eleitorais.
A quem cabe decidir se alguém é ou não portador de alguma enfermidade?
A quem cabe julgar se uma obra de engenharia está ou não de acordo com as exigências técnicas requeridas?
A quem cabe avaliar se alguém é ou não alfabetizado?
É incrível que para esta avaliação não seja chamado um profissional conhecedor das sutilezas do processo de alfabetização. O juiz que agora afirma que Tiririca é alfabetizado porque apresenta “um mínimo de intelecção do conteúdo de um texto, apesar da dificuldade na escrita”, assim como o que inicialmente concluiu por sua incompetência para ler e escrever, não são profissionais habilitados para emitir tais julgamentos.
Estar alfabetizado exige que qualquer pessoa seja capaz de ler e de escrever um texto com características bem definidas, conhecidas por quem é da área. É imprescindível ler e compreender o conteúdo de um determinado texto, que cuidadosamente é preparado para essa avaliação. E é indispensável ser capaz de escrever também, de próprio punho, um texto, não um ditado proposto por outra pessoa. O texto escrito só será satifatório para considerar-se alguém alfabetizado se uma pessoa medianamente instruída conseguir compreender o que o escrevente escreveu. Alfabetizado só o é quem consegue compreender ideias de outro postas no papel e quem consegue pôr no papel ideias suas, com princípio, meio e fim, pois isto é produzir um texto.
Este é o critério definido pela UNESCO para caracterizar a competência que permite considerar alguém alfabetizado.
Para avaliar esta competência há exigências e estratégias didáticas próprias, há modos estudados e testados para fazê-lo, e há profissionais preparados para tanto.
Confesso que não só tive vontade de me apresentar para avaliar Tiririca, como, mais do que isto, desejei ter disponibilidade para me prontificar a alfabetizá-lo, caso não o seja. Para tal, menos de três meses são necessários, com metodologia científica muito nova, que se apóia no pós-construtivismo. De acordo com esta metodologia ele deveria ser inserido em uma turma de no mínimo 12 alunos, porque aprendizagem escolar é um fenômeno social e só bem se realiza no interior de um grupo de colegas que persigam juntos os mesmos conhecimentos. A alfabetização acontece numa turma de alunos orientada para que percorra um processo muitíssimo interessante, o qual compreende hipóteses construídas a partir do contato com atos e materiais de escrita, isto é convivendo com pessoas que leem e escrevem, assim como dispondo de livros, revistas, jornais, cartas, listas, cartazes, rótulos, etc... É fácil dar-se conta que estes contatos não são corriqueiros para quem é oriundo de ambiente onde estão os 50 milhões de adultos analfabetos com os quais ainda convivemos no Brasil. Cabe à escola, nesses casos, compensar a ausência desses contatos nas famílias, o que concretamente é possível.
A avaliação da competência na leitura e na escrita deve levar em conta uma síntese muito particular de três habilidades diferentes e complementares, que são a de associar sons a letras, a de ler e a de escrever. Aprender a ler e a escrever é semelhante a compreender e/ou falar uma língua estrangeira. Pode-se compreender sem falar ou até pode-se conseguir falá-la sem compreender quando outros falam, porque um e outro são processos diferentes, que não são simultâneos, nem paralelos. Somente quando se logra esta síntese de ler e de escrever é que se está alfabetizado, e para sempre. A perenidade desta alfabetização se deve ao fato de que nosso sistema nervoso registra tais sínteses, que são esquemas de pensamento. Nosso cérebro não acolhe conceitos isolados, ele só acolhe e registra campos conceituais, isto é um conjunto de elementos que se fecham num sistema de relações. Aquilo que não é registrado no organismo não tem como permanecer nele com estabilidade, isto é, não é verdadeiramente aprendido.
Portanto, avaliar se alguém está ou não alfabetizado é tarefa de profissional da área, que conhece os meandros do complexo processo pelo qual se passa para dominar a magia da escrita.
Felizmente, é isto que estão fazendo centenas de professores, no Rio Grande do Sul, dentro do projeto “Alfabetização de alunos com seis anos”, e milhares no Brasil, dentro do “Programa de Correção de Fluxo Escolar”, do MEC, ambos realizados pelo Geempa. Neles, os alunos são avaliados rigorosamente, com instrumento cientificamente qualificado e, felizmente, com excelentes resultados. Nesta excelência está o contingente de nosso estado que, neste ano de 2010, conseguiu alfabetizar todos os seus alunos, os quais comemorarão tal conquista em uma festa de premiação, dia 18 de dezembro, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre.
Portanto, não se pode saber se Tiririca é ou não alfabetizado, a não ser que ele seja avaliado por profissional que conheça por dentro como se dá o processo de alfabetização e que saiba como se evidenciam os critérios estabelecidos pela UNESCO para considerá-lo alfabetizado.

