terça-feira, 26 de novembro de 2013

A mais longa viagem: rumo ao próprio coração - Leonardo Boff

Observava o grande conhecedor dos meandros da psiqué humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o Todo. Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las. Indo diretamente ao assuto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento. Mais que idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida. O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos, surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e inteligente, Todos nós esamos vinculados a esta tradição primeva. O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco em Lampedusa face aos imigrados africanos criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadeer e de chorar. Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se começou resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50). Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passa a vida, a Humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar a inteligência emoconal sem o que não construíremos uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor. Um dado entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psiqué humana. Partindo de Aristótles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura( chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher, Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo. O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido tambem pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano. O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular. Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito. Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As Confissões testemunha com comovido sentimento: Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei.Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não respousar em ti (livro X, n.27). Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigíla. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso humano e divino. Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes 2002.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Pelo Direito de usar meu O'

Nasci em uma família cujas origens ainda não conseguimos esclarecer: seria francesa? seria portuguesa? Pelo menos um historiador paraense diz que a família O' de Almeida é originária de Salvador, Bahia. O fato é que crescemos tendo que esclarecer e explicar o O' de nosso nome composto O'de Almeida. Outro dia descobrimos um ramo da família com uma escrita diferente: eles são "do O'de Almeida", com raízes em Belém. Estaríamos nós do ramo de Antônio O' de Almeida a grafar incorretamente o nome? Isto será trabalho para quando o tempo deste seja o mesmo do lazer. Aliás, em Belém, a família O' de Almeida registra o nome de duas vias e uma praça: a Rua O' de Almeida, em homenagem a Antônio O'de Almeida, não o pai, mas seu filho, que foi intendente (prefeito) de Belém. A sua irmã Teodósia se casou com Lauro Sodré, duas vezes governador do Pará e várias senador. Os filhos de Lauro Sodré fundaram o Botafogo Football Club, mas não ficaram conhecidos pelos seus nomes O'de Almeida, mas pelo Sodré. Aliás, em quase todos os registros históricos no Rio, onde moraram, e do Botafogo relacionados à Emmanuel e Benjamin(o Mimi, grande artilheiro) se intitulam "de Almeida Sodré" e não "O'de Almeida Sodré". A passagem Vereador Emanoel O'de Almeida e a praça Emanoel O'de Almeida são em homenagem a meu pai (1930-1996), fotógrafo, jornalista e vereador (de 1976 a 1996). Mas, voltando ao assunto, desde que me entendi por gente percebi que temos problemas com o O'. Parece incrível, mas o O' é como se fosse invisível ou uma grande oportunidade para as pessoas demonstrarem como são atenciosas e espertas para perceberem que o O' é uma abreviação. Então, tomem a me chamar de Mauro de Almeida, ou Mauro Oliveira de Almeida. Chegam até a dizer Mauro "O' de Oliveira" (é muito perspicaz o ser humano). Alguns primos resolveram capitular, simplesmente excluíram o O' da sua vida. Mas, eu não. Como hoje em dia sou um homem público, em qualquer evento que me chamam para falar ou palestrar, 99% das vezes meu O' é excluído. Vai daí que começo sempre lembrando que a única herança que meu pai me deixou foi meu nome e que por isso tenho o dever de lutar por minha própria existência. Normalmente, isso serve para quebrar o gelo na minha fala, já que as pessoas recebem como uma coisa engraçada. Mas, elas não sabem o que é passar décadas corrigindo o nome. Tentei ver se a numerologia me socorria, quem sabe mudando a estrutura, o nome se tornasse até mais forte. Nada. Forte mesmo é o O' de Almeida, numerologicamente falando. O pior é que, agora, na ditadura digital, o apóstrofo (sim, reconheço que essa parte é difícil, afinal o apóstrofo, segundo o Houaiss, é um sinal diacrítico freq. em forma de vírgula voltada para a esquerda, mas tb. reto, que, alceado a um nível superior ao das letras minúsculas, serve para indicar a supressão de letra(s) e som(ns) - como, p.ex., mãe-d'água, Vozes d'África etc.- não é o que podemos chamar de uma coisa comum e também não parece estar cumprindo a sua função de acepção suprimindo alguma parte do nome que viria depois) não é reconhecido como um caractere válido. Ou seja, já era meu O' na identidade, carteira funcional, título de eleitor, passaporte. Mas, não me rendo. Fico pensando naquelas pessoas que tem nomes bem mais complicados, como meu amigo Stoessel, ou o Wandenkolk Pasteur, deputado federal pelo Pará (como será que ele pede voto para o interiorano humilde?). Mas, tal qual a Scarlett O'Hara (olha o apóstrofo aí de novo) e suas frases de efeito em "E o vento levou", enquanto vida tiver "jamais passarei fome outra vez". Bem, isso espero também, mas "jamais deixarei de lutar pelo direito de usar o meu O'", pois "amanhã será outro dia" e certamente terei que lutar pela sua existência, pois, uma coisa é certa, sem meu O' eu não sou ninguém.

A transfiguração na morte - Leonardo Boff

O Dia dos Mortos, 2 de novembro, é sempre ocasião para pensarmos na morte. Trata-se de um tema existencial. Não se pode falar da morte de uma maneira exterior a nós mesmos, porque todos nós somos acompanhados por esta realidade que, segundo Freud, é a mais difícil de ser digerida pelo aparelho psíquico humano. Especialmente nossa cultura procura afastá-la, o mais possível, do horizonte, pois ela nega todo seu projeto assentado sobre a vida material e seu desfrute etsi mors non daretur, como se ela não existisse. No entando, o sentido que damos à morte é o sentido que nós damos à vida. Se decidimos que a vida se resume entre o nascimento e a morte, e esta detém a última palavra, então a morte ganha um sentido, diria, trágico, porque com ela tudo termina no pó cósmico. Mas se interpretarmos a morte como uma invenção da vida, como parte da vida, então não a morte mas a vida constitui a grande interrogação. Em termos evolutivos, sabemos que, atingido certo grau elevado de complexidade, ela irrompe como um imperativo cósmico, no dizer do Prêmio Nobel de Biologia Christian de Duve, que escreveu uma das mais brilhantes biografias da vida sob o título Poeira vital (1984). Mas ele mesmo assevera: podemos descrever as condições de seu surgimento, mas não podemos definir o que ela seja. Na minha percepção, a vida não é nem temporal, nem material, nem espiritual. A vida é simplesmente eterna. Ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte. Transformamo-nos pela morte, pois ela representa a porta de ingresso no mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo mas só a eternidade. Consintam-me testemunhar duas experiências pessoais de morte, bem diversas da visão dramática que a nossa cultura nos legou. Venho da cultura espiritual franciscana. Nos meus quase 30 anos de frade, pude vivenciar a morte como São Francisco a vivenciou. A primeira experiência era aquela que, como frades, fazíamos toda sexta-feira, às sete e meia da noite: “o exercício da boa morte”. Deitávamo-nos na cama, com hábito e tudo. Cada um se colocava diante de Deus e fazia um balanço de toda a sua vida, regredindo até onde a memória pudesse alcançar. Colocávamos tudo, à luz de Deus e aí, tranquilamente, refletíamos sobre o porquê da vida e o porquê dos zigue-zagues deste mundo. No final, alguém recitava em voz alta no corredor o famoso salmo 50, o Miserere, no qual o rei Davi suplicava a Deus o perdão de seus pecados. E também se proclamavam as consoladoras palavras da epístola de São João: “Se o teu coração te acusa, saiba que Deus é maior do que o teu coração”. Éramos, assim, educados para uma entrega total, um encontro face a face com a morte diante de Deus. Era um entregar-se confiante, como quem se sabe na palma da mão de Deus. Depois, íamos alegremente para a recreação tomar algum refresco, jogar xadrez ou simplesmente conversar. Esse exercício tinha como efeito um sentimento de grande libertação. A morte era vista como a irmã que nos abria a porta para a Casa do Pai. A outra experiência diz respeito ao dia da morte e do sepultamento de algum confrade. Quando morria alguém, fazia-se festa no convento, com recreação à noite com comes e bebes. O mesmo ocorria depois de seu sepultamento. Todos se reuniam e celebravam a passagem, a páscoa e o natal, o vere dies natalis (o verdadeiro dia do nascimento) do falecido. Pensava-se: ele na vida foi, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de nascer em Deus. Por isso havia festa no céu e na terra. Esse rito é sagrado e celebrado em todos os conventos franciscanos. O frade que deixou este mundo entrava na comunhão dos santos, está vivo, não é um ausente, apenas um invisível. Há celebração mais digna da morte do que esta inventada por São Francisco de Assis, que chamava a todos os seres de irmãos e irmãs e também a morte de irmã? A percepção da morte é outra. As pessoas são induzidas a conviver com a morte, não como uma bruxa que vem e arrebata a vida mas como a irmã que vem abrir a porta para um nível mais alto de vida em Deus. Cada cultura tem a sua interpretação da morte. Estive há tempos entre osmapuches,no sul da Patagônia argentina, falando com os lomkos, os sábios da tribo. Eles têm bem outra compreensão da morte. A morte significa passar para o outro lado, para o lado onde estão os anciãos. Não é abandonar a vida, é deixar seu lado visível para entrar no lado invisível e conviver com os anciãos. De lá acompanham as famílias, os entes queridos e outros próximos, iluminando-os. A morte não tem nenhuma dramaticidade. Ela pertence à vida, é o seu outro lado. Poderíamos passar por várias outras culturas para conhecer-lhes o sentido da vida e da morte. Mas fiquemos no nosso tempo moderno. Há um filósofo que trabalhou positivamente o tema da morte: Martin Heidegger. Em sua analítica existencial afirma que a condição humana, em grau zero, é a de que somos um ser no mundo, este não como lugar geográfico mas como o conjunto das relações que nos permitem produzir e reproduzir a vida. A condition humaine é estar no mundo com os outros, cheios de cuidados e abertos para a morte. A morte é vista não como uma tragédia e, sim, como a derradeira expressão da liberdade humana, enquanto último ato de entrega. Essa entrega sem resto abre a possibilidade para um mergulho total na realidade e no Ser. É uma espécie de volta ao seio de onde viemos como entes mas que buscam o Ser. E finalmente, ao morrer, somos acolhidos pelo Ser. E aí já não falamos porque não precisamos mais de palavras. É o puro viver pela alegria de viver e de ser no Ser. Para o homem religioso, este Ser não é outro senão o Supremo Ser, o Deus vivo que nos dá a plenitude da vida. *Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro 'Vida para além da morte' ( Vozes, 2012)

O júbilo e a hipocrisia - Mauro Santayana

O ministro Joaquim Barbosa escolheu a data de 15 de novembro, Proclamação da República, para ordenar a prisão e a transferência para Brasília, em pleno feriado, e sem carta de sentença, de parte dos réus condenados pela Ação-470. O simples fato de saber que os “mensaleiros” — como foram batizados pela grande mídia — viajaram algemados e em silêncio; que estão presos em regime fechado, tomando banho com água gelada, e comendo de marmita, encheu de regozijo parte das redes sociais. É notável o ensandecido júbilo, principalmente nos sites e portais frequentados por certa minoria que se intitula genericamente de “classe média”, e se abriga nas colunas de comentários da mídia mais conservadora. Parte da população, a menos informada, é levada a comemorar a prisão do grupo detido neste fim de semana como se tratasse de uma verdadeira Queda da Bastilha, com a ida de “políticos” “corruptos” para a cadeia. Outros, menos ingênuos e mais solertes, saboreiam seu ódio e tripudiam sobre cidadãos condenados sob as sombras do “domínio do fato”, quando sabem muito bem que dezenas, centenas de corruptos de outros matizes políticos — alguns comprovadamente envolvidos com crimes cometidos anos antes desse processo — continuam soltos, sem nenhuma perspectiva de julgamento. Esses, para enganar os incautos, já anteveem a queda da democracia. Propõem a formação de grupos de “caça aos corruptos”, desde que esses tenham alguma ligação com o governo. Sugerem que cidadãos se armem. Apelam para intervenções golpistas. Torcem para que os presos de ontem, que estejam doentes morram, ou que sejam agredidos por outros presos. Ora, não existe justiça sem isonomia. Já que não se pode exigir equilíbrio e isenção de quem vive de manipular a opinião pública, espera-se que a própria população se manifeste, para que, na pior das hipóteses, o furor condenatório e punitivo de certos juízes caia, com a sutileza de um raio lançado por Zeus, sobre a cabeça de outros pecadores. Há casos dez, vinte vezes maiores, que precisam ser investigados e julgados. Escândalos que envolvem inclusive a justiça de outros países, milionários e recentes ou que se arrastam desde a época da aprovação do instituto da reeleição — sempre ao abrigo de gavetas amigas, ou sucessivas manobras e protelações, destinadas a distorcer o tempo e a razão, como se estivéssemos em órbita de um buraco negro. Seria bom, no entanto, que tudo isso se fizesse garantindo o mais amplo direito de defesa, no exclusivo interesse da Justiça. Ou a justiça se faz de forma equânime, desinteressada, equilibrada, justa, digna e contida, ou não pode ser chamada de Justiça. .