terça-feira, 22 de setembro de 2009

É preciso repensar o modelo

Para a arquiteta e ex-ministra-adjunta das Cidades, programas como Minha Casa, Minha Vida são bem-vindos para combater o déficit habitacional, mas repetem erros do passado

POR ROSA SYMANSKI E ALBERTO MAWAKDIYE FOTO MARCELO SCANDAROLI




Com uma rica e vasta experiência na área de planejamento urbano e habitação popular - foi ela, por exemplo, quem formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, do qual foi ministra-adjunta entre 2003 e 2005 -, a arquiteta Erminia Maricato viu com bons olhos o anúncio do programa Minha Casa, Minha Vida, lançado no último mês de março pelo Governo Federal. O objetivo do programa é construir um milhão de moradias e criar empregos de modo a reduzir o impacto da crise econômica sobre a classe trabalhadora.

Mas Ermínia também se confessa preocupada com alguns aspectos do programa - por exemplo, a localização e o tamanho dos conjuntos. "Nós, urbanistas, gostaríamos que Minha Casa, Minha Vida se constituísse de conjuntos de menor porte, inseridos na malha urbana, que trabalhasse na recuperação de edifícios vazios e aproveitasse terrenos contíguos ao tecido urbano, no centro das cidades", diz. "Mas a impressão que me dá é que vai sair muito empreendimento de grande porte."

A arquiteta faz duras críticas aos grandes conjuntos habitacionais implantados longe das regiões centrais, ou até fora das cidades, acarretando sofrimento para os moradores e toda sorte de deseconomias para o poder público. Para ela, trata-se de um tipo de empreendimento que, além de não levar em conta o bem-estar da população, tampouco considera a moderna tendência do urbanismo pelo adensamento das cidades.

"O planejamento urbano decerto existe no Brasil. Mas se fosse eficaz, não teríamos tanta gente ocupando encosta, área de proteção ambiental, de mananciais, mangues etc. A minha preocupação é desmistificar esse tipo de planejamento", afirma.

Além do seu trabalho incansável na área de habitação popular (ela também foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e1992), Erminia é professora da FAU-USP e uma solicitada conferencista.

A seguir, trechos da entrevista.

O programa Minha Casa, Minha Vida foi lançado em março deste ano pelo Governo Federal como uma ferramenta para reduzir o enorme déficit habitacional brasileiro, estimado em pouco mais de sete milhões de moradias. A expectativa do programa é de que sejam construídas um milhão de habitações populares - uma meta ambiciosa, sem dúvida, mas restariam ainda seis milhões para que o déficit fosse zerado. De verdade: será que um dia o Brasil vai conseguir dar conta desse déficit?

Acho que a tendência do déficit habitacional é diminuir. Não tenho dúvida disso. Já poderia estar menor se o estado não tivesse passado tanto tempo sem investir, na onda do neoliberalismo. O número de favelas disparou nas últimas décadas. O crescimento da população brasileira entre 1980 e 1990 foi abaixo de 2%, mas o das favelas foi acima de 6%. Entre 1990 e 2000, a população brasileira cresceu 1,4%, e a das favelas mais de 4%. Então todo investimento que ataque de frente esse déficit será bem-vindo. Ele é tão gigantesco que é preciso fazer o máximo que der. E o programa Minha Casa, Minha Vida tem uma faceta interessante. Por causa da crise financeira, o Brasil teve um rombo terrível no nível de emprego no final do ano passado. E o programa pretende contribuir para reverter essa queda. É uma medida que merece aplausos. Os Estados Unidos estão em enorme crise com 9,1% de desemprego. Mas na cidade de São Paulo nós já chegamos a 18%.


Mas não estaria faltando ao programa certa visão de longo prazo?

