15 dias de discussão, milhões em qualquer moeda do mundo gastos e a conferência para debater o destino ambiental do planeta chega ao fim sem que nada de importante para o futuro esteja definido.
Nunca se falou tanto que planeta precisa de cuidado e cuidado imediato, mas apesar disso, os líderes políticos e seus assessores não conseguem deixar de pensar apenas na macroeconomia.
Sinto um cheiro de palhaçada no ar.....
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Otto Lara Resende
Uma criança vê o que um adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de tão visto ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher. Isso exige às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos.
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença".
(Vista cansada).
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença".
(Vista cansada).
As chuvas estão chegando....
O ciclo de chuvas mudou. Isso é fato. Não me lembro, em minha existência, de ter visto São Paulo, Rio e outros estados do Sul e Sudeste enfrentarem chuvas tão fortes em finais de novembro, início de dezembro. Não me lembro das chuvas terem demorado tanto a chegar em Belém no final do ano, como neste final de ano.
Se isso quer dizer alguma coisa determinante para o nosso futuro, não sei...Se é apenas um ciclo que pode se encerrar, também não sei.
O que sei é que o ciclo de impermebialização das cidades não se encerrou, muito pelo contrário.
É só ver o post aí de baixo que vocês vão entender o que falo. São Paulo, do ponto de vista do escoamento das águas, neste momento, acabou. A cidade precisa torcer para que não chova como choveu nos últimos dias. Torcer e rezar, só isso.
Belém vai no mesmo caminho. E vai mal. Li outro dia nos jornais, um engenheiro dizer/escrever que graças a Deus a impermebialização definitiva dos canais da 14 de março e Dr. Moraes estavam acontecendo. E citava o canal da Avenida Doca de Souza Franco.
O trabalho que estava em curso ainda não terminou. Aliás, está sem prazo para terminar já que a Prefeitura Municipal sofre atualmente um bloqueio judicial de 34 milhões de reais para pagamento de dívidas de precatório.
Mas voltando ao assunto. Todos os canais de Belém são cursos d'água. Eram cursos d'águas naturais que há algum tempo ficaram limitados. Foram desviados, "organizados". Mas, a natureza não deu permissão para essa limitação e a população também não foi bem esclarecida de como conviver com esses cursos d'água, decentemente.
O canais de Belém são verdadeiros lixões à céu aberto. É só pesquisar as reportagens na internet. Fora isso, tirando a Doca e os canais da bacia do Una e o principal do Tucunduba, todos são canais estreitos e com casas a poucos metros de distância de suas beiras. A combinação lixo, estreitamento, proximidade de casas será explosiva num futuro não tão distante.
Que fique aqui registrado. As obras dos canais da 14 de março de Dr. Morares passarão pelo teste agora no período mais chuvoso. Veremos o que irá acontecer.
O fato é que precisaríamos alargar os canais, evitar que população construísse as casas muito perto de suas beiras, fazer coleta de lixo regularmente e tantas outras coisas. Aliás, deveríamos evitar a impermebialização de nossos cursos d'água. Mas isso já não é mais possível.
Se isso quer dizer alguma coisa determinante para o nosso futuro, não sei...Se é apenas um ciclo que pode se encerrar, também não sei.
O que sei é que o ciclo de impermebialização das cidades não se encerrou, muito pelo contrário.
É só ver o post aí de baixo que vocês vão entender o que falo. São Paulo, do ponto de vista do escoamento das águas, neste momento, acabou. A cidade precisa torcer para que não chova como choveu nos últimos dias. Torcer e rezar, só isso.
Belém vai no mesmo caminho. E vai mal. Li outro dia nos jornais, um engenheiro dizer/escrever que graças a Deus a impermebialização definitiva dos canais da 14 de março e Dr. Moraes estavam acontecendo. E citava o canal da Avenida Doca de Souza Franco.
O trabalho que estava em curso ainda não terminou. Aliás, está sem prazo para terminar já que a Prefeitura Municipal sofre atualmente um bloqueio judicial de 34 milhões de reais para pagamento de dívidas de precatório.
Mas voltando ao assunto. Todos os canais de Belém são cursos d'água. Eram cursos d'águas naturais que há algum tempo ficaram limitados. Foram desviados, "organizados". Mas, a natureza não deu permissão para essa limitação e a população também não foi bem esclarecida de como conviver com esses cursos d'água, decentemente.
O canais de Belém são verdadeiros lixões à céu aberto. É só pesquisar as reportagens na internet. Fora isso, tirando a Doca e os canais da bacia do Una e o principal do Tucunduba, todos são canais estreitos e com casas a poucos metros de distância de suas beiras. A combinação lixo, estreitamento, proximidade de casas será explosiva num futuro não tão distante.
Que fique aqui registrado. As obras dos canais da 14 de março de Dr. Morares passarão pelo teste agora no período mais chuvoso. Veremos o que irá acontecer.
O fato é que precisaríamos alargar os canais, evitar que população construísse as casas muito perto de suas beiras, fazer coleta de lixo regularmente e tantas outras coisas. Aliás, deveríamos evitar a impermebialização de nossos cursos d'água. Mas isso já não é mais possível.
Apoiada no carro e cada vez mais impermeável, São Paulo continuará submergindo
Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader
12-Dez-2009
Como já se podia prever, a cidade de São Paulo não ofereceu qualquer resistência a mais uma torrente de chuvas que recaiu sobre a cidade nos últimos dias. Alagamentos, deslizamentos, trânsito caótico e, desgraçadamente, muitas vidas perdidas foram a tônica, repetindo de forma cada vez mais agravada uma triste rotina que faz questionar a viabilidade atual da metrópole.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Ermínia Maricato faz uma aprofundada análise estrutural da cidade, que considera fadada a continuar padecendo das mesmas agruras desses últimos dias. As razões para tal quadro desanimador apontam na direção do poder público, que insiste nas mesmas políticas urbanas, sendo o incentivo ao automóvel a mais comprometedora delas.
Para Ermínia, a situação não permite que sequer vislumbremos uma mudança do quadro, pois os seguidos governos sempre ignoraram, e continuam a fazê-lo, a questão da macrodrenagem da cidade, pavimentando ruas sem que se leve em conta o curso das águas e impermeabilizando mais e mais toda São Paulo. Quanto à ampliação das marginais, considera um descalabro, que só contribuirá para a manutenção da mesma lógica que literalmente afunda a maior cidade do país.
Correio da Cidadania: O que se pode dizer depois de mais uma vez a cidade de SP ter ido abaixo por conta das chuvas? Quais são os determinantes estruturais dessa situação?
Ermínia Maricato: É uma questão sem solução de curto prazo. Acho que a cidade tomou esse rumo tanto pela ocupação descontrolada como pela ação do Estado. Temos a ocupação das marginais com vias rodoviárias e são exatamente o lugar que deveria ser reservado ao espraiamento do rio. Isso foi algo planejado, uma engenharia rodoviarista que jamais pensou no meio ambiente e acabou ocupando o local, tendo sido copiada em tudo quanto é lugar, inclusive por cidades de porte médio, com as marginais à beira do rio, que é o espaço restante da urbanização.
Mas a marginal é um dos eventos. Há também o sanfonamento de córregos, outro erro crasso no qual incorrem até hoje em nossa cidade. E os córregos sanfonados em geral estão nos vales, cercados de taludes, sendo seguidos por vias asfaltadas.
Dou como exemplo as avenidas de fundo de vale em São Paulo. São exemplos de uma coisa estúpida, de um urbanismo que ignorou completamente o curso das águas. A macrodrenagem, como chamamos o grande caminho das águas, é completamente ignorada na nossa cidade. E isso com anos e anos de uma ocupação que vai impermeabilizando o solo. Fizemos uma visita a um grande professor, austríaco radicado no Canadá, que disse que São Paulo é uma das maiores áreas impermeáveis do mundo.
Dessa forma, vamos tendo essa ocupação, sem área verde, seja por não se seguir planejamento ou porque os próprios planos, como o rodoviarista, não levaram em consideração o caminho das águas. Agora, por lei, existem no Brasil os comitês de bacias hidrográficas, mas que funcionam precariamente. Talvez tenhamos chances de ter projetos de reversão desse rumo, porém, é coisa para daqui a muito tempo.
Esses piscinões, que na verdade são obras para reter a água durante algum tempo a fim de fazê-la correr mais devagar, são também uma solução extremamente discutível. Extremamente. O que precisaríamos mesmo é garantir espaços permeáveis à água de chuva.
Portanto, temos uma ocupação do solo que, quando controlada, não levou em conta a macrodrenagem e que, em geral, não é controlada. Uma parte da cidade é ocupada sem qualquer controle, como é o caso dos mananciais e beiras de córrego, onde a população pobre se instala por falta de alternativa.
O controle da ocupação do solo é uma coisa a que se dá pouca importância e que no capitalismo periférico é uma regra. A ocupação informal é muito mais regra que exceção, como se vê na ocupação dos taludes que acabam desmoronando. Isso é fruto da falta de moradia regular, legal, com acesso ao mercado na política pública, deixando a população se virar por conta própria. Grande parte das cidades brasileiras foi construída dessa forma, deixando a população se virar. Não houve nenhum concurso de técnicas de engenharia, arquitetura, geologia.... Vai lá e constrói. Parte das cidades brasileiras foi construída assim, sem nenhum planejamento e conhecimento técnico, com o povo se virando com seus parcos recursos e mão-de-obra. Depois as prefeituras vão atrás para corrigir e dão uma pavimentada, o que dá muito voto.
Há algumas prefeituras que até têm boa vontade, mas, em alguns municípios extremamente pobres, de periferia de região metropolitana, tem-se 90% de ocupação ilegal, como em Ananindeua-PA, e perto de 70% nas periferias do Rio e São Paulo, com o povo ocupando e se virando, e a prefeitura indo atrás, colocando infra-estrutura sem grandes planos de drenagem, segurança, técnicas etc.
CC: Sabendo-se que as reais transformações urbanísticas significariam um processo até de décadas pra se concretizarem, quais seriam os melhores paliativos contra as enchentes?
EM: Nesse momento, deveríamos estar revertendo o processo. Mas não estamos. As marginais estão sendo alargadas. É muito impressionante ver um erro ser tão repetido.
O que aliviaria a situação seria o plantio de mata em torno das marginais, diminuição do calçamento, do ritmo do asfaltamento, garantia de parques no cinturão verde na fronteira da expansão metropolitana...
O caso das comunas da terra, uma agricultura periurbana, é um exemplo. Trata-se de um assentamento do MST na franja da periferia da região metropolitana. Aquilo é algo indicado. É uma agricultura que produz alimentos para a cidade e ao mesmo tempo retém água de chuva. Também podem ser feitas calçadas semi-pavimentadas, arborização urbana... Há uma lei agora que obriga os edifícios a terem uma espécie de piscininha para segurar água da chuva, é importante.
Mas o que vemos não é isso, e sim o contrário, como se verifica na ampliação das marginais. Isso impressiona! Há outro exemplo em Jundiaí, numa obra do PAC. Pensei que nunca o programa fosse financiar o sanfonamento de córrego em áreas de várzea e vales.
Dessa forma, a persistência de erros é um fato. Ainda não revertemos uma curva que conduz cada vez mais a cidade às enchentes.
CC: E por que não se consegue reverter essa curva e se insiste em idéias que realmente parecem equivocadas ou ultrapassadas? Falta estudo ao governo, vontade política, o que seria?
EM: Um dos principais motivos é a política do automóvel, a matriz de mobilidade baseada no carro. O automóvel é responsável por grande parte da pavimentação do solo, em vias, estacionamentos etc. Extensão de asfalto é o que mais dá votos, minha experiência já mostrou isso tranquilamente. Não só em São Paulo, mas no Brasil todo, em cidades pequenas, médias e grandes.
Não é bom morar em rua de terra, concordo plenamente. Mas existem outras formas mais amigáveis ao meio ambiente.
CC: O que pode decorrer mais especificamente dessa idéia de aumento das marginais?
EM: É um absurdo! Eu não consigo entender como as secretarias de Meio Ambiente municipal e estadual aprovaram! Eu vi vários, não um ou dois, casos de projeto de urbanização de favela, em que se retiraria esgoto dos córregos para jogar numa rede, não serem aprovados pelos órgãos ambientais, o que mostra que a aplicação da lei no Brasil tem uma leitura mediada pelo poder, pelas classes sociais.
Não há nenhuma explicação para o fato de as secretarias de Meio Ambiente, que às vezes são ‘rigorosas’, mas não com tudo, como se vê, aprovarem algo tão absurdo como a ampliação das marginais.
Em relação a essa questão, em primeiro lugar, precisamos ter trajetos alternativos, já que essas enchentes são tradicionais, mesmo com a ampliação da calha do rio. Mas é impossível controlar uma calha que recebe tanto lixo e material sólido como nos rios da cidade de São Paulo.
São necessários trajetos alternativos e reflorestamento. Mas não. O que se faz é o contrário, a insistência num erro que começou a ser cometido 70 anos atrás e que continua a ser cometido, porque ampliar as marginais é de uma irracionalidade do ponto de vista ambiental e da macrodrenagem que não tem nenhuma explicação.
CC: E até da mobilidade, pois pode continuar atraindo mais motoristas que acreditam na melhora do tráfego por ali.
EM: Mas todo mundo sabe que é uma falsa questão pensar que ampliar as áreas de circulação viária, com pontes, avenidas, ruas asfaltadas, vai resolver o problema se a matriz automobilística continua jogando na cidade 500 mil veículos por ano.
Eu estava numa discussão, de um projeto da CUT, e lá se disse que os urbanistas precisam ter um encontro com os metalúrgicos da indústria automobilística. O governo tem que parar de dar incentivo ao automóvel. Do ponto de vista da saúde, já está provado que o ar poluído da cidade diminui em um ano e meio a vida de quem mora nela. Está provado que incide em doenças respiratórias, em mortes por doenças cardiovasculares e que o carro é o elemento urbano de maior mudança climática na produção de gás do efeito estufa. Está provado que é uma ‘deseconomia’ incrível do ponto de vista de horas paradas, gastos de combustível, da saúde das pessoas, que ficam submetidas a uma tensão bárbara.
Toda a gente tem falado de quanto essa matriz automobilística tem sido responsável pelas enchentes. São fatores ligados. A impermeabilização do solo, a ampliação de percursos rodoviários, a ampliação do número de automóveis nas ruas, tudo isso junto faz parte do modelo de cidade em que vivemos. E não vejo o menor vislumbre de mudança de modelo, muito pelo contrário.
A força da indústria automobilística, não só na produção de carros, mas também na produção de combustível, distribuição, manutenção dos automóveis e toda a produção de infra-estrutura urbana para o automóvel, deve dar um naco enorme no PIB. E não sei o que precisa acontecer pra mudar isso. Uma tragédia imensa? Já estamos vivendo.
CC: Como vai caminhar uma cidade como São Paulo, responsável por parcela tão expressiva da produção de riquezas no país? Já estamos numa espécie de ponto sem retorno?
EM: Não sei pra onde caminhamos, mas para pior. E por que digo isso? Porque o que temos atualmente, que se chama urbanização espraiada, sempre foi espraiada pela periferia pobre. Agora existe um subúrbio rico se espraiando. E mais que isso, a palavra correta seria fragmentando. Temos essas comunidades fechadas, que são servidas apenas pelo carro, com a lógica do rodoviarismo ligada ao seu crescimento. São grandes condomínios ou loteamentos. Diga-se de passagem, loteamento fechado é ilegal, mas neles moram juízes, promotores etc. Loteamentos abertos, sim, são permitidos. Na legislação brasileira o fechado é ilegal. E essas comunidades muradas estão se espalhando pelo território. Se pegarmos o caminho de São Paulo até Itu, Campinas, São José dos Campos, podemos ver enormes condomínios fechados, dentro da lei, mas que de qualquer forma contribuem com essa fragmentação e expansão da ocupação urbana baseada na viagem de automóvel. É o caso também de Alphaville.
O loteamento fechado é ilegal. Pela lei federal 6766/79, o arruamento dele é público, doado ao poder público, senão não é aprovado. E mais 10% da gleba são doados para praças e construções institucionais; 70% da gleba são públicos. Eles moram e se apropriam privadamente de 30% da gleba. A rua, que é patrimônio público, não tem acesso público. E estamos coalhados de exemplos assim, em todo o Brasil.
Não se tem nenhum controle do uso racional do solo, já que as prefeituras não resistem à aprovação desses projetos, mesmo com estudos existentes de que várias dessas comunidades muradas são ilegais.
CC: Mas há solo para ser bem ocupado por 20 milhões de pessoas na mesma região metropolitana?
EM: Teria, mas numa condição estruturalmente diferente. Se nós olharmos para essa metrópole, ela corresponde à produção do urbano do capitalismo periférico. Dessa forma, a informalidade, a ilegalidade, essa produção de espaços que não segue lei alguma – não falo da elite ilegal, e sim do espaço informal pobre – são parte da cidade no capitalismo periférico.
Assim como temos uma industrialização de baixos salários, por conta da exportação de excedentes, temos a urbanização dos baixos salários. É aquela em que o trabalhador não entra no mercado residencial privado legal. Ele é obrigado a trabalhar no fim de semana para construir a casa porque é uma força de trabalho barata. Aquilo que chamamos de super-exploração, pois ele é muito mais barato do que o correspondente num país do capitalismo central. Se pegarmos Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica, podemos verificar mais de 50% de ocupações ilegais, que o povo vai ocupando como pode.
Poderia ser sustentável? Poderia numa outra sociedade. Porque, se no capitalismo central, ao menos antes da crise, 20% a 30% da população precisava de subsídio para moradia, com o resto se virando no mercado, aqui no Brasil é o contrário: temos 70%, 80% da população fora do mercado.
É um dado estrutural da cidade. Por isso as pessoas se instalam nos morros, cavam as encostas e também sua própria sepultura.
CC: Pelo que a senhora falou, não podemos ficar otimistas em relação a um novo enfoque urbano para São Paulo. Tal mudança não exigiria, a priori, uma outra lógica econômica na condução do país?
EM: Vejo que há uma ampliação do mercado habitacional, sem dúvidas, mas sem mudar a condição imobiliária e fundiária, o que tende a agravar esses problemas de drenagem, congestionamento...
O Minha Casa Minha Vida amplia as oportunidades de moradia a uma certa classe média que estava fora do mercado, mas expande a ocupação urbana, e com isso vai criar mais viagens de carro e tornar mais difícil a resolução da infra-estrutura, que terá de existir no núcleo onde se localizarem as casas.
No entanto, esse núcleo vai despejar automóveis numa estrada; a água terá de ser captada em outro lugar e levada longe; tem que tirar o esgoto e levar para uma estação de tratamento, o que obviamente não ocorrerá se for muito longe...
Assim, a horizontalização, fragmentação, ampliação, espraiamento da cidade aumentam as oportunidades de acesso à moradia, mas não as condições de vida urbana. Piora-se a situação urbanística.
Portanto, do ponto de vista propriamente urbano, não estamos avançando. E a questão urbana exige a concorrência e o entendimento dos três níveis da federação, controle do solo (feito pelo município), empenho da câmara municipal, porque o estatuto e o plano diretor existem, empenho do judiciário...
Dessa forma, é muito complexo reverter o rumo da cidade. E sem dúvida nenhuma eu daria dois grandes eixos: de um lado, o uso e ocupação do solo, com seu controle e regulação, coibindo a especulação, fazendo valer a função social da propriedade. Por outro lado, é preciso mudar a matriz rodoviarista.
E por enquanto nenhuma das duas coisas está na nossa perspectiva.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania
12-Dez-2009
Como já se podia prever, a cidade de São Paulo não ofereceu qualquer resistência a mais uma torrente de chuvas que recaiu sobre a cidade nos últimos dias. Alagamentos, deslizamentos, trânsito caótico e, desgraçadamente, muitas vidas perdidas foram a tônica, repetindo de forma cada vez mais agravada uma triste rotina que faz questionar a viabilidade atual da metrópole.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Ermínia Maricato faz uma aprofundada análise estrutural da cidade, que considera fadada a continuar padecendo das mesmas agruras desses últimos dias. As razões para tal quadro desanimador apontam na direção do poder público, que insiste nas mesmas políticas urbanas, sendo o incentivo ao automóvel a mais comprometedora delas.
Para Ermínia, a situação não permite que sequer vislumbremos uma mudança do quadro, pois os seguidos governos sempre ignoraram, e continuam a fazê-lo, a questão da macrodrenagem da cidade, pavimentando ruas sem que se leve em conta o curso das águas e impermeabilizando mais e mais toda São Paulo. Quanto à ampliação das marginais, considera um descalabro, que só contribuirá para a manutenção da mesma lógica que literalmente afunda a maior cidade do país.
Correio da Cidadania: O que se pode dizer depois de mais uma vez a cidade de SP ter ido abaixo por conta das chuvas? Quais são os determinantes estruturais dessa situação?
Ermínia Maricato: É uma questão sem solução de curto prazo. Acho que a cidade tomou esse rumo tanto pela ocupação descontrolada como pela ação do Estado. Temos a ocupação das marginais com vias rodoviárias e são exatamente o lugar que deveria ser reservado ao espraiamento do rio. Isso foi algo planejado, uma engenharia rodoviarista que jamais pensou no meio ambiente e acabou ocupando o local, tendo sido copiada em tudo quanto é lugar, inclusive por cidades de porte médio, com as marginais à beira do rio, que é o espaço restante da urbanização.
Mas a marginal é um dos eventos. Há também o sanfonamento de córregos, outro erro crasso no qual incorrem até hoje em nossa cidade. E os córregos sanfonados em geral estão nos vales, cercados de taludes, sendo seguidos por vias asfaltadas.
Dou como exemplo as avenidas de fundo de vale em São Paulo. São exemplos de uma coisa estúpida, de um urbanismo que ignorou completamente o curso das águas. A macrodrenagem, como chamamos o grande caminho das águas, é completamente ignorada na nossa cidade. E isso com anos e anos de uma ocupação que vai impermeabilizando o solo. Fizemos uma visita a um grande professor, austríaco radicado no Canadá, que disse que São Paulo é uma das maiores áreas impermeáveis do mundo.
Dessa forma, vamos tendo essa ocupação, sem área verde, seja por não se seguir planejamento ou porque os próprios planos, como o rodoviarista, não levaram em consideração o caminho das águas. Agora, por lei, existem no Brasil os comitês de bacias hidrográficas, mas que funcionam precariamente. Talvez tenhamos chances de ter projetos de reversão desse rumo, porém, é coisa para daqui a muito tempo.
Esses piscinões, que na verdade são obras para reter a água durante algum tempo a fim de fazê-la correr mais devagar, são também uma solução extremamente discutível. Extremamente. O que precisaríamos mesmo é garantir espaços permeáveis à água de chuva.
Portanto, temos uma ocupação do solo que, quando controlada, não levou em conta a macrodrenagem e que, em geral, não é controlada. Uma parte da cidade é ocupada sem qualquer controle, como é o caso dos mananciais e beiras de córrego, onde a população pobre se instala por falta de alternativa.
O controle da ocupação do solo é uma coisa a que se dá pouca importância e que no capitalismo periférico é uma regra. A ocupação informal é muito mais regra que exceção, como se vê na ocupação dos taludes que acabam desmoronando. Isso é fruto da falta de moradia regular, legal, com acesso ao mercado na política pública, deixando a população se virar por conta própria. Grande parte das cidades brasileiras foi construída dessa forma, deixando a população se virar. Não houve nenhum concurso de técnicas de engenharia, arquitetura, geologia.... Vai lá e constrói. Parte das cidades brasileiras foi construída assim, sem nenhum planejamento e conhecimento técnico, com o povo se virando com seus parcos recursos e mão-de-obra. Depois as prefeituras vão atrás para corrigir e dão uma pavimentada, o que dá muito voto.
Há algumas prefeituras que até têm boa vontade, mas, em alguns municípios extremamente pobres, de periferia de região metropolitana, tem-se 90% de ocupação ilegal, como em Ananindeua-PA, e perto de 70% nas periferias do Rio e São Paulo, com o povo ocupando e se virando, e a prefeitura indo atrás, colocando infra-estrutura sem grandes planos de drenagem, segurança, técnicas etc.
CC: Sabendo-se que as reais transformações urbanísticas significariam um processo até de décadas pra se concretizarem, quais seriam os melhores paliativos contra as enchentes?
EM: Nesse momento, deveríamos estar revertendo o processo. Mas não estamos. As marginais estão sendo alargadas. É muito impressionante ver um erro ser tão repetido.
O que aliviaria a situação seria o plantio de mata em torno das marginais, diminuição do calçamento, do ritmo do asfaltamento, garantia de parques no cinturão verde na fronteira da expansão metropolitana...
O caso das comunas da terra, uma agricultura periurbana, é um exemplo. Trata-se de um assentamento do MST na franja da periferia da região metropolitana. Aquilo é algo indicado. É uma agricultura que produz alimentos para a cidade e ao mesmo tempo retém água de chuva. Também podem ser feitas calçadas semi-pavimentadas, arborização urbana... Há uma lei agora que obriga os edifícios a terem uma espécie de piscininha para segurar água da chuva, é importante.
Mas o que vemos não é isso, e sim o contrário, como se verifica na ampliação das marginais. Isso impressiona! Há outro exemplo em Jundiaí, numa obra do PAC. Pensei que nunca o programa fosse financiar o sanfonamento de córrego em áreas de várzea e vales.
Dessa forma, a persistência de erros é um fato. Ainda não revertemos uma curva que conduz cada vez mais a cidade às enchentes.
CC: E por que não se consegue reverter essa curva e se insiste em idéias que realmente parecem equivocadas ou ultrapassadas? Falta estudo ao governo, vontade política, o que seria?
EM: Um dos principais motivos é a política do automóvel, a matriz de mobilidade baseada no carro. O automóvel é responsável por grande parte da pavimentação do solo, em vias, estacionamentos etc. Extensão de asfalto é o que mais dá votos, minha experiência já mostrou isso tranquilamente. Não só em São Paulo, mas no Brasil todo, em cidades pequenas, médias e grandes.
Não é bom morar em rua de terra, concordo plenamente. Mas existem outras formas mais amigáveis ao meio ambiente.
CC: O que pode decorrer mais especificamente dessa idéia de aumento das marginais?
EM: É um absurdo! Eu não consigo entender como as secretarias de Meio Ambiente municipal e estadual aprovaram! Eu vi vários, não um ou dois, casos de projeto de urbanização de favela, em que se retiraria esgoto dos córregos para jogar numa rede, não serem aprovados pelos órgãos ambientais, o que mostra que a aplicação da lei no Brasil tem uma leitura mediada pelo poder, pelas classes sociais.
Não há nenhuma explicação para o fato de as secretarias de Meio Ambiente, que às vezes são ‘rigorosas’, mas não com tudo, como se vê, aprovarem algo tão absurdo como a ampliação das marginais.
Em relação a essa questão, em primeiro lugar, precisamos ter trajetos alternativos, já que essas enchentes são tradicionais, mesmo com a ampliação da calha do rio. Mas é impossível controlar uma calha que recebe tanto lixo e material sólido como nos rios da cidade de São Paulo.
São necessários trajetos alternativos e reflorestamento. Mas não. O que se faz é o contrário, a insistência num erro que começou a ser cometido 70 anos atrás e que continua a ser cometido, porque ampliar as marginais é de uma irracionalidade do ponto de vista ambiental e da macrodrenagem que não tem nenhuma explicação.
CC: E até da mobilidade, pois pode continuar atraindo mais motoristas que acreditam na melhora do tráfego por ali.
EM: Mas todo mundo sabe que é uma falsa questão pensar que ampliar as áreas de circulação viária, com pontes, avenidas, ruas asfaltadas, vai resolver o problema se a matriz automobilística continua jogando na cidade 500 mil veículos por ano.
Eu estava numa discussão, de um projeto da CUT, e lá se disse que os urbanistas precisam ter um encontro com os metalúrgicos da indústria automobilística. O governo tem que parar de dar incentivo ao automóvel. Do ponto de vista da saúde, já está provado que o ar poluído da cidade diminui em um ano e meio a vida de quem mora nela. Está provado que incide em doenças respiratórias, em mortes por doenças cardiovasculares e que o carro é o elemento urbano de maior mudança climática na produção de gás do efeito estufa. Está provado que é uma ‘deseconomia’ incrível do ponto de vista de horas paradas, gastos de combustível, da saúde das pessoas, que ficam submetidas a uma tensão bárbara.
Toda a gente tem falado de quanto essa matriz automobilística tem sido responsável pelas enchentes. São fatores ligados. A impermeabilização do solo, a ampliação de percursos rodoviários, a ampliação do número de automóveis nas ruas, tudo isso junto faz parte do modelo de cidade em que vivemos. E não vejo o menor vislumbre de mudança de modelo, muito pelo contrário.
A força da indústria automobilística, não só na produção de carros, mas também na produção de combustível, distribuição, manutenção dos automóveis e toda a produção de infra-estrutura urbana para o automóvel, deve dar um naco enorme no PIB. E não sei o que precisa acontecer pra mudar isso. Uma tragédia imensa? Já estamos vivendo.
CC: Como vai caminhar uma cidade como São Paulo, responsável por parcela tão expressiva da produção de riquezas no país? Já estamos numa espécie de ponto sem retorno?
EM: Não sei pra onde caminhamos, mas para pior. E por que digo isso? Porque o que temos atualmente, que se chama urbanização espraiada, sempre foi espraiada pela periferia pobre. Agora existe um subúrbio rico se espraiando. E mais que isso, a palavra correta seria fragmentando. Temos essas comunidades fechadas, que são servidas apenas pelo carro, com a lógica do rodoviarismo ligada ao seu crescimento. São grandes condomínios ou loteamentos. Diga-se de passagem, loteamento fechado é ilegal, mas neles moram juízes, promotores etc. Loteamentos abertos, sim, são permitidos. Na legislação brasileira o fechado é ilegal. E essas comunidades muradas estão se espalhando pelo território. Se pegarmos o caminho de São Paulo até Itu, Campinas, São José dos Campos, podemos ver enormes condomínios fechados, dentro da lei, mas que de qualquer forma contribuem com essa fragmentação e expansão da ocupação urbana baseada na viagem de automóvel. É o caso também de Alphaville.
O loteamento fechado é ilegal. Pela lei federal 6766/79, o arruamento dele é público, doado ao poder público, senão não é aprovado. E mais 10% da gleba são doados para praças e construções institucionais; 70% da gleba são públicos. Eles moram e se apropriam privadamente de 30% da gleba. A rua, que é patrimônio público, não tem acesso público. E estamos coalhados de exemplos assim, em todo o Brasil.
Não se tem nenhum controle do uso racional do solo, já que as prefeituras não resistem à aprovação desses projetos, mesmo com estudos existentes de que várias dessas comunidades muradas são ilegais.
CC: Mas há solo para ser bem ocupado por 20 milhões de pessoas na mesma região metropolitana?
EM: Teria, mas numa condição estruturalmente diferente. Se nós olharmos para essa metrópole, ela corresponde à produção do urbano do capitalismo periférico. Dessa forma, a informalidade, a ilegalidade, essa produção de espaços que não segue lei alguma – não falo da elite ilegal, e sim do espaço informal pobre – são parte da cidade no capitalismo periférico.
Assim como temos uma industrialização de baixos salários, por conta da exportação de excedentes, temos a urbanização dos baixos salários. É aquela em que o trabalhador não entra no mercado residencial privado legal. Ele é obrigado a trabalhar no fim de semana para construir a casa porque é uma força de trabalho barata. Aquilo que chamamos de super-exploração, pois ele é muito mais barato do que o correspondente num país do capitalismo central. Se pegarmos Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica, podemos verificar mais de 50% de ocupações ilegais, que o povo vai ocupando como pode.
Poderia ser sustentável? Poderia numa outra sociedade. Porque, se no capitalismo central, ao menos antes da crise, 20% a 30% da população precisava de subsídio para moradia, com o resto se virando no mercado, aqui no Brasil é o contrário: temos 70%, 80% da população fora do mercado.
É um dado estrutural da cidade. Por isso as pessoas se instalam nos morros, cavam as encostas e também sua própria sepultura.
CC: Pelo que a senhora falou, não podemos ficar otimistas em relação a um novo enfoque urbano para São Paulo. Tal mudança não exigiria, a priori, uma outra lógica econômica na condução do país?
EM: Vejo que há uma ampliação do mercado habitacional, sem dúvidas, mas sem mudar a condição imobiliária e fundiária, o que tende a agravar esses problemas de drenagem, congestionamento...
O Minha Casa Minha Vida amplia as oportunidades de moradia a uma certa classe média que estava fora do mercado, mas expande a ocupação urbana, e com isso vai criar mais viagens de carro e tornar mais difícil a resolução da infra-estrutura, que terá de existir no núcleo onde se localizarem as casas.
No entanto, esse núcleo vai despejar automóveis numa estrada; a água terá de ser captada em outro lugar e levada longe; tem que tirar o esgoto e levar para uma estação de tratamento, o que obviamente não ocorrerá se for muito longe...
Assim, a horizontalização, fragmentação, ampliação, espraiamento da cidade aumentam as oportunidades de acesso à moradia, mas não as condições de vida urbana. Piora-se a situação urbanística.
Portanto, do ponto de vista propriamente urbano, não estamos avançando. E a questão urbana exige a concorrência e o entendimento dos três níveis da federação, controle do solo (feito pelo município), empenho da câmara municipal, porque o estatuto e o plano diretor existem, empenho do judiciário...
Dessa forma, é muito complexo reverter o rumo da cidade. E sem dúvida nenhuma eu daria dois grandes eixos: de um lado, o uso e ocupação do solo, com seu controle e regulação, coibindo a especulação, fazendo valer a função social da propriedade. Por outro lado, é preciso mudar a matriz rodoviarista.
E por enquanto nenhuma das duas coisas está na nossa perspectiva.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania
domingo, 8 de novembro de 2009
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Dai-lhes Senhor, o descanso eterno...
sábado, 31 de outubro de 2009
terça-feira, 22 de setembro de 2009
É preciso repensar o modelo
Para a arquiteta e ex-ministra-adjunta das Cidades, programas como Minha Casa, Minha Vida são bem-vindos para combater o déficit habitacional, mas repetem erros do passado
POR ROSA SYMANSKI E ALBERTO MAWAKDIYE FOTO MARCELO SCANDAROLI
Com uma rica e vasta experiência na área de planejamento urbano e habitação popular - foi ela, por exemplo, quem formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, do qual foi ministra-adjunta entre 2003 e 2005 -, a arquiteta Erminia Maricato viu com bons olhos o anúncio do programa Minha Casa, Minha Vida, lançado no último mês de março pelo Governo Federal. O objetivo do programa é construir um milhão de moradias e criar empregos de modo a reduzir o impacto da crise econômica sobre a classe trabalhadora.
Mas Ermínia também se confessa preocupada com alguns aspectos do programa - por exemplo, a localização e o tamanho dos conjuntos. "Nós, urbanistas, gostaríamos que Minha Casa, Minha Vida se constituísse de conjuntos de menor porte, inseridos na malha urbana, que trabalhasse na recuperação de edifícios vazios e aproveitasse terrenos contíguos ao tecido urbano, no centro das cidades", diz. "Mas a impressão que me dá é que vai sair muito empreendimento de grande porte."
A arquiteta faz duras críticas aos grandes conjuntos habitacionais implantados longe das regiões centrais, ou até fora das cidades, acarretando sofrimento para os moradores e toda sorte de deseconomias para o poder público. Para ela, trata-se de um tipo de empreendimento que, além de não levar em conta o bem-estar da população, tampouco considera a moderna tendência do urbanismo pelo adensamento das cidades.
"O planejamento urbano decerto existe no Brasil. Mas se fosse eficaz, não teríamos tanta gente ocupando encosta, área de proteção ambiental, de mananciais, mangues etc. A minha preocupação é desmistificar esse tipo de planejamento", afirma.
Além do seu trabalho incansável na área de habitação popular (ela também foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e1992), Erminia é professora da FAU-USP e uma solicitada conferencista.
A seguir, trechos da entrevista.
O programa Minha Casa, Minha Vida foi lançado em março deste ano pelo Governo Federal como uma ferramenta para reduzir o enorme déficit habitacional brasileiro, estimado em pouco mais de sete milhões de moradias. A expectativa do programa é de que sejam construídas um milhão de habitações populares - uma meta ambiciosa, sem dúvida, mas restariam ainda seis milhões para que o déficit fosse zerado. De verdade: será que um dia o Brasil vai conseguir dar conta desse déficit?
Acho que a tendência do déficit habitacional é diminuir. Não tenho dúvida disso. Já poderia estar menor se o estado não tivesse passado tanto tempo sem investir, na onda do neoliberalismo. O número de favelas disparou nas últimas décadas. O crescimento da população brasileira entre 1980 e 1990 foi abaixo de 2%, mas o das favelas foi acima de 6%. Entre 1990 e 2000, a população brasileira cresceu 1,4%, e a das favelas mais de 4%. Então todo investimento que ataque de frente esse déficit será bem-vindo. Ele é tão gigantesco que é preciso fazer o máximo que der. E o programa Minha Casa, Minha Vida tem uma faceta interessante. Por causa da crise financeira, o Brasil teve um rombo terrível no nível de emprego no final do ano passado. E o programa pretende contribuir para reverter essa queda. É uma medida que merece aplausos. Os Estados Unidos estão em enorme crise com 9,1% de desemprego. Mas na cidade de São Paulo nós já chegamos a 18%.
Mas não estaria faltando ao programa certa visão de longo prazo?
Não é esse o caso. Hoje, afinal, o Brasil tem um Plano Nacional de Habitação, que trabalha com um cenário para 20 anos. A meu ver, o que falta para Minha Casa, Minha Vida é o que sempre faltou na maioria dos programas habitacionais brasileiros: uma visão mais estrutural do que deve ser esse combate ao déficit. O combate ao déficit não pode se resumir apenas aos números. E desde os tempos do Banco Nacional da Habitação, o BNH, que foi criado pelos militares na década de 1960, a questão habitacional no Brasil foi quase sempre tratada como meramente quantitativa, e o sucesso ou fracasso dos programas medido pelo número de unidades construídas. É óbvio que deveria ter outros fatores envolvidos, como a maior articulação deles com políticas urbanas e sociais.
Os programas seriam demasiadamente estanques.
Sim, e, por causa disso, muitas vezes trouxeram grandes prejuízos para as cidades. Há no Brasil conjuntos habitacionais com localização tão distante e inadequada que não apenas colocaram os moradores em uma condição de sofrimento, como criaram uma série de deseconomias urbanas. Quando se instala um conjunto fora da cidade, é preciso levar a cidade até o conjunto. É uma condição de deseconomia e de insustentabilidade, que no mínimo gera muitas viagens. O contrário do que o urbanismo atualmente preconiza. Hoje, o que se busca é uma cidade mais compacta, com agricultura no entorno, parques. Uma cidade compacta também pressupõe que as pessoas possam fazer parte de suas viagens a pé. Muita gente na periferia de São Paulo, por exemplo, faz viagens a pé - na verdade, um terço das viagens nas regiões metropolitanas brasileiras são feitas dessa forma. Mas apenas porque essas pessoas não têm dinheiro e o transporte é péssimo.
Elas são obrigadas a caminhar.
E o problema não está somente na habitação e no transporte. Nós recebemos uma cidade em ruínas depois de 25 anos de neoliberalismo no setor público. Durante esse período também não houve investimento em saneamento, saúde, educação, coleta e destinação de lixo, cultura e lazer. É impossível desvincular o déficit habitacional de todos esses déficits. Todos eles fazem parte de um mesmo contexto e por isso deveriam ser tratados de forma conjunta, estruturada. Mas o que se viu, ao longo da história recente, foram apenas pessoas sendo colocadas fora da cidade e em não-cidades, em lugares que não passam de depósitos de gente.
O paradigma é a Cidade de Deus, que ficou famosa por ter chegado ao cinema. Mas há centenas de outros exemplos. A existência dessas não-cidades é ruim para todo mundo. Depósitos de gente. Seja um gueto de pessoas homogeneamente pobres, seja um gueto de ricos, sempre dão origem a patologias: formação de gangues, tráfico de drogas, adolescentes endinheirados avessos a qualquer sentimento de solidariedade humana, de respeito à coletividade.
O que se consolidou também nessa concepção foi a cultura patrimonialista brasileira, essa trágica herança histórica que temos de carregar. Nas cidades brasileiras, quem pode ser dono da terra, o é; os pobres têm de ser mantidos longe até mesmo porque a sua presença desvalorizava o entorno e rebaixa o valor dos imóveis. É uma perversão que se retroalimenta, e explica também essa falta de um planejamento mais global para a habitação popular. Afinal, para tanto, os espaços teriam de ser minimamente democratizados, mesclados, e os serviços e a infraestrutura melhor distribuídos. Muita gente no Brasil é contra.
Como deveria ser feita essa articulação entre os programas habitacionais e as políticas urbanas? Em que instância deveria se dar esse planejamento?
A base deveria ser o planejamento do uso e da ocupação do solo, nas instâncias de prefeituras, de regiões metropolitanas e governos estaduais. Mesmo porque o Governo Federal não tem competência constitucional para fazer política urbana. A localização deveria levar em conta a boa articulação do conjunto habitacional com o tecido urbano, a sustentabilidade ambiental, a mobilidade, o acesso às fontes de trabalho. E o projeto não deveria se limitar só às moradias. O mix de renda, de tipologia de habitação, as áreas para comércio, também deveriam ser fatores determinantes. Se possível, deveria ser dada até a possibilidade para o morador abrir um negócio na sua própria casa.
Outro fator importante seria a construção do conjunto por etapas, e conforme ele fosse crescendo, ganhando mais massa em número de unidades, o complexo de exigências fosse aumentando. No fundo, seria um projeto de produção de espaço, não de uma simples implantação de um conjunto de casas. Mas raramente esse modelo é posto em prática no país.
Faltaria vontade política para mudar o paradigma?
Falta vontade política e sobram interesses econômicos. No Brasil, leis e planos existem aos montes. Toda cidade de algum porte tem o seu plano diretor e em tese faz planejamento urbano. Mas se o planejamento realmente se preocupasse com a questão habitacional, não teríamos tanta gente ocupando encostas, zonas de proteção ambiental, áreas de mananciais, mangues, criando loteamentos irregulares ou clandestinos - a quantidade de brasileiros que residem em moradias sem registro deve estar entre as maiores do mundo.
Há vários governos estaduais que não têm sequer organismos de habitação. A maior parte dos municípios também não tem - quando muito, o assunto é uma atribuição secundária de alguma secretaria de desenvolvimento urbano. A instância que acaba determinando mesmo a localização e o formato dos conjuntos habitacionais é quase sempre o mercado, como o próprio programa federal Minha Casa, Minha Vida vem a comprovar agora.
O programa Minha Casa, Minha Vida não está sendo discutido com Estados e municípios?
Até está, mas o fato é que se trata de um programa feito pelo Governo Federal e pelos empresários. Claro que é louvável um programa que cria empregos e reserva 16 bilhões de reais em subsídios para a população de zero a três salários-mínimos, e prevê amplos recursos para a regularização fundiária. Mas não serão os organismos metropolitanos, nem os municipais, que, no final das contas, irão definir qual a melhor localização das novas moradias, dos novos bairros. Está de novo se pensando em coisas muito grandes, em megaconjuntos - o formato preferido das construtoras e empresas imobiliárias, quando há tanto espaço vazio, mal-aproveitado ou passível de retrofit nas áreas centrais das grandes cidades. É o mercado que vai comprar as terras e definir aonde os conjuntos vão se localizar. É a velha inversão de papéis, o rabo abanando o cachorro. Todos esses investimentos - para lá de bem-vindos - vão ser jogados na nossa cultura patrimonialista de administração do solo, por mais que o programa fale que os empreendimentos devem estar inseridos no tecido urbano.
Já tem uma empresa em São Paulo propondo um conjunto de 30 mil unidades, no meio do nada, a 13 quilômetros do núcleo urbano mais próximo. Deverão morar ali, no mínimo, 120 mil pessoas. Isso é o tamanho de uma cidade! E o pior é que muitas prefeituras aprovam qualquer coisa. Elas acham que é progresso, que vai ter emprego, vai ter construção. Não se dão conta que essa população vai depois demandar, que vai ter necessidades de tudo.
Será que a falta de recursos suficientes dos Estados e municípios não é, em parte, responsável por esta deformação?
De fato, o modelo de financiamento de habitação popular que vigora no Brasil é ainda muito concentrador. Quase tanto como nos tempos do BNH. O grosso dos recursos fica na Caixa Econômica Federal e de lá vai para os vários programas. Em termos de recursos, praticamente não há participação do mercado imobiliário privado nessa área. Porque esse mercado é altamente restritivo, e tradicionalmente produz para poucos. E tradicionalmente produtos de luxo. Nem para a classe média ele produz. Aliás, o programa Minha Casa, Minha Vida inclui imóveis de 500 mil reais. Isso é um escândalo. Mas por que a classe média entrou em um programa tão abertamente subsidiado? Porque para produzir para a classe média e para as classes populares, o mercado exige condições subsidiadas, porque acha que sem isso o projeto não dará retorno. É um problema sério, histórico, do mercado imobiliário brasileiro. Os bancos privados tampouco querem saber de financiar imóveis, por causa do passivo ruim do país nessa área. O Brasil teve tantos planos econômicos, e tantas mudanças de regras financeiras, que qualquer financiamento podia acabar em embate judicial. Hoje o país está financeiramente estável, mas o medo dos bancos permanece.
POR ROSA SYMANSKI E ALBERTO MAWAKDIYE FOTO MARCELO SCANDAROLI
Com uma rica e vasta experiência na área de planejamento urbano e habitação popular - foi ela, por exemplo, quem formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, do qual foi ministra-adjunta entre 2003 e 2005 -, a arquiteta Erminia Maricato viu com bons olhos o anúncio do programa Minha Casa, Minha Vida, lançado no último mês de março pelo Governo Federal. O objetivo do programa é construir um milhão de moradias e criar empregos de modo a reduzir o impacto da crise econômica sobre a classe trabalhadora.
Mas Ermínia também se confessa preocupada com alguns aspectos do programa - por exemplo, a localização e o tamanho dos conjuntos. "Nós, urbanistas, gostaríamos que Minha Casa, Minha Vida se constituísse de conjuntos de menor porte, inseridos na malha urbana, que trabalhasse na recuperação de edifícios vazios e aproveitasse terrenos contíguos ao tecido urbano, no centro das cidades", diz. "Mas a impressão que me dá é que vai sair muito empreendimento de grande porte."
A arquiteta faz duras críticas aos grandes conjuntos habitacionais implantados longe das regiões centrais, ou até fora das cidades, acarretando sofrimento para os moradores e toda sorte de deseconomias para o poder público. Para ela, trata-se de um tipo de empreendimento que, além de não levar em conta o bem-estar da população, tampouco considera a moderna tendência do urbanismo pelo adensamento das cidades.
"O planejamento urbano decerto existe no Brasil. Mas se fosse eficaz, não teríamos tanta gente ocupando encosta, área de proteção ambiental, de mananciais, mangues etc. A minha preocupação é desmistificar esse tipo de planejamento", afirma.
Além do seu trabalho incansável na área de habitação popular (ela também foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e1992), Erminia é professora da FAU-USP e uma solicitada conferencista.
A seguir, trechos da entrevista.
O programa Minha Casa, Minha Vida foi lançado em março deste ano pelo Governo Federal como uma ferramenta para reduzir o enorme déficit habitacional brasileiro, estimado em pouco mais de sete milhões de moradias. A expectativa do programa é de que sejam construídas um milhão de habitações populares - uma meta ambiciosa, sem dúvida, mas restariam ainda seis milhões para que o déficit fosse zerado. De verdade: será que um dia o Brasil vai conseguir dar conta desse déficit?
Acho que a tendência do déficit habitacional é diminuir. Não tenho dúvida disso. Já poderia estar menor se o estado não tivesse passado tanto tempo sem investir, na onda do neoliberalismo. O número de favelas disparou nas últimas décadas. O crescimento da população brasileira entre 1980 e 1990 foi abaixo de 2%, mas o das favelas foi acima de 6%. Entre 1990 e 2000, a população brasileira cresceu 1,4%, e a das favelas mais de 4%. Então todo investimento que ataque de frente esse déficit será bem-vindo. Ele é tão gigantesco que é preciso fazer o máximo que der. E o programa Minha Casa, Minha Vida tem uma faceta interessante. Por causa da crise financeira, o Brasil teve um rombo terrível no nível de emprego no final do ano passado. E o programa pretende contribuir para reverter essa queda. É uma medida que merece aplausos. Os Estados Unidos estão em enorme crise com 9,1% de desemprego. Mas na cidade de São Paulo nós já chegamos a 18%.
Mas não estaria faltando ao programa certa visão de longo prazo?
Não é esse o caso. Hoje, afinal, o Brasil tem um Plano Nacional de Habitação, que trabalha com um cenário para 20 anos. A meu ver, o que falta para Minha Casa, Minha Vida é o que sempre faltou na maioria dos programas habitacionais brasileiros: uma visão mais estrutural do que deve ser esse combate ao déficit. O combate ao déficit não pode se resumir apenas aos números. E desde os tempos do Banco Nacional da Habitação, o BNH, que foi criado pelos militares na década de 1960, a questão habitacional no Brasil foi quase sempre tratada como meramente quantitativa, e o sucesso ou fracasso dos programas medido pelo número de unidades construídas. É óbvio que deveria ter outros fatores envolvidos, como a maior articulação deles com políticas urbanas e sociais.
Os programas seriam demasiadamente estanques.
Sim, e, por causa disso, muitas vezes trouxeram grandes prejuízos para as cidades. Há no Brasil conjuntos habitacionais com localização tão distante e inadequada que não apenas colocaram os moradores em uma condição de sofrimento, como criaram uma série de deseconomias urbanas. Quando se instala um conjunto fora da cidade, é preciso levar a cidade até o conjunto. É uma condição de deseconomia e de insustentabilidade, que no mínimo gera muitas viagens. O contrário do que o urbanismo atualmente preconiza. Hoje, o que se busca é uma cidade mais compacta, com agricultura no entorno, parques. Uma cidade compacta também pressupõe que as pessoas possam fazer parte de suas viagens a pé. Muita gente na periferia de São Paulo, por exemplo, faz viagens a pé - na verdade, um terço das viagens nas regiões metropolitanas brasileiras são feitas dessa forma. Mas apenas porque essas pessoas não têm dinheiro e o transporte é péssimo.
Elas são obrigadas a caminhar.
E o problema não está somente na habitação e no transporte. Nós recebemos uma cidade em ruínas depois de 25 anos de neoliberalismo no setor público. Durante esse período também não houve investimento em saneamento, saúde, educação, coleta e destinação de lixo, cultura e lazer. É impossível desvincular o déficit habitacional de todos esses déficits. Todos eles fazem parte de um mesmo contexto e por isso deveriam ser tratados de forma conjunta, estruturada. Mas o que se viu, ao longo da história recente, foram apenas pessoas sendo colocadas fora da cidade e em não-cidades, em lugares que não passam de depósitos de gente.
O paradigma é a Cidade de Deus, que ficou famosa por ter chegado ao cinema. Mas há centenas de outros exemplos. A existência dessas não-cidades é ruim para todo mundo. Depósitos de gente. Seja um gueto de pessoas homogeneamente pobres, seja um gueto de ricos, sempre dão origem a patologias: formação de gangues, tráfico de drogas, adolescentes endinheirados avessos a qualquer sentimento de solidariedade humana, de respeito à coletividade.
O que se consolidou também nessa concepção foi a cultura patrimonialista brasileira, essa trágica herança histórica que temos de carregar. Nas cidades brasileiras, quem pode ser dono da terra, o é; os pobres têm de ser mantidos longe até mesmo porque a sua presença desvalorizava o entorno e rebaixa o valor dos imóveis. É uma perversão que se retroalimenta, e explica também essa falta de um planejamento mais global para a habitação popular. Afinal, para tanto, os espaços teriam de ser minimamente democratizados, mesclados, e os serviços e a infraestrutura melhor distribuídos. Muita gente no Brasil é contra.
Como deveria ser feita essa articulação entre os programas habitacionais e as políticas urbanas? Em que instância deveria se dar esse planejamento?
A base deveria ser o planejamento do uso e da ocupação do solo, nas instâncias de prefeituras, de regiões metropolitanas e governos estaduais. Mesmo porque o Governo Federal não tem competência constitucional para fazer política urbana. A localização deveria levar em conta a boa articulação do conjunto habitacional com o tecido urbano, a sustentabilidade ambiental, a mobilidade, o acesso às fontes de trabalho. E o projeto não deveria se limitar só às moradias. O mix de renda, de tipologia de habitação, as áreas para comércio, também deveriam ser fatores determinantes. Se possível, deveria ser dada até a possibilidade para o morador abrir um negócio na sua própria casa.
Outro fator importante seria a construção do conjunto por etapas, e conforme ele fosse crescendo, ganhando mais massa em número de unidades, o complexo de exigências fosse aumentando. No fundo, seria um projeto de produção de espaço, não de uma simples implantação de um conjunto de casas. Mas raramente esse modelo é posto em prática no país.
Faltaria vontade política para mudar o paradigma?
Falta vontade política e sobram interesses econômicos. No Brasil, leis e planos existem aos montes. Toda cidade de algum porte tem o seu plano diretor e em tese faz planejamento urbano. Mas se o planejamento realmente se preocupasse com a questão habitacional, não teríamos tanta gente ocupando encostas, zonas de proteção ambiental, áreas de mananciais, mangues, criando loteamentos irregulares ou clandestinos - a quantidade de brasileiros que residem em moradias sem registro deve estar entre as maiores do mundo.
Há vários governos estaduais que não têm sequer organismos de habitação. A maior parte dos municípios também não tem - quando muito, o assunto é uma atribuição secundária de alguma secretaria de desenvolvimento urbano. A instância que acaba determinando mesmo a localização e o formato dos conjuntos habitacionais é quase sempre o mercado, como o próprio programa federal Minha Casa, Minha Vida vem a comprovar agora.
O programa Minha Casa, Minha Vida não está sendo discutido com Estados e municípios?
Até está, mas o fato é que se trata de um programa feito pelo Governo Federal e pelos empresários. Claro que é louvável um programa que cria empregos e reserva 16 bilhões de reais em subsídios para a população de zero a três salários-mínimos, e prevê amplos recursos para a regularização fundiária. Mas não serão os organismos metropolitanos, nem os municipais, que, no final das contas, irão definir qual a melhor localização das novas moradias, dos novos bairros. Está de novo se pensando em coisas muito grandes, em megaconjuntos - o formato preferido das construtoras e empresas imobiliárias, quando há tanto espaço vazio, mal-aproveitado ou passível de retrofit nas áreas centrais das grandes cidades. É o mercado que vai comprar as terras e definir aonde os conjuntos vão se localizar. É a velha inversão de papéis, o rabo abanando o cachorro. Todos esses investimentos - para lá de bem-vindos - vão ser jogados na nossa cultura patrimonialista de administração do solo, por mais que o programa fale que os empreendimentos devem estar inseridos no tecido urbano.
Já tem uma empresa em São Paulo propondo um conjunto de 30 mil unidades, no meio do nada, a 13 quilômetros do núcleo urbano mais próximo. Deverão morar ali, no mínimo, 120 mil pessoas. Isso é o tamanho de uma cidade! E o pior é que muitas prefeituras aprovam qualquer coisa. Elas acham que é progresso, que vai ter emprego, vai ter construção. Não se dão conta que essa população vai depois demandar, que vai ter necessidades de tudo.
Será que a falta de recursos suficientes dos Estados e municípios não é, em parte, responsável por esta deformação?
De fato, o modelo de financiamento de habitação popular que vigora no Brasil é ainda muito concentrador. Quase tanto como nos tempos do BNH. O grosso dos recursos fica na Caixa Econômica Federal e de lá vai para os vários programas. Em termos de recursos, praticamente não há participação do mercado imobiliário privado nessa área. Porque esse mercado é altamente restritivo, e tradicionalmente produz para poucos. E tradicionalmente produtos de luxo. Nem para a classe média ele produz. Aliás, o programa Minha Casa, Minha Vida inclui imóveis de 500 mil reais. Isso é um escândalo. Mas por que a classe média entrou em um programa tão abertamente subsidiado? Porque para produzir para a classe média e para as classes populares, o mercado exige condições subsidiadas, porque acha que sem isso o projeto não dará retorno. É um problema sério, histórico, do mercado imobiliário brasileiro. Os bancos privados tampouco querem saber de financiar imóveis, por causa do passivo ruim do país nessa área. O Brasil teve tantos planos econômicos, e tantas mudanças de regras financeiras, que qualquer financiamento podia acabar em embate judicial. Hoje o país está financeiramente estável, mas o medo dos bancos permanece.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
PIB não é mais suficiente para medir bem-estar
Por Giampiero Martinotti, do La Repubblica
As cifras, os percentuais, os sinais mais e menos não bastam para medir o nosso bem-estar, o enriquecimento ou o empobrecimento dos nossos países. Medir o Produto Interno Bruto é indispensável, mas não é mais suficiente para fornecer um quadro exaustivo do estado de saúde de uma economia. Não se trata de criar um novo maxi-indicador, mas de levar em consideração toda uma série de parâmetros, particularmente os relativos às famílias e às várias categorias sócio-profissionais: só desse modo, os governos poderão afinar suas políticas econômicas.
São essas as conclusões a que a comissão presidida por Joseph Stiglitz, com colaboração de Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, chegou. Vinte e cinco economistas de primeiríssimo plano (dentre os quais o presidente do Istat [Instituto Nacional de Estatística italiano], Enrico Giovannini), chamados por Nicolas Sarkozy para refletir sobre como oferecer um quadro mais preciso da realidade econômica, sobre o melhor modo para preencher, pelo menos em parte, o fosso que separa os dados macroeconômicos da percepção que os cidadãos têm, sobre meios necessários para integrar os dados sociais e ambientais. Um trabalho que não se refere só à França e que se une às reflexões semelhantes promovidas pela Comissão Europeia.
O documento final será apresentado hoje, antes no Palácio do Eliseu e depois na Sorbonne, na França. Mas o jornal Le Figaro publicou alguns amplos trechos do documento, e a própria comissão publicou em seu site alguns documentos de trabalho. As 291 páginas do relatório, dividido em três partes, apresentam uma análise aprofundada dos problemas ligados à medida da riqueza e formulam uma dezena de recomendações.
A primeira parte é dedicada ao PIB, considerado insuficiente para fornecer um quadro exaustivo da riqueza de um país: reúne em uma cifra a progressão ou a regressão da riqueza produzida, mas não leva em consideração disparidades individuais e sociais. Segundo o relatório, “para avaliar o bem-estar material, é preciso analisar as rendas e o consumo, mais do que a produção”.
Para isso, os Estados devem observar a situação econômica do ponto de vista das famílias, levando em conta suas diversas condições. As médias nacionais, enfim, não bastam mais: o aumento dos preços, por exemplo, pode pesar muito mais do que algumas categorias (geralmente, as menos importantes). E medir as rendas não é suficiente. Também será preciso levar em consideração o patrimônio: quem não economiza protege o bem-estar atual, mas compromete o futuro. Enfim, será preciso avaliar os trabalhos sem valor comercial, como os trabalhos domésticos, e mais em geral a repartição das atividades entre trabalho e tempo livre: a Itália, como todos os demais países europeus, tem taxas mais altas do que os EUA no que se refere ao trabalho doméstico e ao tempo livre.
A segunda parte convida a examinar a qualidade de vida, o contexto social, ambiental e de segurança dos cidadãos. Os trabalhos de alguns economistas franceses já mostraram como as coisas podem mudar: se olharmos só ao PIB per capita, a Itália era, em 2004, no 18º lugar, enquanto que, se levarmos em conta outros elementos ligados à qualidade de vida, ao bem-estar e ao trabalho doméstico, sobe para o 11º.
É preciso, em suma, integrar muitos outros fatores: da taxa de mortalidade, à evolução física das populações (altura, peso etc.) aos serviços sociais. Este último é um ponto importante: os serviços públicos, como os de saúde, educação e segurança, devem ser calculados para avaliar corretamente a riqueza das famílias.
Ainda mais complexo foi o trabalho dedicado ao desenvolvimento sustentável. Se há mais ou menos consenso sobre a definição dada há mais de 20 anos pelo relatório Brundtland (”o desenvolvimento sustentável é um desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”), é mais difícil localizar um indicador eficaz.
A comissão sugere que sejam criados índices capazes de “calcular as variações dos estoques”. Seria preciso, enfim, medir o capital humano e físico, sabendo que um desenvolvimento sustentável é o que o faz aumentar, preservando assim as gerações futuras.
* Publicada no jornal La Repubblica, 12-09-2009. Tradução de Moisés Sbardelotto.
(Envolverde/IHU - Instituto Humanitas Unisinos)
As cifras, os percentuais, os sinais mais e menos não bastam para medir o nosso bem-estar, o enriquecimento ou o empobrecimento dos nossos países. Medir o Produto Interno Bruto é indispensável, mas não é mais suficiente para fornecer um quadro exaustivo do estado de saúde de uma economia. Não se trata de criar um novo maxi-indicador, mas de levar em consideração toda uma série de parâmetros, particularmente os relativos às famílias e às várias categorias sócio-profissionais: só desse modo, os governos poderão afinar suas políticas econômicas.
São essas as conclusões a que a comissão presidida por Joseph Stiglitz, com colaboração de Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, chegou. Vinte e cinco economistas de primeiríssimo plano (dentre os quais o presidente do Istat [Instituto Nacional de Estatística italiano], Enrico Giovannini), chamados por Nicolas Sarkozy para refletir sobre como oferecer um quadro mais preciso da realidade econômica, sobre o melhor modo para preencher, pelo menos em parte, o fosso que separa os dados macroeconômicos da percepção que os cidadãos têm, sobre meios necessários para integrar os dados sociais e ambientais. Um trabalho que não se refere só à França e que se une às reflexões semelhantes promovidas pela Comissão Europeia.
O documento final será apresentado hoje, antes no Palácio do Eliseu e depois na Sorbonne, na França. Mas o jornal Le Figaro publicou alguns amplos trechos do documento, e a própria comissão publicou em seu site alguns documentos de trabalho. As 291 páginas do relatório, dividido em três partes, apresentam uma análise aprofundada dos problemas ligados à medida da riqueza e formulam uma dezena de recomendações.
A primeira parte é dedicada ao PIB, considerado insuficiente para fornecer um quadro exaustivo da riqueza de um país: reúne em uma cifra a progressão ou a regressão da riqueza produzida, mas não leva em consideração disparidades individuais e sociais. Segundo o relatório, “para avaliar o bem-estar material, é preciso analisar as rendas e o consumo, mais do que a produção”.
Para isso, os Estados devem observar a situação econômica do ponto de vista das famílias, levando em conta suas diversas condições. As médias nacionais, enfim, não bastam mais: o aumento dos preços, por exemplo, pode pesar muito mais do que algumas categorias (geralmente, as menos importantes). E medir as rendas não é suficiente. Também será preciso levar em consideração o patrimônio: quem não economiza protege o bem-estar atual, mas compromete o futuro. Enfim, será preciso avaliar os trabalhos sem valor comercial, como os trabalhos domésticos, e mais em geral a repartição das atividades entre trabalho e tempo livre: a Itália, como todos os demais países europeus, tem taxas mais altas do que os EUA no que se refere ao trabalho doméstico e ao tempo livre.
A segunda parte convida a examinar a qualidade de vida, o contexto social, ambiental e de segurança dos cidadãos. Os trabalhos de alguns economistas franceses já mostraram como as coisas podem mudar: se olharmos só ao PIB per capita, a Itália era, em 2004, no 18º lugar, enquanto que, se levarmos em conta outros elementos ligados à qualidade de vida, ao bem-estar e ao trabalho doméstico, sobe para o 11º.
É preciso, em suma, integrar muitos outros fatores: da taxa de mortalidade, à evolução física das populações (altura, peso etc.) aos serviços sociais. Este último é um ponto importante: os serviços públicos, como os de saúde, educação e segurança, devem ser calculados para avaliar corretamente a riqueza das famílias.
Ainda mais complexo foi o trabalho dedicado ao desenvolvimento sustentável. Se há mais ou menos consenso sobre a definição dada há mais de 20 anos pelo relatório Brundtland (”o desenvolvimento sustentável é um desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”), é mais difícil localizar um indicador eficaz.
A comissão sugere que sejam criados índices capazes de “calcular as variações dos estoques”. Seria preciso, enfim, medir o capital humano e físico, sabendo que um desenvolvimento sustentável é o que o faz aumentar, preservando assim as gerações futuras.
* Publicada no jornal La Repubblica, 12-09-2009. Tradução de Moisés Sbardelotto.
(Envolverde/IHU - Instituto Humanitas Unisinos)
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Blogs do Além
Blogs do Além é uma seção da revista Carta Capital, de publicação semanal.
Trata-se de texto bem humorado de autoria de Vitor Knijnik, que pode ser visitado também num site http://www.blogsdoalem.com.br/ e que eu recomendo.
O formato de blog de personalidade já falecida com sacadas bem inteligentes tem sido uma das melhores coisas a serem lidas na revista.
O blog desta semana então, nem se fala....É Henry Ford nos falando a sua invenção. Numa linguagem bem leve, Vitor nos apresenta extamente o que está acontecendo nas cidades. Apesar de um texto irônico, é de se pensar seriamente no que ele nos expõe. Leiam e reflitam...
IDEIA NOVA NA PARADA.
No início do século XX, os automóveis eram caros, difíceis de dirigir e funcionavam precariamente. Então, criei uma fábrica moderna que produziu um carro simples, acessível e fácil de usar. O resultado, você sabe. A indústria automobilística
explodiu no mundo inteiro, o que mudou o desenho das cidades, até chegarmos à situação em que nos encontramos, com emissoras de rádio dedicadas somente a noticiar o trânsito.
Um tanto por culpa e outro tanto porque sou engenhoso mesmo, pensei num novo produto que vai revolucionar mais uma vez a maneira como vivemos. Ao contrário do que você possa imaginar, não se trata de nada que corteje o discurso da energia sustentável e renovável. Aliás, minha invenção mal precisará de uma energia motora. A gênese da minha ideia é muito simples: parece-me um contrassenso produzir carros cada vez mais potentes, cada vez mais velozes e furiosos, se mal conseguimos engatar a segunda. Não faz sentido imaginar carros com cada vez mais equipamentos de navegação se é difícil chegar à esquina.
A maioria dos carros que andam nas hipercidades são projetados para coisas que eles não podem fazer: mexerem-se.
Foi só juntar um mais um para perceber que precisamos mesmo é de um carro para ficar parado. Isso mesmo. Já estava na hora de lançar o autoimóvel.
Num só projeto, resolvemos os problemas do déficit habitacional e o de trânsito. Esses novos bólides viriam equipados com o que interessa: cama, fogareiro e banheiro químico. O resto do que você precisa tem num celular. Milhões de pessoas finalmente poderiam morar perto do trabalho (caso tivessem a sorte de ficarem num engarrafamento perto dele). O autoimóvel iria promover uma redução de impostos. O IPVA e o IPTU seriam integrados. O Imposto sobre Circulação de Mercadorias também não faria sentido . Tiraríamos pessoas da economia informal. Os flanelinhas seriam promovidos a zeladores. Os ambulantes passariam para o mercado de delivery. Os carros maiores, do tipo SVU, poderiam ser convertidos em área de lazer coletiva, como as praças. Diminuiríamos diferenças sociais entre os bairros. Autoimóveis populares poderiam ser vizinhos de uma perua de luxo.
Um dos efeitos colaterais seria uma inevitável mistura de apelos publicitários praticados pelas indústrias da construção e da automobilística. Já imagino até um anúncio: “Venha morar nas Vivendas do Sedan, motor 0.0, design arrojado, espaço gourmet, o carro mais espaçoso da categoria, parado ali no coração do engarrafamento que mais cresce na Zona Sul”.
O Autoimóvel é uma ideia boa e necessária. E que tem mercado garantido. Pois já nasce com o apoio incondicional das autoridades que estão sempre a fazer túneis, viadutos e outros estímulos para entupir as ruas.
Trata-se de texto bem humorado de autoria de Vitor Knijnik, que pode ser visitado também num site http://www.blogsdoalem.com.br/ e que eu recomendo.
O formato de blog de personalidade já falecida com sacadas bem inteligentes tem sido uma das melhores coisas a serem lidas na revista.
O blog desta semana então, nem se fala....É Henry Ford nos falando a sua invenção. Numa linguagem bem leve, Vitor nos apresenta extamente o que está acontecendo nas cidades. Apesar de um texto irônico, é de se pensar seriamente no que ele nos expõe. Leiam e reflitam...
IDEIA NOVA NA PARADA.
No início do século XX, os automóveis eram caros, difíceis de dirigir e funcionavam precariamente. Então, criei uma fábrica moderna que produziu um carro simples, acessível e fácil de usar. O resultado, você sabe. A indústria automobilística
explodiu no mundo inteiro, o que mudou o desenho das cidades, até chegarmos à situação em que nos encontramos, com emissoras de rádio dedicadas somente a noticiar o trânsito.
Um tanto por culpa e outro tanto porque sou engenhoso mesmo, pensei num novo produto que vai revolucionar mais uma vez a maneira como vivemos. Ao contrário do que você possa imaginar, não se trata de nada que corteje o discurso da energia sustentável e renovável. Aliás, minha invenção mal precisará de uma energia motora. A gênese da minha ideia é muito simples: parece-me um contrassenso produzir carros cada vez mais potentes, cada vez mais velozes e furiosos, se mal conseguimos engatar a segunda. Não faz sentido imaginar carros com cada vez mais equipamentos de navegação se é difícil chegar à esquina.
