domingo, 30 de agosto de 2009

Cena de Belém 2


A partir deste e do post abaixo, pretendo mostrar os erros do urbanismo da cidade de Belém.
Para tanto, ando agora com uma câmera digital no carro. São tantos os absurdos que será fácil demonstrar as cenas de Belém.
A deste post mostra o Bairro do Bengui, que nasceu de várias invasões, ou ocupações irregulares ou informais na década de 80.
É um bairro que tem pequenas calçadas ou não as tem. Quando tem, há casos de toldos, puxadinhos, barracas de frutas, talhos de peixes, todos nas...calçadas. E as pessoas andam nas ruas. No meio das ruas. À pé ou de bicicleta.
Trata-se de um exemplo de ausência de Estado, onde a população faz um pacto, instintivo quando possível, de não-agressão. Como dito, quando possível. Quando não é possível, a polícia é chamada. Normalmente para recolher corpos.

Cena de Belém




Avenida Nazaré, terça-feira, 13:15 h. Neste perímetro da foto, dois colégios com mais de 1.000 alunos. O trânsito é difícil. Agentes de trânsito aplicam multas naquelas que param em fila-dupla ou demoram a circular na frente dos colégios.
Porém, bem ao lado de um deles, um caminhão recolhe um container de entulhos.
Fica atravessado na pista e atrapalha o trânsito. Ele não deveria estar lá, nem fazendo o que estava fazendo. Mas está.
Assim é Belém.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O impacto da primeira infância na compreensão do mundo

Por João Augusto Figueiró*




Quando se pretende falar sobre “o impacto da primeira infância na compreensão do mundo” temos que considerar o mundo adulto e o mundo da criança, a desumanidade do primeiro e a humanidade do segundo. O adulto de hoje foi criança um dia e a criança de hoje será o adulto do futuro. De onde provêm, então, a crueldade e a desumanidade da sociedade contemporânea?

A idéia de que a primeira infância é um período decisivo na formação da personalidade, do caráter e no modo de agir do adolescente e do adulto encontra sustentação em dados recolhidos nos últimos 100 anos de pesquisas científicas. De fato, os primeiros seis anos são fundamentais para a constituição da pessoa. Achados recentes da Neurociência oferecem evidências de que acontecimentos precoces de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda vida nas conexões sinápticas através de fenômenos de neuroplasticidade e biomoleculares. Todos nós construímos um mapa da realidade a partir das experiências vividas na infância. Assim, é possível, e muito mais eficiente, lançar os valores e fundamentos éticos da cidadania e da cultura de paz nesta primeira fase da vida, uma vez que a criança é dotada de uma capacidade absorvente, isto é, a criança é aquela que tudo recebe, julga com imaturidade, pouco recusa ou reage. Absorve e estrutura a personalidade do futuro adulto. É a criança que constrói seu conteúdo mental a partir do alimento social e assim acumula experiências que serão utilizadas para a construção de sua vida.

Sabemos há milênios que um adulto é resultado de sua própria natureza, das suas relações com a família e diferentes grupos sociais, com a cultura e com os valores, crenças, normas e práticas. “Educai as crianças e não será necessário castigar os homens”, dizia Pitágoras. Platão clamava pelos melhores “nutrientes” sociais e culturais a serem transmitidos aos menores. Freud demonstrava que as interações precoces envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o ambiente. Para Karl Jasper “o homem só pode chegar a seu verdadeiro ser conduzido pelo outro”. Jean Jacques Rosseau definiu o homem como um ser “feliz e bom”, determinando que os preconceitos culturais e as normas da vida social produziriam “sua crueldade e infortúnio”. Locke assegurou: “a criança tem tendência inata a desenvolver sua personalidade original sob a influência do ambiente e da aprendizagem” e Maria Montessori definiu a preparação do ambiente muito antes do ingresso da criança na escola como “chave da educação e da cultura real da pessoa desde o seu nascimento”.