A importância da leitura e da escrita

Por Vilmar Berna*, do Portal do Meio Ambiente




Para compreender, adequadamente, a importância da leitura e da escrita em nossas vidas, precisamos compreender que assim como o nosso corpo material precisa de alimento, o espiritual também. É importante aqui corrigir uma falsa idéia, a de que os termos 'espiritual' ou 'espiritualidade' referem-se exclusivamente ao seu sentido religioso. É compreensível que isso ocorra, por que é aí que os que têm fé na divindade elaboram e abrigam suas idéias e sentimentos em relação ao sagrado.

Entretanto, ateus também tem fé, por exemplo, de que o mundo pode ser melhor e de que as pessoas podem mudar. Possuem seu lado espiritual, só que no sentido não religioso do termo, onde elaboram idéias, afetos, esperanças. E também espiritualidade, no sentido da religação com a natureza, com o Cosmo.

O que ressalto aqui é que nós e o mundo não somos feitos apenas de uma parte material que pode ser percebida pelos cinco sentidos, mas também das visões que temos desse mundo, de nós e dos outros. Por isso, nunca estamos prontos, mas na medida em que recebemos informações e estímulos, e vivenciamos experiências, construímos ou reconstruímos nossa visão de mundo.

Outra falsa idéia é a de que podemos comunicar a verdade. Podemos percebê-la, mas ao comunicar sobre ela, levamos junto uma parte de nossa subjetividade como observador. Então, não existe comunicação imparcial. O que é verdadeiro para um pode não ser para o outro. Por que, ao contrário do que se possa imaginar, a realidade como percebemos está em constante processo interno onde permanente é só a própria mudança.

Entre os grandes desafios para a humanidade é conseguir respeitar as diferenças entre os povos, as pessoas, as visões de mundo para que elas não se tornem obstáculos às relações. Por que não existe uma pessoa igual à outra, e também não pode existir verdade única, religião única, pensamento único. E isso inclui esta própria afirmação que acabo de fazer, daí a dificuldade de se andar em terreno firme e seguro quando o assunto é a subjetividade.

Então, ler e escrever é muito mais que dominar técnicas literárias, é obter as chaves desse mundo interior, de nossa verdade, e ter acesso a dos outros. Uma forma de nos ajudar a perceber, compreender e elaborar nossa própria subjetividade contribuindo para dar sentido ao mundo, a nós próprios e aos outros. Claro que existem outras formas de fazer isso, principalmente nas culturas orais, mas na cultura letrada, ler e escrever são fundamentais para ser e sentir-se adequadamente inseridos no mundo.

Precisamos disso, pois ao contrário do que possa imaginar, o processo de formação do sujeito é na verdade uma auto-formação. A educação, os livros, a cultura, os meios de comunicação exercem influências sobre nós, mas o que somos resulta de nossas escolhas. Comunicadores em geral, educadores, e escritores, em particular, cumprem com o papel social de nos ajudar a construir nossa subjetividade, nossa compreensão da verdade e utopias e, embora não escolham por nos, contribuem para iluminar nossos caminhos.

Outra falsa idéia é que a pratica é mais importante que a teoria. A prática começa nas idéias. A motivação para agir não está na própria ação, mas em nosso mundo interior. E como a leitura e a escrita nos conectam a este mundo, nos incentivam - ou não - a agir seja para manter as coisas como estão ou para mudá-las. Por isso, os primeiros a sofrerem censura e prisões em regimes opressores são os jornalistas, os artistas, incluindo os escritores, por que idéias podem ser armas mais poderosas que fuzis e granadas. Não é por um acaso que nos regimes democráticos exista tanta preocupação dos donos do poder de controlar os meios de comunicação.

A internet tem sido uma arma poderosa de resistência, uma forma de driblar a censura, algo inimaginável em outras épocas. Os poderosos estão tentando encontrar um jeito de impedir a liberdade na internet. Em países de regime totalitário certas palavras são bloqueadas pelos servidores e em países democráticos os poderosos estão buscando meios para impedir que informações desfavoráveis a eles continuem circulando na internet. Assistimos isso recentemente no episódio do Wikileaks, que criou um mecanismo aparentemente à prova de censura para a divulgação de segredos de Estado. Em vez dos poderosos escandalizarem-se com o fato de funcionários públicos estarem tramando em segredo contra o povo e a paz - usando funções públicas para cuidar de interesses privados, para se corromperem – para tentarem aperfeiçoar sistemas de controle democrático a fim de se livrarem das falhas do sistema, tentam por todos os meios - inclusive ocultos - de criminalizar os que democratizaram a informação secreta.

Um de nossos maiores desafios é aos escrevermos, ou falarmos, expressarmos o que estamos pensando ou sentindo. Por mais incrível que pareça, tem gente que diz uma coisa e pensa ou sente outra diferente. Por isso não nos comunicamos apenas com a fala ou a escrita, mas também com os gestos, os olhares, o tom de voz. E é aí que a internet e a escrita, por mais importantes que sejam para a comunicação, não substituem o contato pessoal, o olho no olho.

Espressar-se na forma escrita não é um simples ato de colocar palavras num papel ou digitar num teclado. A maior parte da ação de escrever é invisível para os olhos, acontece no mundo interior de quem escreve e pode refletir este esforço de buscar o equilíbrio entre as emoções, o pensamento e as praticas.

E mais. Com os blogs e as ferramentas de busca, escrever e ser lido tornaram-se atos quase simultâneos. Antes, o intervalo de tempo entre um e outro podia levar anos e dependia do escritor ter a sorte de encontrar um editor para intermediar seu acesso aos leitores. Além de contribuir para a democratização da informação e do pensamento, a internet, os novos celulares, a banda larga, tem facilitado a vida de quem gosta de escrever e quer ser lido. Publicar deixou de ser privilégio de poucos.

Escrever assemelha-se a alguém que organiza uma casa desarrumada. Arrasta e empurra idéias de um lado para o outro, constroem e reconstroem pensamentos, sonhos, como quem movimenta os móveis. E só depois de estar cheio dessas idéias, e quando elas começam a fazer sentido, é que a pessoa se sente pronta, na verdade, quase que obrigada a escrever, como uma espécie de libertação da mente. E aí começa outra etapa importante, a de garimpar as palavras mais certas e apropriadas para transmitir a mensagem. A chance de acertar logo de primeira é a mesma de um garimpeiro achar uma pepita de ouro na primeira tentativa.

Alguns chegam a comparar o ato de escrever com o nascimento de um filho. O período da gestação é o tempo gasto na elaboração das idéias e o parto é o ato de colocá-las para fora.

Pablo Neruda dizia que escrever é fácil, começa com letra maiúscula e acaba com um ponto e no meio se colocam idéias.

As idéias nascem em nós, nos outros autores e também estão por aí, ao alcance de todos que estiverem dispostos a ser veículo para elas.

Algumas idéias são tão universais que se repetem em vários escritos, povos e culturas diferentes, e independente do tempo e lugar, permanecem atuais e válidas para todos.

O ideal é quando o escritor consegue reunir à sua volta pessoas que compreendem que o ato de escrever não é apenas físico, mas requer recolhimento, silêncio interior, para ouvir-se e ouvir seus fantasmas, angústias, desejos, 'conversar' com seus amigos espirituais. Assim, para quem não conhece sobre o ato de escrever, pode parecer estranho quando o escritor se recolhe neste seu mundo, pois externamente, pode parecer que está distante e desinteressado sobre as pessoas ou ao que acontece à sua volta, mas pode ocorrer exatamente o contrário. Para um escritor os acontecimentos do cotidiano não costumam passar despercebidos, pois a vida é o seu laboratório.

E, assim como construimos redes de afetos no mundo físico, também o fazemos no mundo espiritual. Os escritores que gostamos formam nossa espécie de rede de 'amigos' espirituais, com os quais compartilhamos idéias, afinidades e valores, ainda que muitos já possam ter morrido a milênios ou vivam do outro lado do Planeta. Por isso, um escritor nunca esta só em seu mundo interior e ainda que tirem tudo dele, e aprisionem seu corpo, como já aconteceu muitas vezes nas Ditaduras, podem se refugiar em seu mundo interior, onde são livres, e, assim, sobreviverem espiritual e intelectualmente.

Mais que escrever para seu próprio prazer escreve-se por necessidade e dever. Escrever é a função social do escritor, seja para entreter, seja para ajudar na analise da conjuntura, mostrar alternativas, denunciar as falsas idéias e injustiças. Por isso, um texto não está completo quando é divulgado, mas quando é lido. E quando isso acontece, nenhum texto é igual ao outro, pois ao passar pelos olhos e pelo mundo interior do leitor, ganha nuances e identidade própria e particular.

Um mesmo texto lido por diferentes leitores será compreendido de forma diferente. Um texto que alguém ache maravilhoso pode ser comum para outra pessoa.

