Fonte: Agência Senado
Há algo de extremamente poético na silhueta das cidades brasileiras, mas que está entre as causas estruturais dos desastres verificados ultimamente em muitas de nossas áreas urbanas. O exemplo mais recente é o da região serrana do Rio. Esse elemento de beleza decorre justamente da forma como a maioria das cidades surgiram e se desenvolveram desde os tempos coloniais: acompanhando as linhas do relevo e com pouco ou nenhum planejamento.
Uma igreja que medita no outeiro, o casario que sobe e desce ladeiras, edifícios que se estabelecem sem medo à margem dos rios. Tudo isso impressiona o viajante e lhe dá o conforto de imaginar uma sociedade que se amoldou à paisagem sem conflitos, quase como se estivesse deleitosamente confundida à natureza.
No clássico Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda observa que essa urbanização sinuosa é um reflexo do tipo de colonização empreendida pelos portugueses e da própria psicologia e visão de mundo dos colonizadores lusos. O historiador também mostra como foi diferente a construção de cidades pelos espanhóis em suas colônias.
De acordo com Sérgio Buarque, o interesse dos portugueses no Brasil era o de enriquecer rapidamente e com pouco esforço, não levando em conta o estabelecimento nas terras brasileiras a longo prazo e dentro de bases econômicas sustentáveis. Por isso, instalaram-se preferencialmente no litoral, de onde era fácil enviar para a Europa o fruto da exploração.
Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não se produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole, diz o historiador. Ele cita trecho de uma carta do padre Manuel de Nóbrega, de 1552: de quantos lá vieram, nenhum tem amor a esta terra [...] todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir.
Rios
O avanço para o interior deu-se dentro da mesma visão econômica e sob o cuidado de que ninguém se instalasse de forma definitiva.
Os regimentos forais concedidos pela Coroa portuguesa, quando sucedia tratarem-se de regiões fora de beira-mar, insistiam sempre em que se povoassem somente as partes que ficavam às margens das grandes correntes navegáveis, como o rio São Francisco, diz o historiador.
O desinteresse por planejar cidades não derivava apenas do fato de que a empresa colonial era vista como um meio de enriquecimento rápido e impulsionada por espírito aventureiro. Refletia a própria experiência urbanística de Portugal e um traço do caráter português de então, avesso à transfiguração da realidade por meio de métodos, sistemas ou códigos racionais. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra 'desleixo', anota Sérgio Buarque.
De acordo com o historiador, os portugueses preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras. Assim, é comum a coexistência das chamadas vilas velhas, com os novos centros urbanos de origem colonial, o que o historiador considera o persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.
O capítulo 4 do livro é rico em exemplos e análises. Conta ele que na Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio dos 1700 espantou-se ao ver que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. E continua: tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seu lugar. Ainda no primeiro século da colonização, em São Vicente e Santos, o desalinho das casas era de tal ordem que o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, reclamava por não poder murar as duas vilas, pois isso acarretaria grandes transtornos aos moradores.
Em suas cartas a amigos fictícios, escritas no começo do século 19, o professor de grego Luis dos Santos Vilhena criticava a escolha da situação na qual foi edificada a cidade de Salvador: uma colina escarpada cheia de tantas quebras e ladeiras quando ali perto havia um sítio dos melhores.
No que se refere à colonização espanhola, o caso foi bem outro: caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa, por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados, de acordo com Sérgio Buarque.
Do ponto de vista urbanístico, o historiador ressalta que o traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer a retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste. Conforme Sérgio Buarque, é um ato definido pela vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhes antes o acento voluntário da linha reta.
Ao contrário dos portugueses, os espanhóis evitaram a costa, por considerar que, além do perigo dos corsários, não havia ali lugares sadios para a construção de moradias. Temia-se ainda o que eles consideravam a pouca disposição para o trabalho dos habitantes do litoral, associada a uma liberalidade dos costumes.
Quanto à escolha dos locais de erguimento das cidades, os espanhóis estabeleceram uma série de normas, levando em conta o tipo de região a ser ocupada. Para as chamadas povoações de terra de dentro, não deveriam ser escolhidos lugares altos, expostos aos ventos e de acesso difícil, nem muito baixos, pois costumam favorecer as doenças, mas sim os que se achassem a altura mediana descobertos para os ventos do norte e do sul.
Citando também Raízes do Brasil, a arquiteta e doutora em urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Rosana Miranda lembra que as normas de construção espanholas eram muito bem definidas: a construção das cidades deveria começar pela praça maior, com dimensões adequadas ao futuro crescimento urbano e, ao redor dessa praça, o casario seria construído de acordo com o alinhamento definido com extremo rigor e o traçado das ruas também seguiria o ângulo reto como principal diretriz.
Águas de Janeiro
A ironia poética da América lusa alcançou por fim a memória do cantor dessa simbiose da sociedade com a natureza: entre as casas destruídas pela enchente do dia 12 de janeiro em São José do Vale do Rio Preto (RJ), estava a de Antonio Carlos Jobim. Ali no refúgio que construiu com tanto esforço, e que faz parte do imaginário da MPB, ele compôs a célebre Águas de Março e outras canções da fase pós-Bossa Nova.
Vêm provavelmente daquela paisagem alguns versos de Chovendo na Roseira: Olha que chuva boa prazenteira / Que vem molhar minha roseira / Chuva boa criadeira / Que molha a terra / Que enche o rio /Que limpa o céu / Que trás o azul / Olha o jasmineiro está florido / E o riachinho de água esperta /Se lança em vasto rio de águas calmas.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
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