Esquecemos todos esses ensinamentos? Dados práticos dizem que sim: Dos 22 milhões de crianças brasileiras de zero a seis anos, mais de 14 milhões estão fora de qualquer atendimento escolar da educação infantil ou de apoio institucional. O percentual de não-atendidos chega à quase 70%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A agência Senado informa que 13 milhões de crianças nessa mesma faixa etária, pertencentes a famílias carentes, estão fora de creches. Somos também detentores do triste recorde de termos as crianças mais estressadas do mundo. Infelizmente não temos, no Brasil, dados estatísticos oficiais confiáveis com abrangência nacional sobre a violência contra a criança e o adolescente exceto quando ocorre morte da vítima ou prisão do agressor. Temos alguns dados locais, municipais, alguns estudos - frequentemente parciais ou locais, algumas amostragens, muitas teses, mas nada de relevante com abrangência nacional, além da taxa de mortalidade por “causas externas” que inclui assassinatos, afogamentos, acidentes, inclusive a violência. Nosso sistema de registro é falho, os profissionais que atendem a estas vítimas geralmente não receberam o treinamento adequado, a notificação compulsória - apesar de existir - não é aplicada devidamente. Viceja a guerra dos números com equívocos, manipulações, uso e abuso político dos dados, enquanto ações efetivas e preventivas não são praticadas, devido à costumeira justificativa da “falta de recursos”, fatos abertamente denunciados no livro Midia & Violência. Sobre a questão da violência e abusos perpetrados contra as crianças e adolescentes e suas repercussões podemos citar indicadores indiretos como a evasão escolar, adolescentes infratores ou em abrigos, e mesmo as taxas de morbidade (número de crianças atendidas nos principais hospitais de emergência do país) são falhas. Informações devem ser buscadas em sítios oficiais do sistema de saude ou das taxas de mortalidade, via DATASUS (www.datasus.gov.br), IPEA (www.ipeadata.gov.br), IBGE (www.ibge.gov.br) ou SENASP-MJ (www.mt.gov.br/senasp).

O fenômeno da violência contra a criança no Brasil merece, por sua magnitude e ubiqüidade, especial atenção: crianças abusadas e maltratadas em todas as classes sociais e regiões, compreendendo abusos físicos, emocionais ou psicológicos, sexuais (incluindo a exploração sexual comercial), diferentes formas de negligência (omissão, abandono da familia e do Estado) e o trabalho infantil - considerados crimes perante o Estatuto da Criança e do Adolescente - tornaram-se lugar comum em nossa sociedade, banalizando a violência por meio da impunidade e da corrupção que grassam nas várias esferas governamentais. Apesar de criminosos, a maioria destes eventos não é sequer julgada ou punida. Muitas categorias de transtornos mentais têm sido, há muito tempo, associadas ao abuso, negligência e violência na infancia, principalmente os transtornos depressivos, de ansiedade, dissociativos, de personalidade, ao uso abusivo de alcool e drogas, transtornos de conduta com comportamentos transgressores, impulsivos, agressivos e violentos. Muito se escreve e discute sobre a violência física, abuso sexual, trabalho infantil e outros traumas perpetrados contra nossas crianças. Sem reduzir-lhes a importância e gravidade, falemos também das formas mais silenciosas e sutis de violência que acreditamos ser também um dos maiores responsáveis pela transmissão transgeracional da violência em nossa sociedade. Formas que todos nós poderíamos desestimular ou eliminar, se fôssemos um pouco mais ousados. Há maior violência do que transmitirmos às nossas crianças e adolescentes a cultura do consumismo atual, de proporções assustadoras e sem disfarces, que destrói valores humanos e dilapida as reservas naturais do planeta? Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica, de bens, de conhecimento e de cultura, que tem levado à exclusão progressiva de parcela significativa da população. Adicionemos a esta receita econômica a pressão consumista jamais vista na história humana e teremos pavimentado o terreno para a explosão da violência cotidiana.

A violência leva ao retrocesso, é multideterminada e tem seus fatores de risco e de proteção para a sua emergência e prevenção sobejamente conhecidos na literatura médica. A violência pouco falada começa no período pré-concepção com fetos indesejados, mal-vindos ou rejeitados, decorrentes da insuficiência de um plano nacional eficaz de planejamento familiar e controle da natalidade. Permanece nas gestações mal cuidadas, tensas e desamparadas, de partos desnecessariamente cirúrgicos, resultantes principalmente de interesses pecuniários aos quais nossa sociedade fecha os olhos. Continua na primeira infância privada dos nutrientes afetivos fundamentais para o desenvolvimento saudável do ponto de vista psíquico, social e cultural resultando em modelos corruptos, consumistas, predatórios, competitivos e de dominação que transmitimos às novas gerações.

Exigimos e desenvolvemos no Brasil infra-estrutura física como, por exemplo, pontes, viadutos, estradas, aeroportos e estádios de futebol, mas poucos se debruçam sobre o que temos feito no desenvolvimento da infra-estrutura humana que irá gerir estes primeiros recursos. Se a educação acadêmica fosse suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento - e não vai aqui qualquer bravata contra investimentos nesta área, muito ao contrário - não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, os governos tirânicos e corruptos, as “guerras cirúrgicas”, realizações de pessoas muito letradas e “educadas”. Se argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos não convencem, mostremos então razões econômicas para investir na primeira infância. O Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que um dólar investido nesta faixa etária gera economia de sete dólares em assistência social, atendimento a doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e em evasão escolar e 15 dólares por pessoa em doenças que continuam a se manifestar na vida adulta como depressões, suicídios, homicídios, abusos de drogas, sintomas físicos entre outros. Nada teremos de diferente do cenário atual se não tomarmos rumos econômicos mais humanitários conosco mesmos.

O novo cenário exige o resgate de valores essenciais à vida em sociedade, tais como a ética, amor e respeito às diferenças. Com isso será possível a promoção da convivência societária e solidária fundamentada cientificamente na resiliência e na salutogênese. A resiliência, interativa, refere-se à relativa resistência de um individuo às experiências de risco em seu ambiente na superação dos estresses e adversidades de maneira saudável. É utilizado para referir-se a pessoas de performances psicológicas boas a despeito de vivências negativas das quais esperaríamos seqüelas graves. A salutogênese designa as forças que geram saúde. Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, é o oposto da patogênese, ou seja, as influências que causam a doença. Antonovsky recomenda potencializar forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar esta “força”, pela ciência, pela chamada salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social. Eis aqui os principais antídotos da violência que nos dispomos a aplicar.

Organização não-governamental, apartidária e humanitária sem fins lucrativos, o Instituto Zero a Seis (www.zeroaseis.org) nasceu para colaborar, sempre em bases científicas, na construção de uma geração que tenha a cultura de paz e não-violência como fundamento de seu estilo de vida reunindo e disseminando conceitos e práticas para criar uma massa crítica de consciência suficiente para cuidar melhor da primeira infância. No universo de seu público-alvo estão jovens, adultos cuidadores de crianças, pais e mães, educadores, cientistas, profissionais do Direito e da Saúde - especialmente da área mental -, comunicadores, empresários, gestores públicos e privados, artistas e formadores de opinião, além de empresas e instituições.

Portanto, é preciso agir preventivamente contra esses abusos físicos, sexuais e psíquicos oferecendo à criança ritmo, atenção, bons modelos de identificação, ambiente familiar saudável e estável e constância de vínculos, dentro de constelações sociais confiáveis que estimulem o desenvolvimento, o aprendizado de valores relacionados à cultura de paz e não exclusivamente à cultura de guerra que se embasa a história de nossa sociedade direcionados ao consumo, à competição e à rivalidade. Interferir adequadamente na infância é um desafio, e os achados científicos recentes podem contribuir para a implantação de práticas e políticas relativas à primeira infância voltadas à promoção da cidadania por meio do fomento da saúde mental e social (salutogênese) e de formas de educação e cuidado da criança que contribuam para que ela possa resolver, desde cedo, de forma pacífica e não-violenta os seus conflitos e superar as adversidades da vida, lidando de maneira respeitosa e generosa com o outro e com o ambiente, e confrontando-se com a realidade de forma construtiva e inclusiva das diferenças (resiliência). De fato, os conceitos de salutogênese e resiliência podem ser relevantes para explicar porque os indivíduos conseguem triunfar mesmo em ambientes eminentemente hostis e adversos.

Seria este o discurso delirante de um humanista nefelibata? Paulo Freire em a “Pedagogia da Indignação” nos socorre e ensina que “o discurso da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da constatação da impossibilidade, mas o discurso ideológico da inviabilização do possível”. Convirjamos então na construção desta “utopia possível”.

* João Augusto Figueiró é médico e psicoterapeuta do Hospital das Clinicas da FMUSP. Trabalhou ativamente na implantação das atividades da Universidade da Paz - ONU (www.upeace.org) em São Paulo e na construção da Rede Gandhi - uma parceria do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Unesco e Associacao Palas Athena. É membro fundador, presidente e diretor científico do Instituto Zero a Seis - Primeira Infância e Cultura de Paz (www.zeroaseis.org).

Referências:

1. Mídia e Violência: Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no Brasil, Silvia Ramos e Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), Iuperj-Tec, Secretaria Especial de Direitos Humanos e União Européia, 2007 . www.ucamcesec.com.br;

2. Prevenção de abuso sexual infantil: Um enfoque interdisciplinar. Williams, L.C.A. & Araújo, E.A.C. (ORGS.). (2009). Curitiba: Editora Juruá.

3. CD - Abusos, maus tratos e proteção à Criança e ao Adolescente: CEIIAS/IESC/Laprev/ISPCAN (orgs.), Rio de Janeiro, 2009. http://www.ufscar.br/laprev/ e www.ceiias.org.br

4. Violência e saúde mental na infancia e adolescência - Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol. 14, número 2, março/abril 2009, 343-688. www.cienciaesaudecoletiva.com.br;

5. Child Victimization: Maltreatment, Bullying and Dating Violence, Prevention and Intervention, Kathleen A Kendall-Tacket, Sarah M Giacomoni (Eds.), Civic Research Institute, Kingston, NJ, 2005.

6. Adverse Childhood Experience: Straus, MA: Child Abuse and Neglect 1998, 22: 249-270 - http://www.cdc.gov/nccdphp/ace

Agradecimentos:
Dra. Lucia Williams, psicóloga e professora titular da UFSCar, LAPREV, São Carlos, SP;
Dra. Evelyn Eisenstein, médica pediatra e clinica de adolescentes, professora adjunta da FCM-UERJ/NESA e CEIIAS, Rio do Janeiro;
Antonia Sarah Aziz - Educadora
Claudia Lazzarotto - Instituto Zero a Seis.(O autor)

Hábitos de consumo: por que é tão difícil mudar?

Por Neuza Árbocz, para a Envolverde




A situação ambiental atual pede novas formas de realizar negócios, buscando construir um mundo em equilíbrio com o ritmo de renovação da Natureza. A grande questão para as indústrias e empresas é, contudo, como fazer frente ao crescimento, constante, do consumo. O primeiro "R" do "Reduzir, Re-utilizar e Reciclar" está sendo ignorado solenemente, segundo dados de mercado.

A crise que deu ao planeta um tempo de descanso, já dá sinais de enfraquecimento, tendo sido, inclusive, amenizada por medidas imediatistas, como a redução de IPI justamente para carros, um dos elementos centrais da poluição atmosférica e de stress e conflito nos grandes centros urbanos. Mercado se aquecendo, as indústrias precisam encontrar uma forma de ampliar a produção, para manter preços estáveis e evitar antigos fantasmas como o da inflação.

O vício nas datas comemorativas impulsiona ainda mais a roda do consumo, sempre em movimento. E a mais temível de todas as datas, o Natal, logo baterá a nossas portas novamente, provocando ondas de compras de todo tipo de produtos; mesmo os supérfluos, que ficam jogados em gavetas ou aqueles nada duráveis, que estragam mal começamos a usar. Mas afinal, quem quer arriscar novas formas de demonstrar afeto e carinho, sem os tradicionais presentes?

Será que alguém acredita ser possível mantermos estes costumes e diminuir, ao mesmo tempo, o impacto provocado nos ciclos naturais que sustentam nossas vidas? Provavelmente, muitos já diriam que consumir num ritmo tão constante e acelerado não faz mesmo sentido. Contudo, parar de comprar de fato é, ainda, uma atitude de poucos.

Consumo x realização pessoal

Desejamos muitas coisas das quais não precisamos. Comprar coisas chiques, exclusivas e desnecessárias seria uma forma de atender nossa vontade de nos diferenciarmos, de nos sentirmos únicos, segundo o professor e teólogo Jung Mo Sung. Sung explicou, durante uma mesa redonda no Simpósio de Sustentabilidade Planetária organizado pela Fundação Mokiti Okada, nos dias 18 e 19 de agosto em São Paulo, que há 250 anos estamos sendo condicionados a ligar nossa realização pessoal ao consumo.

Para o estudioso, todos nós temos um desejo infinito de Ser e de Ser infinitamente e isto não se preenche com objetos e compras. Mas, como não sabemos exatamente o que queremos ser, temos esta compulsão de tentar completarmos-nos com que há no exterior. Contudo, isto não nos preenche. "Não é possível possuir o infinito", ressalta. "Resolver a Sustentabilidade Planetária é definir como diminuir o sofrimento e aumentar a dignidade e a alegria de viver. Só se atinge a almejada infinitude através do amor mútuo". Para Sung, só este amor tem força bastante para inspirar que se abra mão dos desejos pessoais pelo bem do coletivo. E este amor tem que ser expresso no presente, aqui e agora.

Contudo, ele adverte que é preciso uma visão prática e não romanceada da realidade. "Amar a Natureza e mantê-la intocada é um discurso lindo, mas se torna difícil na prática. Podemos amar as plantas e os animais. Mas, precisamos comer. Aí como faz?", comenta o professor. "É natural defendermos que todos merecem uma vida com conforto. Mas se cada ser humano dos 6,5 bilhões que somos recebesse um rolo de papel higiênico branquinho por semana, que fosse; de onde tiraríamos tantas árvores para produzi-los?", questionou.

Além disto, a complexidade do dia-a-dia nos impede de abandonar certas atitudes, como por exemplo, abrir mão de transportes poluentes. Como dar conta de uma agenda cheia sem usar um carro, numa grande metrópole? Aqueles que tentam se deparam com transporte público insuficiente e, não raro, precário; falta de ciclovias e, muitas vezes, falta até de calçadas seguras para caminhar. "Outro fator que dificulta mudanças é que nos últimos 10 mil anos, grande parcela da população vive acreditando que Deus resolve a história e tudo acabará bem no final. Então, como se motivar a fazer sacrifícios agora, pensando num futuro que já se crê definido?", continuou Sung.

Somos a Vida da Terra

Uma resposta a esta contradição foi sugerida pela Monja Coen, presente na mesma mesa. A religiosa da tradição Zen Budista esclareceu que somos a vida na terra. "Por ignorância, nos percebemos separados, o que nos deixa com "cor rupto" - coração partido, em latim. Neste estado, confundimos nossas necessidades verdadeiras. Se nos víssemos como parte do todo, como realmente somos, agiríamos com gratidão por tudo que existe e nos mantém vivos. Esta gratidão construiria o equilíbrio que está faltando no uso do que a Natureza nos oferece".

Quanto à alimentação, ela relembrou o caso de um monge da mesma tradição que ao ser indagado como aceitava provocar a morte de um peixe - seu prato predileto - para comê-lo, respondeu: "Peixe está se tornando monge", referindo-se ao ciclo contínuo de transformação em que tudo está mergulhado. "O universo está em constante mudança", ressaltou a monja.

Ela destacou a importância de se cuidar de nosso efeito sobre o todo. "O primeiro ambiente de que temos que cuidar, é o nosso próprio corpo. Se partirmos dele, perceberemos que gostamos de ar puro, de água pura e de viver sem violência...". Ao despertar para nosso interior e sua conexão com o todo, podemos dar o melhor de nós, a todo o momento. "Não se trata de fazer o possível. Mas fazer o melhor, pensando em todas as formas de vida ao nosso redor. Eu acredito que somos capazes de dar uma virada e formar uma vida na Terra maravilhosa. Isto tem que começar com seres humanos bons e éticos. Aquilo que pensamos, falamos e fazemos influi e transforma o que existe. O ser humano precisa mudar no seu coração, na sua essência", defendeu Coen. "Eu acredito que somos capazes de fazer a transformação que queremos na Terra. Nosso destino depende de nosso pensamento coletivo", falou a mestra.

Depois dela, o ministro Fernando Augusto de Souza, da Igreja Messiânica, ressaltou que pesquisas já mostraram que aumentar o consumo e a renda não traz mais felicidade. Ele concorda que tudo que expressamos, seja em pensamento, fala ou ação, reflete naquilo que está acontecendo e nos faz um convite para adotarmos o 'regime do relógio do sol'.

"O que faz o relógio do sol? Ele só marca os momentos iluminados. Assim, se formos falar, escrever, produzir arte ou que quer que seja, podemos escolher nos expressar sobre momentos iluminados, momentos que nos inspiram; onde o bem, o bom e o belo se manifestam" falou Augusto, alinhado com o saber antigo que diz: aquilo em que colocamos nossa atenção é o que cresce. "Nosso desafio maior é expressar a Verdade do plano divino, neste mundo de aparência", concluiu o religioso.



* Neuza Árbocz é jornalista.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

TERRAMÉRICA - O longo exílio da Terra

Por Leonardo Boff*




Rio de Janeiro, 24 de agosto (Terramérica).- Duas visões sobre a Terra se contrapõem em nosso tempo. Para uns, é matéria extensa e sem espírito, entregue ao ser humano para que possa explorá-la e expressar sua liberdade criativa conforme seu desejo. Para outros, é nosso lar, um superorganismo vivo que se autorregula, com uma comunidade vital única. Optar por uma ou outra visão tem consequências totalmente diferentes: a cooperação e o respeito, ou a agressão e a dominação.

A humanidade sempre considerou a Terra como a grande mãe que inspirava amor, veneração e respeito. Porém, desde a irrupção da ciência moderna, com René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, a partir do século XVI começou a ser considerada como objeto, “res extensa”, que pode submeter-se à intervenção humana, inclusive violenta, para extrair os benefícios de seus recursos e serviços. Era o projeto do “dominium mundi”. Criou maravilhas como as máquinas e os antibióticos, nos levou à Lua e ao espaço exterior.

Seria obscurantista não reconhecer os méritos desse desígnio. Entretanto, deve-se reconhecer também que a razão instrumental e analítica – sem complementar-se com a razão emocional, sensível e cordial, fundamental para o mundo dos valores – construiu uma máquina de morte, capaz de destruir a espécie humana mediante 25 formas diferentes, com armas nucleares, químicas e biológicas. Nossa geração é a primeira na história da antropogênesis que se transformou em uma força geofísica destrutiva.

Há uma convicção que está se generalizando: assim como está, a humanidade não pode continuar. O modo atual de produção e consumo faz de tudo uma mercadoria, inclusive as realidades mais sagradas como a vida, os órgãos e os genes. A cada ano, 3.500 espécies desaparecem da face da Terra devido às agressões sistemáticas à natureza. A roda do aquecimento global começou a girar e não pode ser detida, apenas se pode reduzir sua velocidade e minimizar seus efeitos catastróficos. Isto pode devastar muitos ecossistemas, arrastando consigo milhões de pessoas obrigadas a se deslocar ou morrer.

Portanto, temos de mudar para sobreviver. O futuro será uma promessa de vida se inaugurarmos “um novo modo sustentável de viver”, como o formulado pela Carta da Terra. É urgente mudar nosso sistema de exploração do planeta e de seus recursos e nossas formas de relações sociais, com mais inclusão, mais igualdade e sintonia com o universo. É imprescindível assumir uma ética do cuidado, do respeito, da responsabilidade, da solidariedade, da cooperação e, não em último lugar, de compaixão com os que sofrem na humanidade e na natureza.

Hoje sabemos que a Terra não possui vida somente em sua atmosfera, formando dessa forma a biosfera, mas que ela mesma é vivente e produtora de todas as expressões vitais. Os modernos a chamam Gaia, o nome mitológico grego para designar a Terra vivente. Nesse contexto crítico, deve-se voltar à concepção da Terra como mãe. Temos que unir dois polos: o mais ancestral, da Terra como mãe de nossos povos originários, com o mais contemporâneo, da nova astrofísica e biologia que vê o planeta como Gaia.

O que São Francisco de Assis contemplava em sua mística cósmica há mais de 800 anos, quando cantava o sol como Senhor e Irmão e a Terra como Mãe e Irmã e chamava todos os seres de irmãos e irmãs, hoje sabemos por uma verificação empírica da biologia genética e molecular. Todos os seres vivos, desde a bactéria que emergiu há 3,8 bilhões de anos, passando pelas grandes florestas, dos dinossauros aos cavalos, dos colibris até nós, temos o mesmo alfabeto genético.

Todos somos constituídos pelos mesmos 20 aminoácidos e as mesmas quatro bases fosfatadas (adenina, timina, citosina e guanina). Somente a combinação das letras químicas deste alfabeto com suas respectivas bases produz as diferenças da grande diversidade biológica. Portanto, todos somos irmãos e irmãs, membros da grande comunidade de vida. Assim, não há meio ambiente, mas o ambiente inteiro. Nós, os seres humanos, não estamos fora ou acima da natureza. Estamos dentro dela, como parte de sua realidade. Somos a porção consciente e inteligente da Terra. Nos últimos séculos, estivemos exilados da Terra. Temos de voltar ao nosso lar e cuidar dele porque se encontra ameaçado em seu equilíbrio e em seu futuro.

* O autor é teólogo, escritor e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Direitos exclusivos IPS.

Crédito da imagem: Fabrício Vanden Broeck


Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

Marina, a mídia e os desafios que virão

Por Alberto Dines, do Observatório da Imprensa




A imprensa saudou com entusiasmo o anúncio do desligamento da senadora Marina Silva do PT e sua filiação ao Partido Verde, pelo qual deverá concorrer à presidência da República. Marina Silva é uma das raras unanimidades positivas. Num momento em que o Senado tornou-se uma Casa dos Horrores, sua trajetória pessoal e política é impecável, sua postura e compostura primam pela elegância.

Marina fala bem, escreve bem e, sobretudo, pensa bem. Tem carisma e nenhuma arrogância. Além dos atributos pessoais, o simples aparecimento de um novo nome num quadro eleitoral há muito saturado pela mesmice já é, em si, excelente notícia – cria novas expectativas, algumas incógnitas e sugere surpresas. A imprensa adora novidades e novidades na corrida presidencial abrem o leque da representatividade e da democracia.

Caso positivo?

Acontece que Marina Silva tem compromissos públicos com a causa ambiental e o desenvolvimento sustentável. Sua plataforma será majoritariamente verde, o que será muito bom para o país, para as Américas e o resto do mundo.

Então, cabe perguntar: este entusiasmo da mídia pela inflexível Marina vai continuar quando suas ousadas e justas propostas começarem a ser debatidas? A mídia saberá acolher suas bandeiras anticonsumo desenfreado com o mesmo entusiasmo com que agora recebeu uma nova candidatura feminina, a anti-Dilma?

Sabemos que a mídia adora denunciar o desmatamento acelerado da Amazônia, mas sabemos também que a mídia é avessa à punição de ruralistas, quase todos na oposição. Nossos veículos usam as cruzadas ambientais para atrair simpatias, sobretudo no leitorado mais jovem. Cada jornalão preserva como ícone um articulista antipoluidor Mas quando entrar em discussão o controle do apetite empresarial a mídia manterá o mesmo idealismo? Em caso positivo, será uma revolução.

* Comentário para o programa radiofônico do OI, 24/8/2009.



(Envolverde/Observatório da Imprensa)

E o corrimão da Presidente Vargas?






Em 23 de Setembro do ano passado, publiquei um post com o título acima perguntando o que foi feito com o corrimão da Presidente Vargas. O que tem esse corrimão?
Na primeira foto acima, percebam que se trata de um obelisco de inauguração da rampa onde encostavam os barcos que traziam e levavam passageiros para o interior do Estado, como para o resto do país.
A data é 1916, quase cem anos atrás, portanto. O corrimão continua quebrado.
Segundo informações da época, ele foi quebrado por um ônibus que fez uma curva deficiente. Parte do corrimão ficou caída um tempo nas escadas e depois foi recolhido pela Prefeitura. Quase um ano e nada de consertarem.
E assim Belém vai construindo as ruínas da cidade.

Esta prédio histórico vai cair







Belém, travessa Gaspar Viana com Praça da Mercês. Um prédio histórico (e tombado) teve retirado o seu telhado e espera a hora da morte.
Retirar telhados de prédios históricos que não interessam mais ao seu proprietário é o traço mais comum para burlar a lei, que limita o uso e disposição de imóveis de valor cultural expressivo, e colocar a culpa na natureza.
Contrasta em relevo nas fotos acima, um outro imóvel ao lado do condenado, que recentemente teve a sua restauração concluída com recursos, inclusive, do projeto MONUMENTA, do Ministério da Cultura.
Este prédio, como todo o conjunto que ele integra, é tombado pelo IPHAN e pelo Município de Belém. É um dos conjuntos históricos mais bonitos da cidade. Se nada for feito ele vai cair

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Oração aos amigos.

Muito obrigado porque nos criastes, ó Deus. Querendo bem uns aos outros, viveremos no vosso amor. Vós nos dais a grande alegria de encontrar nossos amigos e conversar com eles.Podemos assim repartir com os outros as coisas bonitas que temos e as dificuldades que passamos

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Amor



O Amor
Gal Costa
Composição: Caetano Veloso (baseado em poema de Vladimir Maiakovski)

Talvez
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa

Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias

Agora vamos alcançar
Tudo o que não
Podemos amar na vida
Com o estrelar
Das noites inumeráveis

Ressuscita-me
Ainda
Que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro

Ressuscita-me
Lutando
Contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso

Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais
Existam amores servis

Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco

Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme

E o pai
Seja pelo menos
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra
A Terra
A Terra

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Legado da crise: qual é o melhor sonho?

Por Leonardo Boff


A crise atual está destruindo o horizonte de esperança de grande parte da humanidade, especialmente dos jovens. Há um vazio de sonhos e de causas que possam mobilizar as pessoas. Miguel d’Escoto, Presidente da Assembléia da ONU, disse recentemente na esteira de J.Stiglitz, Nobel de economia: “O legado desta crise será uma batalha de alcance global em torno de idéias, melhor dito, em torno de qual sonho será melhor para a Humanidade e para a Terra”.

Tudo geralmente começa de baixo, de algo que parece insignificante mas que está na direção certa e que carrega as potencialidades do novo. Foram estas idéias que me vieram à mente ao participar do 12.Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base em Porto Velho, Rondônia, em meados de julho.

Lá estavam mais de três mil pessoas, representantes das cerca de cem mil comunidades, vindas de todos os cantos do Brasil. Durante três anos, mediante bons subsídios, se preparam, estudando os problemas ecológicos e sociais da Amazônia. O tema foi assim formulado:”Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia”.

Participei de grupos e das plenárias. Fiquei extasiado com nivel de consciência acerca das questões ecológicas locais e globais, do aquecimento global e da tragédia que pode advir sobre toda a humanidade, caso não mudarmos nosso modo de ser. O que mais os preocupava era o impacto dos grandes projetos previstos para a Amazônia: mais de 50 hidrelétricas, mineradoras, siderurgias e a abertura de estradas. Indignação causava o avanço do agronegócio e da pecuária sobre a floresta amazônica e sobre o cerrado.

Curiosamente, davam-se conta de que tais macroprojetos estão dentro da lógica do modelo de crescimento, atrasado, que se impõe de cima para baixo, sem dialogar com as populações locais, indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e outros. Este resistem, fecham estradas, cercam as obras para obrigar os diretores a dialogar com eles. Mas sabem que tais projetos se farão sem qualquer outra consideração. Mas eles querem mostrar que se pode fazer de outro jeito e até de buscar alternativas menos agressoras da natureza.

Foram analisados em detalhe os cinco gritos que irrompem da Amazônia: o grito dos povos originários, obrigados a transladar-se e a perder as suas terras, tradições e culturas; o grito da terra, grilada e devastada pela ganância de lucro; o grito das águas, muitas delas contaminadas pelo mercúrio dos garimpos, matando peixes e tirando a subsistência dos ribeirinhos; o grito das florestas sendo derrubadas; para eles era claro: o problema não é o chão que é pobre, mas o que está em cima dele como as plantas, os animais, os milhares de insetos, em fim, a biodiversidade; a missão da Amazônia não é ser terra para soja, cana ou gado, mas para ficar de pé afim de garantir o equilíbrio dos climas mundiais, assegurar a umidade para longinguas regiões atingidas pelos “rios voadores” que saem da floresta, pois cada grande árvore lança na atmosfera por dia, cerca de 300 litros de água em forma de umidade; o grito das cidades, 40% sem água encanada e 80% sem esgoto.

Tiraram-se conclusões claras: as CEBs não devem ser apenas comunidades eclesias mas também ecológicas de base, coisa que está presente na própria sigla CEBs. importa assumir a florestania, quer dizer, como ser cidadãos na floresta preservada e apoiar os movimentos populares e partidos políticos, ligados à transformação social.

Ecoava nos quatro dias o lema africano dito pelo extraordinário bispo da floresta Dom Moacyr Grechi:”gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, quando unidos, fazem coisas extraordinárias”. E a gente das CEBs está fazendo milagres. Por aqui há caminho e um futuro seminal para a humanidade.

Deus não planta árvores, dizia o Bispo. Planta sementes. Entre elas estão as CEBs: sementes do novo.



Leonardo Boff é autor de Eclesiogênese:a reinvenção da Igreja, Record 2008

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Aprender do sofrimento

Por Leonardo Boff

O sofrimento é a grande escola do aprendizado humano. Contém verdade, a frase atribuída a Hegel:”o ser humano aprende da história que não aprende nada da história, mas aprende tudo do sofrimento”. Prefiro a formulação de Santo Agostinho em suas Confissões:” o ser humano aprende do sofrimento mas muito mais do amor”.

O amor fati (o amor à realidade crua e nua) dos antigos e retomado por Freud se impõe nos dias atuais em que a humanidade se vê assolada por grave crise de sentido, subjacente à crise econômico-financeira. Devemos reaprender a amar de forma desinteressada e incondicional a Terra, todos os seres, especialmente os humanos, os que sofrem, respeitá-los em sua diferença e em suas limitações. O amor é uma força cósmica que “move o céu e as estrelas” no dizer de Dante. Só quem ama, transforma e cria.

Os grandes se reúnem, estão confusos e não sabem exatamente o que fazer. É que amam mais o dinheiro que a vida. Se amor houvesse, aprovariam o que está sendo proposto: uma “Declaração Universal do Bem Comum da Humanidade”, base para uma “Nova Ordem Global e Multilateral” contemplando toda a humanidade, a Terra incluída. Mas não. Perplexos, preferem repetir fundamentalmente, as fórmulas que não deram certo. Caberia, entretanto, perguntar: que capacidade possuem 20 governos de decidir em nome de 172? Onde estão os títulos de sua legitimidade? Apenas porque são os mais fortes?

Mesmo assim vejo que se podem tirar algumas lições, úteis para as próximas crises que estão se anunciando.

A primeira dela é que os governantes, para além de suas diferenças, podem se unir face a um perigo global. Mesmo que suas soluções não representem uma saída sustentável da crise, o fato de estarem juntos é significativo, pois dentro de pouco enfrentaremos uma crise muito pior: da insustentabilidade da Terra e dos efeitos perversos do aquecimento global. Este trará consigo a crise da água e da insegurança alimentar de milhões e milhões de pessoas. Tal situação forçará uma união dos povos e dos governos, maior do que essa dos G-20 em Londres, caso queiram sobreviver. Se grande será o perigo, maior será a chance de salvação, dizia um poeta alemão, mas desde que ocorra esta união. A solução virá somente de uma política mundial assentada na cooperação, na solidariedade, na responsabilidade global e no cuidado para com a Terra viva.

A segunda lição é que não podemos mais prolongar o fundamentalismo do mercado, o pensamento único que arrogantemente anunciava não haver alternativas à ordem vigente, como se a história tivesse sido engessada a seu favor e destruído o princípio esperança. Nem podemos mais confiar na mera razão funcional, desvinculada da razão sensível e cordial, base do mundo das excelências e dos valores infinitos (Milton Santos, nosso grande geógrafo) como o amor, a cooperação, o respeito, a justiça e outros. Desta vez, ou elaboramos uma alternativa, vale dizer, um novo paradigma civilizatório, com outro modo de produção, respeitador dos ritmos da natureza e um novo padrão de consumo solidário e frugal ou então teremos que aceitar o risco do desaparecimento de nossa espécie e de uma grave lesão da biosfera. A Terra pode continuar sem nós. Nós não podemos viver sem a Terra.

A terceira lição é constatar que a economia, feita eixo estruturador de toda a vida social, se torna hostil à vida e ao desenvolvimento integral dos povos. Ela deve ser reconduzida à sua verdadeira natureza, a de garantir a base material para a vida e para a sociedade.

Vivemos tempos de grandes decisões que representam rupturas instauradores do novo. Bem notava Keynes:”a dificuldade não estriba tanto na formulação de novas idéias mas no sacudir as velhas”. As velhas se desmoralizaram. Só nos resta confiar nas novas. Nelas está um futuro melhor.

Leonardo Boff é autor de “Ecologia, Mundialização e Espiritualidade” pela Record, Rio de Janeiro.

Complexo de Lear - Marina Silva (Folha de São Paulo - 03/08/2009)

DURANTE CURSO de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.
Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar.
Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.
Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.
O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder.
Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.
Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.
Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.
O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.
Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade.