segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A falta que o respeito faz



A cultura moderna, desde os seus albores no século XVI, está assentada sobre uma brutal falta de respeito.

Primeiro, para com a natureza, tratada como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe todos os segredos (Bacon). Depois, para com as populações originárias da América Latina.

Em sua “Brevíssima Relação da Destruição das Indias”(1562) conta Bartolomé de las Casas, como testemunho ocular, que os espanhóis “em apenas 48 anos ocuparam uma extensão maior que o comprimento e a largura de toda a Europa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiça e tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um país que tínhamos visto cheio de gente e de gente tão humana” (Décima Réplica).

Em seguida, escravizou milhões de africanos trazidos para as Américas e negociados como “peças” no mercado e consumidos como carvão na produção.

Seria longa a ladainha dos desrespeitos de nossa cultura, culminando nos campos de extermínio nazista de milhões de judeus, de ciganos e de outros considerados inferiores.

Sabemos que uma sociedade só se constrói e dá um salto para relações minimamente humanas quando instaura o respeito de uns para com os outros. O respeito, como o mostrou bem Winnicott, nasce no seio da família, especialmente da figura do pai, responsável pela passagem do mundo do eu para o mundo dos outros que emergem como o primeiro limite a ser respeitado.

Um dos critérios de uma cultura é o grau de respeito e de autolimitação que seus membros se impõem e observam. Surge, então, a justa medida, sinônimo de justiça. Rompidos os limites, vigora o desrespeito e a imposição sobre os demais. Respeito supõe reconhecer o outro como outro e seu valor intrínseco seja pessoas ou qualquer outro ser.

Dentre as muitas crises atuais, a falta generalizada de respeito é seguramente uma das mais graves. O desrespeito campeia em todas as instâncias da vida individual, familiar, social e internacional. Por esta razão, o pensador búlgaro-francês Tzvetan Todorov em seu recente livro “O medo dos bárbaros” (Vozes 2010) adverte que se não superarmos o medo e o ressentimento e não assumirmos a responsabilidade coletiva e o respeito universal não teremos como proteger nosso frágil planeta e a vida na Terra já ameaçada.

O tema do respeito nos remete a Albert Schweitzer (1875-1965), prêmio Nobel da Paz de 1952. Da Alsácia, era um dos mais eminentes teólogos de seu tempo. Seu livro “A história da pesquisa sobre a vida de Jesus” é um clássico por mostrar que não se pode escrever cientificamente uma biografia de Jesus.

Os evangelhos contém história mas não são livros históricos. São teologias que usam fatos históricos e narrativas com o objetivo de mostrar a significação de Jesus para a salvação do mundo. Por isso, sabemos pouco do real Jesus de Nazaré.

Schweitzer comprendeu: histórico mesmo é o Sermão da Montanha e importa vivê-lo. Abandonou a cátedra de teologia, deixou de dar concertos de Bach (era um de seus melhores intérpretes) e se inscreveu na faculdade de medicina. Formado, foi a Lambarene no Gabão, na África, para fundar um hospital e servir a hansenianos. E ai trabalhou, dentro das maiores limitações, por todo o resto de sua vida.

Confessa explicitamente: ”o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum sentido. O que importa mesmo é tornar-se um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”.

No meio de seus afazares de médico, encontrou tempo para escrever. Seu principal livro é: ”Respeito diante da vida” que ele colocou como o eixo articulador de toda ética. “O bem”, diz ele, “consiste em respeitar, conservar e elevar a vida até o seu máximo valor; o mal, em desrespeitar, destruir e impedir a vida de se desenvolver”.

E conclui: ”quando o ser humano aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante; a grande tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive”.

Como é urgente ouvir e viver esta mensagem nos dias sombrios que a humanidade está atravessando.



Leonardo Boff é autor de “Convivência, Respeito, Tolerância”,Vozes 2006.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Uma cidade aberta e segura

Nabil Bonduki 18 de agosto de 2010 às 16:10h

Empreendimentos que já nascem segregados, como shoppings centers, condomínios residenciais fechados, centros empresariais e seletos aglomerados de lazer, somam iniciativas ilegais de fechamento de áreas públicas. Por Nabil Bonduki

A cidade como lugar aberto e democrático onde “se respira o ar da liberdade”, como era entendida desde a Idade Média, vem sendo destruída pela crescente criação de empreendimentos segregados da malha urbana. Como castelos medievais, as cidades brasileiras estão se transformando numa somatória de áreas segmentadas, muradas, controladas por guaritas policiadas e por circuitos internos de televisão, num verdadeiro “big brother” urbano, que nos remete à apavorante sociedade em que os cidadãos são vigiados 24 horas.
A suposta falta de segurança é o argumento principal para este verdadeiro aparthaid urbano, que imita as sociedades racistas e divididas por conflitos étnicos e políticos. A ausência do Estado e o medo, difundido por programas televisivos, geram negócios imobiliários que se utilizam do marketing de segurança para vender produtos que se alimentam ainda da desigualdade e do preconceito social, que assolam não só as classes média e alta de uma sociedade muito desigual, como até mesmo setores populares que começam a ter alguma capacidade de consumo.

Aos empreendimentos que já nascem segregados, como shoppings centers, condomínios residenciais fechados, centros empresariais e seletos aglomerados de lazer, se somam iniciativas ilegais de fechamento de áreas públicas como ruas, loteamentos, vilas e conjuntos habitacionais, patrocinadas por associações de moradores e, muitas vezes, apoiadas pelas próprias prefeituras. Espaços públicos que, por lei, deveriam estar abertos a todos os cidadãos, são fechados por grades, muros, e cancelas. Taxas a título de condomínio – que legalmente inexistem – são cobradas ilegalmente de moradores por associações administradoras, numa dupla tributação que vem criando dívidas impagáveis e fortes conflitos entre os moradores adeptos e contrários a este tipo de iniciativa.

Este conceito de segurança está sendo colocado em xeque pela onda de assaltos a shoppings centers e a condomínios de luxo em São Paulo. Ao contrário do que muitos imaginavam, estes espaços fechados e segregados não garantem a almejada proteção. Desde o início de 2010, em São Paulo, 15 shoppings foram assaltados, com trocas de tiros, mortos e feridos; 11 condomínios de luxo foram invadidos por quadrilhas armadas, que tomaram por várias horas o controle do lugar, se apropriando das guaritas e dos circuitos internos de segurança para promover um arrastão sistemático de todo o prédio.
Este modelo urbano, que vem se consolidando no Brasil, baseado em bankers fortificados e armados, ao contrário de garantir a segurança, desnudam uma cidade cada vez mais insegura. Sua lógica se combina com uma mobilidade feita exclusivamente por automóveis individuais, que levam as pessoas de estacionamento a estacionamento, sem nenhum contato direto com o espaço público. Alguns paraísos do consumo sofisticado, como shoppings de luxo, não permitem mais o acesso a pé. À sua volta, longos muros criam ruas esvaziadas.

Este processo de desertificação de ruas, praças e parques tornam as cidades ainda mais inseguras, numa espiral decrescente que realimenta o despovoamento do espaço público. Voltados para áreas internas e controladas, lojas, residências, serviços e locais de lazer e cultura, como cinemas e teatros, deixam de se abrir para as calçadas públicas – quando elas existem – que se transformam em corredores vazios onde caminhar entre veículos em alta velocidade e altos muros reforçam a sensação de solidão e medo.

Será possível alterar essa tendência que levará ao desaparecimento da cidade como o lugar da liberdade, da democracia e do convívio humano aberto e sem descriminação? Evidências criam alguma esperança. No debate sobre a nova lei de parcelamento do solo, que há anos se processa no Congresso Nacional, várias entidades têm se posicionado contra a regulamentação dos condomínios fechados, que até hoje inexiste na legislação. O Ministério Público tem promovido ações exigindo a abertura de ruas, loteamentos, praias e espaços púbicos apropriados por particulares ou associações privadas. Moradores de loteamentos fechados irregularmente lutam na justiça contra o pagamento de taxas de condomínios formados sem seu consentimento.
Cresce a consciência de que é necessário reverter este processo. Algumas práticas cotidianas resistem ao desaparecimento da vida urbana. Jovens, de diferentes segmentos sociais, se apropriam de espaços públicos, com se vê nos finais de tarde entre a Avenida Paulista, a Rua Augusta e a Praça Roosevelt, em São Paulo e em tantos “pedaços” de outras cidades brasileiras, como nas orlas marítimas. Namoram, passeiam e se divertem num espaço seguro porque povoado. É crescente o número de pessoas que praticam caminhadas em ruas das cidades.

O comércio de rua, livres das altas taxas que pagam em shoppings, resistem dando vida aos bairros e oferecendo produtos e serviços mais baratos. Ruas se especializam na venda de produtos especializados, como eletrônicos ou madeiras. Na falta de espaços públicos de qualidade, postos de gasolina e suas lojas de conveniência se transformaram em ponto de referência nas noites quentes, mostrando que as pessoas querem viver em cidades abertas, mesmo quando inexistem ambientes adequados. Ciclistas lutam para ganhar espaço e segurança nas vias públicas, ainda apropriadas de forma individual e privada pelos automóveis. Transporte coletivo de qualidade tornou-se objeto de desejo para um crescente setor que já percebeu que é insustentável todos se deslocarem por automóveis.

Reverter o modelo urbano que vem se consolidando no país, baseado em territórios fechados, espaços públicos desertos, na segregação social e no carro como o principal modo de mobilidade, é uma necessidade civilizadora. Felizmente, há alguma luz no final do túnel.
Nabil Bonduki

Nabil Bonduki é arquiteto e professor de Planejamento Urbano da FAU-USP. Mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas.