Por Leonardo Boff*
A conjugação das várias crises, algumas conjunturais e outras sistêmicas, obriga a todos a trabalhar em duas frentes: uma intrasistêmica buscando soluções imediatas dos problemas para salvar vidas, garantir o trabalho e a produção e evitar o colapso. Outra transsistêmica, fazendo uma crítica rigorosa aos fundamentos teóricos que nos levaram ao atual caos e trabalhar sobre outros fundamentos que propiciem uma alternativa que permita, num outro nivel, a continuidade do projeto planetário humano.
Cada época histórica precisa de um mito que congregue pessoas, galvanize forças e confira novo rumo à história. O mito fundador da modernidade reside na razão, desde os gregos, o eixo estruturador da sociedade. Ela cria a ciência, transforma-a em técnica de intervenção na natureza e se propõe dominar todas as suas forças. Para isso, segundo Francis Bacon, o fundador de método científico, deve-se torturar a natureza até que entregue todos os seus segredos. Essa razão crê num progresso ilimitado e cria uma sociedade que se quer autônoma, de ordem e progresso. A razão suscitava a pretensão de tudo prever, tudo gerir, tudo controlar, tudo organizar e tudo criar. Ela ocupou todos os espaços. Enviou ao limbo outras formas de conhecimento.
Eis que, depois de mais de trezentos anos de exaltação da razão, assistimos a loucura da razão. Pois só uma razão enlouquecida organiza a sociedade na qual 20% da população mundial detém 80% de toda riqueza da Terra; as três pessoas mais ricas do mundo possuem ativos superiores à toda riqueza de 48 paises mais pobres onde vivem 600 milhões de pessoas; 257 indivíduos sozinhos acumulam mais riqueza do que 2,8 bilhões de pessoas, o equivalente a 45% da humanidade; no Brasil 5 mil famílias detém 46% da riqueza nacional. A insanidade da razão produtivista e consumista gerou o aquecimento global que trará desiquilíbrios já visíveis e a dizimação de milhares de espécies, inclusive a humana.
A ditadura da razão criou a sociedade da mercadoria com sua cultura típica, um certo modo de viver, de produzir, de consumir, de fazer ciência, de educar, de ensinar e de moldar as subjetividades coletivas. Estas devem se afinar à sua dinâmica e valores, procurando sempre maximalizar os ganhos, mediante a mercantilização de tudo. Ora, essa cultura, dita moderna, capitalista, burguesa, ocidental e hoje globalizada entrou em crise. Ela se expressa nas várias crises atuais que são todas expressão de uma única crise, a dos fundamentos. Não se trata de abdicar da razão, mas de combater sua arrogância (hybris) e de criticar seu estreitamento na capacidade de comprender. O que a razão mais precisa neste momento é de ser urgentemente completada pela razão sensível (M.Maffesoli), pela inteligência emocional (D.Goleman), pela razão cordial (A. Cortina), pela educação dos sentidos (J.F.Duarte Jr), pela ciência com consciência (E. Morin), pela inteligência espiritual (D. Zohar), pelo concern (R.Winnicott) e pelo cuidado como eu mesmo venho propondo há tempos.
É o sentir profundo (pathos) que nos faz escutar o grito da Terra e o clamor canino de milhões de famélicos. Não é a razão fria mas a razão sensível que move as pessoas para tira-las da cruz e faze-las viver. Por isso, é urgente submeter à crítica o modelo de ciência dominante, impugnar radicalmente as aplicações que se fazem dela mais em função do lucro do que da vida, desmascarar o modelo de desenvolvimento atual que é insustentável por ser altamente depredador e injusto.
A sensibilidade, a cordialidade, o cuidado levados a todo os níveis, para com a natureza, nas relações sociais e na vida cotidiana, podem fundar, junto com a razão, uma utopia que podemos tocar com as mãos porque imediatamente praticável. Estes são os fundamentos do nascente paradigma civilizatório que nos dá vida e esperança.
terça-feira, 17 de março de 2009
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