Não é esse o caso. Hoje, afinal, o Brasil tem um Plano Nacional de Habitação, que trabalha com um cenário para 20 anos. A meu ver, o que falta para Minha Casa, Minha Vida é o que sempre faltou na maioria dos programas habitacionais brasileiros: uma visão mais estrutural do que deve ser esse combate ao déficit. O combate ao déficit não pode se resumir apenas aos números. E desde os tempos do Banco Nacional da Habitação, o BNH, que foi criado pelos militares na década de 1960, a questão habitacional no Brasil foi quase sempre tratada como meramente quantitativa, e o sucesso ou fracasso dos programas medido pelo número de unidades construídas. É óbvio que deveria ter outros fatores envolvidos, como a maior articulação deles com políticas urbanas e sociais.


Os programas seriam demasiadamente estanques.

Sim, e, por causa disso, muitas vezes trouxeram grandes prejuízos para as cidades. Há no Brasil conjuntos habitacionais com localização tão distante e inadequada que não apenas colocaram os moradores em uma condição de sofrimento, como criaram uma série de deseconomias urbanas. Quando se instala um conjunto fora da cidade, é preciso levar a cidade até o conjunto. É uma condição de deseconomia e de insustentabilidade, que no mínimo gera muitas viagens. O contrário do que o urbanismo atualmente preconiza. Hoje, o que se busca é uma cidade mais compacta, com agricultura no entorno, parques. Uma cidade compacta também pressupõe que as pessoas possam fazer parte de suas viagens a pé. Muita gente na periferia de São Paulo, por exemplo, faz viagens a pé - na verdade, um terço das viagens nas regiões metropolitanas brasileiras são feitas dessa forma. Mas apenas porque essas pessoas não têm dinheiro e o transporte é péssimo.


Elas são obrigadas a caminhar.

E o problema não está somente na habitação e no transporte. Nós recebemos uma cidade em ruínas depois de 25 anos de neoliberalismo no setor público. Durante esse período também não houve investimento em saneamento, saúde, educação, coleta e destinação de lixo, cultura e lazer. É impossível desvincular o déficit habitacional de todos esses déficits. Todos eles fazem parte de um mesmo contexto e por isso deveriam ser tratados de forma conjunta, estruturada. Mas o que se viu, ao longo da história recente, foram apenas pessoas sendo colocadas fora da cidade e em não-cidades, em lugares que não passam de depósitos de gente.

O paradigma é a Cidade de Deus, que ficou famosa por ter chegado ao cinema. Mas há centenas de outros exemplos. A existência dessas não-cidades é ruim para todo mundo. Depósitos de gente. Seja um gueto de pessoas homogeneamente pobres, seja um gueto de ricos, sempre dão origem a patologias: formação de gangues, tráfico de drogas, adolescentes endinheirados avessos a qualquer sentimento de solidariedade humana, de respeito à coletividade.

O que se consolidou também nessa concepção foi a cultura patrimonialista brasileira, essa trágica herança histórica que temos de carregar. Nas cidades brasileiras, quem pode ser dono da terra, o é; os pobres têm de ser mantidos longe até mesmo porque a sua presença desvalorizava o entorno e rebaixa o valor dos imóveis. É uma perversão que se retroalimenta, e explica também essa falta de um planejamento mais global para a habitação popular. Afinal, para tanto, os espaços teriam de ser minimamente democratizados, mesclados, e os serviços e a infraestrutura melhor distribuídos. Muita gente no Brasil é contra.

Como deveria ser feita essa articulação entre os programas habitacionais e as políticas urbanas? Em que instância deveria se dar esse planejamento?

A base deveria ser o planejamento do uso e da ocupação do solo, nas instâncias de prefeituras, de regiões metropolitanas e governos estaduais. Mesmo porque o Governo Federal não tem competência constitucional para fazer política urbana. A localização deveria levar em conta a boa articulação do conjunto habitacional com o tecido urbano, a sustentabilidade ambiental, a mobilidade, o acesso às fontes de trabalho. E o projeto não deveria se limitar só às moradias. O mix de renda, de tipologia de habitação, as áreas para comércio, também deveriam ser fatores determinantes. Se possível, deveria ser dada até a possibilidade para o morador abrir um negócio na sua própria casa.