Sem os leitores, os textos não vão a lugar algum, não transformam coisa alguma, não amam nem são felizes. Não são os textos que mudam as coisas. São as pessoas.

* Vilmar Sidnei Demamam Berna é escritor e jornalista, fundou a REBIA - Rede Brasileira de Informação Ambiental e edita deste janeiro de 1996 a Revista do Meio Ambiente (que substituiu o Jornal do Meio Ambiente) e o Portal do Meio Ambiente ( http://www.portaldomeioambiente.org.br/). Em 1999, recebeu no Japão o Prêmio Global 500 da ONU Para o Meio Ambiente e, em 2003, o Prêmio Verde das Américas – http://www.escritorvilmarberna.com.br/



(Envolverde/O autor)

Crise neoliberal e sofrimento humano

Por Leonardo Boff*




O balanço que faço de 2010 vai ser diferente. Enfatizo um dado pouco referido nas análises: o imenso sofrimento humano, a desestruturação subjetiva especialmente dos assalariados, devido à reorganização econômico-financeira mundial.

Há muito que se operou a “grande transformação”(Polaniy), colocando a economia como o eixo articulador de toda a vida social, subordinando a política e anulando a ética. Quando a economia entra em crise, como sucede atualmente, tudo é sacrificado para salvá-la. Penalisa-se toda a sociedade como na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Espanha e mesmo dos USA em nome do saneamento da economia. O que deveria ser meio, transforma-se num fim em si mesmo.

Colocado em situação de crise, o sistema neoliberal tende a radicalizar sua lógica e a explorar mais ainda a força de trabalho. Ao invés de mudar de rumo, faz mais do mesmo, colocando pesada cruz sobre as costas dos trabalhadores. Não se trata daquilo relativamente já estudado do “assédio moral”, vale dizer, das humilhações persistentes e prolongadas de trabalhadores e trabalhadoras para subordiná-los, amedrontá-los e, por fim, levá-los a deixar o trabalho. O sofrimento agora é mais generalizado e difuso afetando, ora mais ora menos, o conjunto dos países centrais. Trata-se de uma espécie de “mal-estar da globalização” em processo de erosão humanística.

Ele se expressa por grave depressão coletiva, destruição do horizonte da esperança, perda da alegria de viver, vontade de sumir do mapa e até, em muitos, de tirar a própria vida. Por causa da crise, as empresas e seus gestores levam a competitividade até a um limite extremo, estipulam metas quase inalcançáveis, infundindo nos trabalhadores, angústias, medo e, não raro, síndrome de pânico. Cobra-se tudo deles: entrega incondicional e plena disponibilidade, dilacerando sua subjetividade e destruindo as relações familiares. Estima-se que no Brasil cerca de 15 milhões de pessoas sofram este tipo de depressão, ligada às sobrecargas do trabalho.

A pesquisadora Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalho, observou que no ano passado, numa pequisa ouvindo 400 pessoas, que cerca de um quarto delas teve idéias suicidas por causa da excessiva cobrança no trabalho. Continua ela: “é preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas”. Especialmente são afetados os bancários do setor financeiro, altamente especulativo e orientado para a maximalização dos lucros. Uma pesquisa de 2009 feita pelo professor Marcelo Augusto Finazzi Santos, da Universidade de Brasília, apurou que entre 1996 a 2005, a cada 20 dias, um bancário se suicidava, por causa das pressões por metas, excesso de tarefas e pavor do desemprego. Os gestores atuais mostram-se insensíveis ao sofrimento de seus funcionários, acrescentando-lhes ainda mais sofrimento.

A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de três mil pessoas se suicidam diariamente, muitas delas por causa da abusiva pressão do trabalho. O Le Monde Diplomatique de novembro do corrente ano, denunciou que entre os motivos das greves de outubro na França, se achava também o protesto contra o acelerado ritmo de trabalho imposto pelas fábricas causando nervosismo, irritabilidade e ansiedade. Relançou-se a frase de 1968 que rezava:”metrô, trabalho, cama”, atualizando-a agora como “metrô, trabalho, túmulo”. Quer dizer, doenças letais ou o suicídio como efeito da superexploração capitalista.

Nas análises que se fazem da atual crise, importa incorporar este dado perverso que é o oceano de sofrimento que está sendo imposto à população, sobretudo, aos pobres, no propósito de salvar o sistema econômico, controlado por poucas forças, extremamente fortes, mas desumanas e sem piedade. Uma razão a mais para superá-lo historicamente, além de condená-lo moralmente. Nessa direção caminha a consciência ética da humanidade, bem representada nas várias realizações do Forum Social Mundial entre outras.

*Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-Cuidar da vida:como evitar o fim do mundo, Record 2010.