Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader
12-Dez-2009
Como já se podia prever, a cidade de São Paulo não ofereceu qualquer resistência a mais uma torrente de chuvas que recaiu sobre a cidade nos últimos dias. Alagamentos, deslizamentos, trânsito caótico e, desgraçadamente, muitas vidas perdidas foram a tônica, repetindo de forma cada vez mais agravada uma triste rotina que faz questionar a viabilidade atual da metrópole.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Ermínia Maricato faz uma aprofundada análise estrutural da cidade, que considera fadada a continuar padecendo das mesmas agruras desses últimos dias. As razões para tal quadro desanimador apontam na direção do poder público, que insiste nas mesmas políticas urbanas, sendo o incentivo ao automóvel a mais comprometedora delas.
Para Ermínia, a situação não permite que sequer vislumbremos uma mudança do quadro, pois os seguidos governos sempre ignoraram, e continuam a fazê-lo, a questão da macrodrenagem da cidade, pavimentando ruas sem que se leve em conta o curso das águas e impermeabilizando mais e mais toda São Paulo. Quanto à ampliação das marginais, considera um descalabro, que só contribuirá para a manutenção da mesma lógica que literalmente afunda a maior cidade do país.
Correio da Cidadania: O que se pode dizer depois de mais uma vez a cidade de SP ter ido abaixo por conta das chuvas? Quais são os determinantes estruturais dessa situação?
Ermínia Maricato: É uma questão sem solução de curto prazo. Acho que a cidade tomou esse rumo tanto pela ocupação descontrolada como pela ação do Estado. Temos a ocupação das marginais com vias rodoviárias e são exatamente o lugar que deveria ser reservado ao espraiamento do rio. Isso foi algo planejado, uma engenharia rodoviarista que jamais pensou no meio ambiente e acabou ocupando o local, tendo sido copiada em tudo quanto é lugar, inclusive por cidades de porte médio, com as marginais à beira do rio, que é o espaço restante da urbanização.
Mas a marginal é um dos eventos. Há também o sanfonamento de córregos, outro erro crasso no qual incorrem até hoje em nossa cidade. E os córregos sanfonados em geral estão nos vales, cercados de taludes, sendo seguidos por vias asfaltadas.
Dou como exemplo as avenidas de fundo de vale em São Paulo. São exemplos de uma coisa estúpida, de um urbanismo que ignorou completamente o curso das águas. A macrodrenagem, como chamamos o grande caminho das águas, é completamente ignorada na nossa cidade. E isso com anos e anos de uma ocupação que vai impermeabilizando o solo. Fizemos uma visita a um grande professor, austríaco radicado no Canadá, que disse que São Paulo é uma das maiores áreas impermeáveis do mundo.
Dessa forma, vamos tendo essa ocupação, sem área verde, seja por não se seguir planejamento ou porque os próprios planos, como o rodoviarista, não levaram em consideração o caminho das águas. Agora, por lei, existem no Brasil os comitês de bacias hidrográficas, mas que funcionam precariamente. Talvez tenhamos chances de ter projetos de reversão desse rumo, porém, é coisa para daqui a muito tempo.
Esses piscinões, que na verdade são obras para reter a água durante algum tempo a fim de fazê-la correr mais devagar, são também uma solução extremamente discutível. Extremamente. O que precisaríamos mesmo é garantir espaços permeáveis à água de chuva.
Portanto, temos uma ocupação do solo que, quando controlada, não levou em conta a macrodrenagem e que, em geral, não é controlada. Uma parte da cidade é ocupada sem qualquer controle, como é o caso dos mananciais e beiras de córrego, onde a população pobre se instala por falta de alternativa.
O controle da ocupação do solo é uma coisa a que se dá pouca importância e que no capitalismo periférico é uma regra. A ocupação informal é muito mais regra que exceção, como se vê na ocupação dos taludes que acabam desmoronando. Isso é fruto da falta de moradia regular, legal, com acesso ao mercado na política pública, deixando a população se virar por conta própria. Grande parte das cidades brasileiras foi construída dessa forma, deixando a população se virar. Não houve nenhum concurso de técnicas de engenharia, arquitetura, geologia.... Vai lá e constrói. Parte das cidades brasileiras foi construída assim, sem nenhum planejamento e conhecimento técnico, com o povo se virando com seus parcos recursos e mão-de-obra. Depois as prefeituras vão atrás para corrigir e dão uma pavimentada, o que dá muito voto.
Há algumas prefeituras que até têm boa vontade, mas, em alguns municípios extremamente pobres, de periferia de região metropolitana, tem-se 90% de ocupação ilegal, como em Ananindeua-PA, e perto de 70% nas periferias do Rio e São Paulo, com o povo ocupando e se virando, e a prefeitura indo atrás, colocando infra-estrutura sem grandes planos de drenagem, segurança, técnicas etc.
CC: Sabendo-se que as reais transformações urbanísticas significariam um processo até de décadas pra se concretizarem, quais seriam os melhores paliativos contra as enchentes?
EM: Nesse momento, deveríamos estar revertendo o processo. Mas não estamos. As marginais estão sendo alargadas. É muito impressionante ver um erro ser tão repetido.
O que aliviaria a situação seria o plantio de mata em torno das marginais, diminuição do calçamento, do ritmo do asfaltamento, garantia de parques no cinturão verde na fronteira da expansão metropolitana...
O caso das comunas da terra, uma agricultura periurbana, é um exemplo. Trata-se de um assentamento do MST na franja da periferia da região metropolitana. Aquilo é algo indicado. É uma agricultura que produz alimentos para a cidade e ao mesmo tempo retém água de chuva. Também podem ser feitas calçadas semi-pavimentadas, arborização urbana... Há uma lei agora que obriga os edifícios a terem uma espécie de piscininha para segurar água da chuva, é importante.
Mas o que vemos não é isso, e sim o contrário, como se verifica na ampliação das marginais. Isso impressiona! Há outro exemplo em Jundiaí, numa obra do PAC. Pensei que nunca o programa fosse financiar o sanfonamento de córrego em áreas de várzea e vales.
Dessa forma, a persistência de erros é um fato. Ainda não revertemos uma curva que conduz cada vez mais a cidade às enchentes.
CC: E por que não se consegue reverter essa curva e se insiste em idéias que realmente parecem equivocadas ou ultrapassadas? Falta estudo ao governo, vontade política, o que seria?
EM: Um dos principais motivos é a política do automóvel, a matriz de mobilidade baseada no carro. O automóvel é responsável por grande parte da pavimentação do solo, em vias, estacionamentos etc. Extensão de asfalto é o que mais dá votos, minha experiência já mostrou isso tranquilamente. Não só em São Paulo, mas no Brasil todo, em cidades pequenas, médias e grandes.
Não é bom morar em rua de terra, concordo plenamente. Mas existem outras formas mais amigáveis ao meio ambiente.
CC: O que pode decorrer mais especificamente dessa idéia de aumento das marginais?
EM: É um absurdo! Eu não consigo entender como as secretarias de Meio Ambiente municipal e estadual aprovaram! Eu vi vários, não um ou dois, casos de projeto de urbanização de favela, em que se retiraria esgoto dos córregos para jogar numa rede, não serem aprovados pelos órgãos ambientais, o que mostra que a aplicação da lei no Brasil tem uma leitura mediada pelo poder, pelas classes sociais.
Não há nenhuma explicação para o fato de as secretarias de Meio Ambiente, que às vezes são ‘rigorosas’, mas não com tudo, como se vê, aprovarem algo tão absurdo como a ampliação das marginais.
Em relação a essa questão, em primeiro lugar, precisamos ter trajetos alternativos, já que essas enchentes são tradicionais, mesmo com a ampliação da calha do rio. Mas é impossível controlar uma calha que recebe tanto lixo e material sólido como nos rios da cidade de São Paulo.
São necessários trajetos alternativos e reflorestamento. Mas não. O que se faz é o contrário, a insistência num erro que começou a ser cometido 70 anos atrás e que continua a ser cometido, porque ampliar as marginais é de uma irracionalidade do ponto de vista ambiental e da macrodrenagem que não tem nenhuma explicação.
CC: E até da mobilidade, pois pode continuar atraindo mais motoristas que acreditam na melhora do tráfego por ali.
EM: Mas todo mundo sabe que é uma falsa questão pensar que ampliar as áreas de circulação viária, com pontes, avenidas, ruas asfaltadas, vai resolver o problema se a matriz automobilística continua jogando na cidade 500 mil veículos por ano.
Eu estava numa discussão, de um projeto da CUT, e lá se disse que os urbanistas precisam ter um encontro com os metalúrgicos da indústria automobilística. O governo tem que parar de dar incentivo ao automóvel. Do ponto de vista da saúde, já está provado que o ar poluído da cidade diminui em um ano e meio a vida de quem mora nela. Está provado que incide em doenças respiratórias, em mortes por doenças cardiovasculares e que o carro é o elemento urbano de maior mudança climática na produção de gás do efeito estufa. Está provado que é uma ‘deseconomia’ incrível do ponto de vista de horas paradas, gastos de combustível, da saúde das pessoas, que ficam submetidas a uma tensão bárbara.
Toda a gente tem falado de quanto essa matriz automobilística tem sido responsável pelas enchentes. São fatores ligados. A impermeabilização do solo, a ampliação de percursos rodoviários, a ampliação do número de automóveis nas ruas, tudo isso junto faz parte do modelo de cidade em que vivemos. E não vejo o menor vislumbre de mudança de modelo, muito pelo contrário.
A força da indústria automobilística, não só na produção de carros, mas também na produção de combustível, distribuição, manutenção dos automóveis e toda a produção de infra-estrutura urbana para o automóvel, deve dar um naco enorme no PIB. E não sei o que precisa acontecer pra mudar isso. Uma tragédia imensa? Já estamos vivendo.
CC: Como vai caminhar uma cidade como São Paulo, responsável por parcela tão expressiva da produção de riquezas no país? Já estamos numa espécie de ponto sem retorno?
EM: Não sei pra onde caminhamos, mas para pior. E por que digo isso? Porque o que temos atualmente, que se chama urbanização espraiada, sempre foi espraiada pela periferia pobre. Agora existe um subúrbio rico se espraiando. E mais que isso, a palavra correta seria fragmentando. Temos essas comunidades fechadas, que são servidas apenas pelo carro, com a lógica do rodoviarismo ligada ao seu crescimento. São grandes condomínios ou loteamentos. Diga-se de passagem, loteamento fechado é ilegal, mas neles moram juízes, promotores etc. Loteamentos abertos, sim, são permitidos. Na legislação brasileira o fechado é ilegal. E essas comunidades muradas estão se espalhando pelo território. Se pegarmos o caminho de São Paulo até Itu, Campinas, São José dos Campos, podemos ver enormes condomínios fechados, dentro da lei, mas que de qualquer forma contribuem com essa fragmentação e expansão da ocupação urbana baseada na viagem de automóvel. É o caso também de Alphaville.
O loteamento fechado é ilegal. Pela lei federal 6766/79, o arruamento dele é público, doado ao poder público, senão não é aprovado. E mais 10% da gleba são doados para praças e construções institucionais; 70% da gleba são públicos. Eles moram e se apropriam privadamente de 30% da gleba. A rua, que é patrimônio público, não tem acesso público. E estamos coalhados de exemplos assim, em todo o Brasil.
Não se tem nenhum controle do uso racional do solo, já que as prefeituras não resistem à aprovação desses projetos, mesmo com estudos existentes de que várias dessas comunidades muradas são ilegais.
CC: Mas há solo para ser bem ocupado por 20 milhões de pessoas na mesma região metropolitana?
EM: Teria, mas numa condição estruturalmente diferente. Se nós olharmos para essa metrópole, ela corresponde à produção do urbano do capitalismo periférico. Dessa forma, a informalidade, a ilegalidade, essa produção de espaços que não segue lei alguma – não falo da elite ilegal, e sim do espaço informal pobre – são parte da cidade no capitalismo periférico.
Assim como temos uma industrialização de baixos salários, por conta da exportação de excedentes, temos a urbanização dos baixos salários. É aquela em que o trabalhador não entra no mercado residencial privado legal. Ele é obrigado a trabalhar no fim de semana para construir a casa porque é uma força de trabalho barata. Aquilo que chamamos de super-exploração, pois ele é muito mais barato do que o correspondente num país do capitalismo central. Se pegarmos Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica, podemos verificar mais de 50% de ocupações ilegais, que o povo vai ocupando como pode.
Poderia ser sustentável? Poderia numa outra sociedade. Porque, se no capitalismo central, ao menos antes da crise, 20% a 30% da população precisava de subsídio para moradia, com o resto se virando no mercado, aqui no Brasil é o contrário: temos 70%, 80% da população fora do mercado.
É um dado estrutural da cidade. Por isso as pessoas se instalam nos morros, cavam as encostas e também sua própria sepultura.
CC: Pelo que a senhora falou, não podemos ficar otimistas em relação a um novo enfoque urbano para São Paulo. Tal mudança não exigiria, a priori, uma outra lógica econômica na condução do país?
EM: Vejo que há uma ampliação do mercado habitacional, sem dúvidas, mas sem mudar a condição imobiliária e fundiária, o que tende a agravar esses problemas de drenagem, congestionamento...
O Minha Casa Minha Vida amplia as oportunidades de moradia a uma certa classe média que estava fora do mercado, mas expande a ocupação urbana, e com isso vai criar mais viagens de carro e tornar mais difícil a resolução da infra-estrutura, que terá de existir no núcleo onde se localizarem as casas.
No entanto, esse núcleo vai despejar automóveis numa estrada; a água terá de ser captada em outro lugar e levada longe; tem que tirar o esgoto e levar para uma estação de tratamento, o que obviamente não ocorrerá se for muito longe...
Assim, a horizontalização, fragmentação, ampliação, espraiamento da cidade aumentam as oportunidades de acesso à moradia, mas não as condições de vida urbana. Piora-se a situação urbanística.
Portanto, do ponto de vista propriamente urbano, não estamos avançando. E a questão urbana exige a concorrência e o entendimento dos três níveis da federação, controle do solo (feito pelo município), empenho da câmara municipal, porque o estatuto e o plano diretor existem, empenho do judiciário...
Dessa forma, é muito complexo reverter o rumo da cidade. E sem dúvida nenhuma eu daria dois grandes eixos: de um lado, o uso e ocupação do solo, com seu controle e regulação, coibindo a especulação, fazendo valer a função social da propriedade. Por outro lado, é preciso mudar a matriz rodoviarista.
E por enquanto nenhuma das duas coisas está na nossa perspectiva.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania
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