Outro fator importante seria a construção do conjunto por etapas, e conforme ele fosse crescendo, ganhando mais massa em número de unidades, o complexo de exigências fosse aumentando. No fundo, seria um projeto de produção de espaço, não de uma simples implantação de um conjunto de casas. Mas raramente esse modelo é posto em prática no país.


Faltaria vontade política para mudar o paradigma?

Falta vontade política e sobram interesses econômicos. No Brasil, leis e planos existem aos montes. Toda cidade de algum porte tem o seu plano diretor e em tese faz planejamento urbano. Mas se o planejamento realmente se preocupasse com a questão habitacional, não teríamos tanta gente ocupando encostas, zonas de proteção ambiental, áreas de mananciais, mangues, criando loteamentos irregulares ou clandestinos - a quantidade de brasileiros que residem em moradias sem registro deve estar entre as maiores do mundo.

Há vários governos estaduais que não têm sequer organismos de habitação. A maior parte dos municípios também não tem - quando muito, o assunto é uma atribuição secundária de alguma secretaria de desenvolvimento urbano. A instância que acaba determinando mesmo a localização e o formato dos conjuntos habitacionais é quase sempre o mercado, como o próprio programa federal Minha Casa, Minha Vida vem a comprovar agora.


O programa Minha Casa, Minha Vida não está sendo discutido com Estados e municípios?

Até está, mas o fato é que se trata de um programa feito pelo Governo Federal e pelos empresários. Claro que é louvável um programa que cria empregos e reserva 16 bilhões de reais em subsídios para a população de zero a três salários-mínimos, e prevê amplos recursos para a regularização fundiária. Mas não serão os organismos metropolitanos, nem os municipais, que, no final das contas, irão definir qual a melhor localização das novas moradias, dos novos bairros. Está de novo se pensando em coisas muito grandes, em megaconjuntos - o formato preferido das construtoras e empresas imobiliárias, quando há tanto espaço vazio, mal-aproveitado ou passível de retrofit nas áreas centrais das grandes cidades. É o mercado que vai comprar as terras e definir aonde os conjuntos vão se localizar. É a velha inversão de papéis, o rabo abanando o cachorro. Todos esses investimentos - para lá de bem-vindos - vão ser jogados na nossa cultura patrimonialista de administração do solo, por mais que o programa fale que os empreendimentos devem estar inseridos no tecido urbano.

Já tem uma empresa em São Paulo propondo um conjunto de 30 mil unidades, no meio do nada, a 13 quilômetros do núcleo urbano mais próximo. Deverão morar ali, no mínimo, 120 mil pessoas. Isso é o tamanho de uma cidade! E o pior é que muitas prefeituras aprovam qualquer coisa. Elas acham que é progresso, que vai ter emprego, vai ter construção. Não se dão conta que essa população vai depois demandar, que vai ter necessidades de tudo.


Será que a falta de recursos suficientes dos Estados e municípios não é, em parte, responsável por esta deformação?

De fato, o modelo de financiamento de habitação popular que vigora no Brasil é ainda muito concentrador. Quase tanto como nos tempos do BNH. O grosso dos recursos fica na Caixa Econômica Federal e de lá vai para os vários programas. Em termos de recursos, praticamente não há participação do mercado imobiliário privado nessa área. Porque esse mercado é altamente restritivo, e tradicionalmente produz para poucos. E tradicionalmente produtos de luxo. Nem para a classe média ele produz. Aliás, o programa Minha Casa, Minha Vida inclui imóveis de 500 mil reais. Isso é um escândalo. Mas por que a classe média entrou em um programa tão abertamente subsidiado? Porque para produzir para a classe média e para as classes populares, o mercado exige condições subsidiadas, porque acha que sem isso o projeto não dará retorno. É um problema sério, histórico, do mercado imobiliário brasileiro. Os bancos privados tampouco querem saber de financiar imóveis, por causa do passivo ruim do país nessa área. O Brasil teve tantos planos econômicos, e tantas mudanças de regras financeiras, que qualquer financiamento podia acabar em embate judicial. Hoje o país está financeiramente estável, mas o medo dos bancos permanece.

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