A maioria dos carros que andam nas hipercidades são projetados para coisas que eles não podem fazer: mexerem-se.
Foi só juntar um mais um para perceber que precisamos mesmo é de um carro para ficar parado. Isso mesmo. Já estava na hora de lançar o autoimóvel.
Num só projeto, resolvemos os problemas do déficit habitacional e o de trânsito. Esses novos bólides viriam equipados com o que interessa: cama, fogareiro e banheiro químico. O resto do que você precisa tem num celular. Milhões de pessoas finalmente poderiam morar perto do trabalho (caso tivessem a sorte de ficarem num engarrafamento perto dele). O autoimóvel iria promover uma redução de impostos. O IPVA e o IPTU seriam integrados. O Imposto sobre Circulação de Mercadorias também não faria sentido . Tiraríamos pessoas da economia informal. Os flanelinhas seriam promovidos a zeladores. Os ambulantes passariam para o mercado de delivery. Os carros maiores, do tipo SVU, poderiam ser convertidos em área de lazer coletiva, como as praças. Diminuiríamos diferenças sociais entre os bairros. Autoimóveis populares poderiam ser vizinhos de uma perua de luxo.
Um dos efeitos colaterais seria uma inevitável mistura de apelos publicitários praticados pelas indústrias da construção e da automobilística. Já imagino até um anúncio: “Venha morar nas Vivendas do Sedan, motor 0.0, design arrojado, espaço gourmet, o carro mais espaçoso da categoria, parado ali no coração do engarrafamento que mais cresce na Zona Sul”.
O Autoimóvel é uma ideia boa e necessária. E que tem mercado garantido. Pois já nasce com o apoio incondicional das autoridades que estão sempre a fazer túneis, viadutos e outros estímulos para entupir as ruas.
domingo, 30 de agosto de 2009
Cena de Belém 2
A partir deste e do post abaixo, pretendo mostrar os erros do urbanismo da cidade de Belém.
Para tanto, ando agora com uma câmera digital no carro. São tantos os absurdos que será fácil demonstrar as cenas de Belém.
A deste post mostra o Bairro do Bengui, que nasceu de várias invasões, ou ocupações irregulares ou informais na década de 80.
É um bairro que tem pequenas calçadas ou não as tem. Quando tem, há casos de toldos, puxadinhos, barracas de frutas, talhos de peixes, todos nas...calçadas. E as pessoas andam nas ruas. No meio das ruas. À pé ou de bicicleta.
Trata-se de um exemplo de ausência de Estado, onde a população faz um pacto, instintivo quando possível, de não-agressão. Como dito, quando possível. Quando não é possível, a polícia é chamada. Normalmente para recolher corpos.
Cena de Belém
Avenida Nazaré, terça-feira, 13:15 h. Neste perímetro da foto, dois colégios com mais de 1.000 alunos. O trânsito é difícil. Agentes de trânsito aplicam multas naquelas que param em fila-dupla ou demoram a circular na frente dos colégios.
Porém, bem ao lado de um deles, um caminhão recolhe um container de entulhos.
Fica atravessado na pista e atrapalha o trânsito. Ele não deveria estar lá, nem fazendo o que estava fazendo. Mas está.
Assim é Belém.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
O impacto da primeira infância na compreensão do mundo
Por João Augusto Figueiró*
Quando se pretende falar sobre “o impacto da primeira infância na compreensão do mundo” temos que considerar o mundo adulto e o mundo da criança, a desumanidade do primeiro e a humanidade do segundo. O adulto de hoje foi criança um dia e a criança de hoje será o adulto do futuro. De onde provêm, então, a crueldade e a desumanidade da sociedade contemporânea?
A idéia de que a primeira infância é um período decisivo na formação da personalidade, do caráter e no modo de agir do adolescente e do adulto encontra sustentação em dados recolhidos nos últimos 100 anos de pesquisas científicas. De fato, os primeiros seis anos são fundamentais para a constituição da pessoa. Achados recentes da Neurociência oferecem evidências de que acontecimentos precoces de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda vida nas conexões sinápticas através de fenômenos de neuroplasticidade e biomoleculares. Todos nós construímos um mapa da realidade a partir das experiências vividas na infância. Assim, é possível, e muito mais eficiente, lançar os valores e fundamentos éticos da cidadania e da cultura de paz nesta primeira fase da vida, uma vez que a criança é dotada de uma capacidade absorvente, isto é, a criança é aquela que tudo recebe, julga com imaturidade, pouco recusa ou reage. Absorve e estrutura a personalidade do futuro adulto. É a criança que constrói seu conteúdo mental a partir do alimento social e assim acumula experiências que serão utilizadas para a construção de sua vida.
Sabemos há milênios que um adulto é resultado de sua própria natureza, das suas relações com a família e diferentes grupos sociais, com a cultura e com os valores, crenças, normas e práticas. “Educai as crianças e não será necessário castigar os homens”, dizia Pitágoras. Platão clamava pelos melhores “nutrientes” sociais e culturais a serem transmitidos aos menores. Freud demonstrava que as interações precoces envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o ambiente. Para Karl Jasper “o homem só pode chegar a seu verdadeiro ser conduzido pelo outro”. Jean Jacques Rosseau definiu o homem como um ser “feliz e bom”, determinando que os preconceitos culturais e as normas da vida social produziriam “sua crueldade e infortúnio”. Locke assegurou: “a criança tem tendência inata a desenvolver sua personalidade original sob a influência do ambiente e da aprendizagem” e Maria Montessori definiu a preparação do ambiente muito antes do ingresso da criança na escola como “chave da educação e da cultura real da pessoa desde o seu nascimento”.
Esquecemos todos esses ensinamentos? Dados práticos dizem que sim: Dos 22 milhões de crianças brasileiras de zero a seis anos, mais de 14 milhões estão fora de qualquer atendimento escolar da educação infantil ou de apoio institucional. O percentual de não-atendidos chega à quase 70%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A agência Senado informa que 13 milhões de crianças nessa mesma faixa etária, pertencentes a famílias carentes, estão fora de creches. Somos também detentores do triste recorde de termos as crianças mais estressadas do mundo. Infelizmente não temos, no Brasil, dados estatísticos oficiais confiáveis com abrangência nacional sobre a violência contra a criança e o adolescente exceto quando ocorre morte da vítima ou prisão do agressor. Temos alguns dados locais, municipais, alguns estudos - frequentemente parciais ou locais, algumas amostragens, muitas teses, mas nada de relevante com abrangência nacional, além da taxa de mortalidade por “causas externas” que inclui assassinatos, afogamentos, acidentes, inclusive a violência. Nosso sistema de registro é falho, os profissionais que atendem a estas vítimas geralmente não receberam o treinamento adequado, a notificação compulsória - apesar de existir - não é aplicada devidamente. Viceja a guerra dos números com equívocos, manipulações, uso e abuso político dos dados, enquanto ações efetivas e preventivas não são praticadas, devido à costumeira justificativa da “falta de recursos”, fatos abertamente denunciados no livro Midia & Violência. Sobre a questão da violência e abusos perpetrados contra as crianças e adolescentes e suas repercussões podemos citar indicadores indiretos como a evasão escolar, adolescentes infratores ou em abrigos, e mesmo as taxas de morbidade (número de crianças atendidas nos principais hospitais de emergência do país) são falhas. Informações devem ser buscadas em sítios oficiais do sistema de saude ou das taxas de mortalidade, via DATASUS (www.datasus.gov.br), IPEA (www.ipeadata.gov.br), IBGE (www.ibge.gov.br) ou SENASP-MJ (www.mt.gov.br/senasp).
O fenômeno da violência contra a criança no Brasil merece, por sua magnitude e ubiqüidade, especial atenção: crianças abusadas e maltratadas em todas as classes sociais e regiões, compreendendo abusos físicos, emocionais ou psicológicos, sexuais (incluindo a exploração sexual comercial), diferentes formas de negligência (omissão, abandono da familia e do Estado) e o trabalho infantil - considerados crimes perante o Estatuto da Criança e do Adolescente - tornaram-se lugar comum em nossa sociedade, banalizando a violência por meio da impunidade e da corrupção que grassam nas várias esferas governamentais. Apesar de criminosos, a maioria destes eventos não é sequer julgada ou punida. Muitas categorias de transtornos mentais têm sido, há muito tempo, associadas ao abuso, negligência e violência na infancia, principalmente os transtornos depressivos, de ansiedade, dissociativos, de personalidade, ao uso abusivo de alcool e drogas, transtornos de conduta com comportamentos transgressores, impulsivos, agressivos e violentos. Muito se escreve e discute sobre a violência física, abuso sexual, trabalho infantil e outros traumas perpetrados contra nossas crianças. Sem reduzir-lhes a importância e gravidade, falemos também das formas mais silenciosas e sutis de violência que acreditamos ser também um dos maiores responsáveis pela transmissão transgeracional da violência em nossa sociedade. Formas que todos nós poderíamos desestimular ou eliminar, se fôssemos um pouco mais ousados. Há maior violência do que transmitirmos às nossas crianças e adolescentes a cultura do consumismo atual, de proporções assustadoras e sem disfarces, que destrói valores humanos e dilapida as reservas naturais do planeta? Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica, de bens, de conhecimento e de cultura, que tem levado à exclusão progressiva de parcela significativa da população. Adicionemos a esta receita econômica a pressão consumista jamais vista na história humana e teremos pavimentado o terreno para a explosão da violência cotidiana.
A violência leva ao retrocesso, é multideterminada e tem seus fatores de risco e de proteção para a sua emergência e prevenção sobejamente conhecidos na literatura médica. A violência pouco falada começa no período pré-concepção com fetos indesejados, mal-vindos ou rejeitados, decorrentes da insuficiência de um plano nacional eficaz de planejamento familiar e controle da natalidade. Permanece nas gestações mal cuidadas, tensas e desamparadas, de partos desnecessariamente cirúrgicos, resultantes principalmente de interesses pecuniários aos quais nossa sociedade fecha os olhos. Continua na primeira infância privada dos nutrientes afetivos fundamentais para o desenvolvimento saudável do ponto de vista psíquico, social e cultural resultando em modelos corruptos, consumistas, predatórios, competitivos e de dominação que transmitimos às novas gerações.
Exigimos e desenvolvemos no Brasil infra-estrutura física como, por exemplo, pontes, viadutos, estradas, aeroportos e estádios de futebol, mas poucos se debruçam sobre o que temos feito no desenvolvimento da infra-estrutura humana que irá gerir estes primeiros recursos. Se a educação acadêmica fosse suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento - e não vai aqui qualquer bravata contra investimentos nesta área, muito ao contrário - não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, os governos tirânicos e corruptos, as “guerras cirúrgicas”, realizações de pessoas muito letradas e “educadas”. Se argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos não convencem, mostremos então razões econômicas para investir na primeira infância. O Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que um dólar investido nesta faixa etária gera economia de sete dólares em assistência social, atendimento a doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e em evasão escolar e 15 dólares por pessoa em doenças que continuam a se manifestar na vida adulta como depressões, suicídios, homicídios, abusos de drogas, sintomas físicos entre outros. Nada teremos de diferente do cenário atual se não tomarmos rumos econômicos mais humanitários conosco mesmos.
O novo cenário exige o resgate de valores essenciais à vida em sociedade, tais como a ética, amor e respeito às diferenças. Com isso será possível a promoção da convivência societária e solidária fundamentada cientificamente na resiliência e na salutogênese. A resiliência, interativa, refere-se à relativa resistência de um individuo às experiências de risco em seu ambiente na superação dos estresses e adversidades de maneira saudável. É utilizado para referir-se a pessoas de performances psicológicas boas a despeito de vivências negativas das quais esperaríamos seqüelas graves. A salutogênese designa as forças que geram saúde. Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, é o oposto da patogênese, ou seja, as influências que causam a doença. Antonovsky recomenda potencializar forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar esta “força”, pela ciência, pela chamada salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social. Eis aqui os principais antídotos da violência que nos dispomos a aplicar.
Organização não-governamental, apartidária e humanitária sem fins lucrativos, o Instituto Zero a Seis (www.zeroaseis.org) nasceu para colaborar, sempre em bases científicas, na construção de uma geração que tenha a cultura de paz e não-violência como fundamento de seu estilo de vida reunindo e disseminando conceitos e práticas para criar uma massa crítica de consciência suficiente para cuidar melhor da primeira infância. No universo de seu público-alvo estão jovens, adultos cuidadores de crianças, pais e mães, educadores, cientistas, profissionais do Direito e da Saúde - especialmente da área mental -, comunicadores, empresários, gestores públicos e privados, artistas e formadores de opinião, além de empresas e instituições.
Portanto, é preciso agir preventivamente contra esses abusos físicos, sexuais e psíquicos oferecendo à criança ritmo, atenção, bons modelos de identificação, ambiente familiar saudável e estável e constância de vínculos, dentro de constelações sociais confiáveis que estimulem o desenvolvimento, o aprendizado de valores relacionados à cultura de paz e não exclusivamente à cultura de guerra que se embasa a história de nossa sociedade direcionados ao consumo, à competição e à rivalidade. Interferir adequadamente na infância é um desafio, e os achados científicos recentes podem contribuir para a implantação de práticas e políticas relativas à primeira infância voltadas à promoção da cidadania por meio do fomento da saúde mental e social (salutogênese) e de formas de educação e cuidado da criança que contribuam para que ela possa resolver, desde cedo, de forma pacífica e não-violenta os seus conflitos e superar as adversidades da vida, lidando de maneira respeitosa e generosa com o outro e com o ambiente, e confrontando-se com a realidade de forma construtiva e inclusiva das diferenças (resiliência). De fato, os conceitos de salutogênese e resiliência podem ser relevantes para explicar porque os indivíduos conseguem triunfar mesmo em ambientes eminentemente hostis e adversos.
Seria este o discurso delirante de um humanista nefelibata? Paulo Freire em a “Pedagogia da Indignação” nos socorre e ensina que “o discurso da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da constatação da impossibilidade, mas o discurso ideológico da inviabilização do possível”. Convirjamos então na construção desta “utopia possível”.
* João Augusto Figueiró é médico e psicoterapeuta do Hospital das Clinicas da FMUSP. Trabalhou ativamente na implantação das atividades da Universidade da Paz - ONU (www.upeace.org) em São Paulo e na construção da Rede Gandhi - uma parceria do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Unesco e Associacao Palas Athena. É membro fundador, presidente e diretor científico do Instituto Zero a Seis - Primeira Infância e Cultura de Paz (www.zeroaseis.org).
Referências:
1. Mídia e Violência: Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no Brasil, Silvia Ramos e Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), Iuperj-Tec, Secretaria Especial de Direitos Humanos e União Européia, 2007 . www.ucamcesec.com.br;
2. Prevenção de abuso sexual infantil: Um enfoque interdisciplinar. Williams, L.C.A. & Araújo, E.A.C. (ORGS.). (2009). Curitiba: Editora Juruá.
3. CD - Abusos, maus tratos e proteção à Criança e ao Adolescente: CEIIAS/IESC/Laprev/ISPCAN (orgs.), Rio de Janeiro, 2009. http://www.ufscar.br/laprev/ e www.ceiias.org.br
4. Violência e saúde mental na infancia e adolescência - Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol. 14, número 2, março/abril 2009, 343-688. www.cienciaesaudecoletiva.com.br;
5. Child Victimization: Maltreatment, Bullying and Dating Violence, Prevention and Intervention, Kathleen A Kendall-Tacket, Sarah M Giacomoni (Eds.), Civic Research Institute, Kingston, NJ, 2005.
6. Adverse Childhood Experience: Straus, MA: Child Abuse and Neglect 1998, 22: 249-270 - http://www.cdc.gov/nccdphp/ace
Agradecimentos:
Dra. Lucia Williams, psicóloga e professora titular da UFSCar, LAPREV, São Carlos, SP;
Dra. Evelyn Eisenstein, médica pediatra e clinica de adolescentes, professora adjunta da FCM-UERJ/NESA e CEIIAS, Rio do Janeiro;
Antonia Sarah Aziz - Educadora
Claudia Lazzarotto - Instituto Zero a Seis.(O autor)
Quando se pretende falar sobre “o impacto da primeira infância na compreensão do mundo” temos que considerar o mundo adulto e o mundo da criança, a desumanidade do primeiro e a humanidade do segundo. O adulto de hoje foi criança um dia e a criança de hoje será o adulto do futuro. De onde provêm, então, a crueldade e a desumanidade da sociedade contemporânea?
A idéia de que a primeira infância é um período decisivo na formação da personalidade, do caráter e no modo de agir do adolescente e do adulto encontra sustentação em dados recolhidos nos últimos 100 anos de pesquisas científicas. De fato, os primeiros seis anos são fundamentais para a constituição da pessoa. Achados recentes da Neurociência oferecem evidências de que acontecimentos precoces de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda vida nas conexões sinápticas através de fenômenos de neuroplasticidade e biomoleculares. Todos nós construímos um mapa da realidade a partir das experiências vividas na infância. Assim, é possível, e muito mais eficiente, lançar os valores e fundamentos éticos da cidadania e da cultura de paz nesta primeira fase da vida, uma vez que a criança é dotada de uma capacidade absorvente, isto é, a criança é aquela que tudo recebe, julga com imaturidade, pouco recusa ou reage. Absorve e estrutura a personalidade do futuro adulto. É a criança que constrói seu conteúdo mental a partir do alimento social e assim acumula experiências que serão utilizadas para a construção de sua vida.
Sabemos há milênios que um adulto é resultado de sua própria natureza, das suas relações com a família e diferentes grupos sociais, com a cultura e com os valores, crenças, normas e práticas. “Educai as crianças e não será necessário castigar os homens”, dizia Pitágoras. Platão clamava pelos melhores “nutrientes” sociais e culturais a serem transmitidos aos menores. Freud demonstrava que as interações precoces envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o ambiente. Para Karl Jasper “o homem só pode chegar a seu verdadeiro ser conduzido pelo outro”. Jean Jacques Rosseau definiu o homem como um ser “feliz e bom”, determinando que os preconceitos culturais e as normas da vida social produziriam “sua crueldade e infortúnio”. Locke assegurou: “a criança tem tendência inata a desenvolver sua personalidade original sob a influência do ambiente e da aprendizagem” e Maria Montessori definiu a preparação do ambiente muito antes do ingresso da criança na escola como “chave da educação e da cultura real da pessoa desde o seu nascimento”.
Esquecemos todos esses ensinamentos? Dados práticos dizem que sim: Dos 22 milhões de crianças brasileiras de zero a seis anos, mais de 14 milhões estão fora de qualquer atendimento escolar da educação infantil ou de apoio institucional. O percentual de não-atendidos chega à quase 70%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A agência Senado informa que 13 milhões de crianças nessa mesma faixa etária, pertencentes a famílias carentes, estão fora de creches. Somos também detentores do triste recorde de termos as crianças mais estressadas do mundo. Infelizmente não temos, no Brasil, dados estatísticos oficiais confiáveis com abrangência nacional sobre a violência contra a criança e o adolescente exceto quando ocorre morte da vítima ou prisão do agressor. Temos alguns dados locais, municipais, alguns estudos - frequentemente parciais ou locais, algumas amostragens, muitas teses, mas nada de relevante com abrangência nacional, além da taxa de mortalidade por “causas externas” que inclui assassinatos, afogamentos, acidentes, inclusive a violência. Nosso sistema de registro é falho, os profissionais que atendem a estas vítimas geralmente não receberam o treinamento adequado, a notificação compulsória - apesar de existir - não é aplicada devidamente. Viceja a guerra dos números com equívocos, manipulações, uso e abuso político dos dados, enquanto ações efetivas e preventivas não são praticadas, devido à costumeira justificativa da “falta de recursos”, fatos abertamente denunciados no livro Midia & Violência. Sobre a questão da violência e abusos perpetrados contra as crianças e adolescentes e suas repercussões podemos citar indicadores indiretos como a evasão escolar, adolescentes infratores ou em abrigos, e mesmo as taxas de morbidade (número de crianças atendidas nos principais hospitais de emergência do país) são falhas. Informações devem ser buscadas em sítios oficiais do sistema de saude ou das taxas de mortalidade, via DATASUS (www.datasus.gov.br), IPEA (www.ipeadata.gov.br), IBGE (www.ibge.gov.br) ou SENASP-MJ (www.mt.gov.br/senasp).
O fenômeno da violência contra a criança no Brasil merece, por sua magnitude e ubiqüidade, especial atenção: crianças abusadas e maltratadas em todas as classes sociais e regiões, compreendendo abusos físicos, emocionais ou psicológicos, sexuais (incluindo a exploração sexual comercial), diferentes formas de negligência (omissão, abandono da familia e do Estado) e o trabalho infantil - considerados crimes perante o Estatuto da Criança e do Adolescente - tornaram-se lugar comum em nossa sociedade, banalizando a violência por meio da impunidade e da corrupção que grassam nas várias esferas governamentais. Apesar de criminosos, a maioria destes eventos não é sequer julgada ou punida. Muitas categorias de transtornos mentais têm sido, há muito tempo, associadas ao abuso, negligência e violência na infancia, principalmente os transtornos depressivos, de ansiedade, dissociativos, de personalidade, ao uso abusivo de alcool e drogas, transtornos de conduta com comportamentos transgressores, impulsivos, agressivos e violentos. Muito se escreve e discute sobre a violência física, abuso sexual, trabalho infantil e outros traumas perpetrados contra nossas crianças. Sem reduzir-lhes a importância e gravidade, falemos também das formas mais silenciosas e sutis de violência que acreditamos ser também um dos maiores responsáveis pela transmissão transgeracional da violência em nossa sociedade. Formas que todos nós poderíamos desestimular ou eliminar, se fôssemos um pouco mais ousados. Há maior violência do que transmitirmos às nossas crianças e adolescentes a cultura do consumismo atual, de proporções assustadoras e sem disfarces, que destrói valores humanos e dilapida as reservas naturais do planeta? Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica, de bens, de conhecimento e de cultura, que tem levado à exclusão progressiva de parcela significativa da população. Adicionemos a esta receita econômica a pressão consumista jamais vista na história humana e teremos pavimentado o terreno para a explosão da violência cotidiana.
A violência leva ao retrocesso, é multideterminada e tem seus fatores de risco e de proteção para a sua emergência e prevenção sobejamente conhecidos na literatura médica. A violência pouco falada começa no período pré-concepção com fetos indesejados, mal-vindos ou rejeitados, decorrentes da insuficiência de um plano nacional eficaz de planejamento familiar e controle da natalidade. Permanece nas gestações mal cuidadas, tensas e desamparadas, de partos desnecessariamente cirúrgicos, resultantes principalmente de interesses pecuniários aos quais nossa sociedade fecha os olhos. Continua na primeira infância privada dos nutrientes afetivos fundamentais para o desenvolvimento saudável do ponto de vista psíquico, social e cultural resultando em modelos corruptos, consumistas, predatórios, competitivos e de dominação que transmitimos às novas gerações.
Exigimos e desenvolvemos no Brasil infra-estrutura física como, por exemplo, pontes, viadutos, estradas, aeroportos e estádios de futebol, mas poucos se debruçam sobre o que temos feito no desenvolvimento da infra-estrutura humana que irá gerir estes primeiros recursos. Se a educação acadêmica fosse suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento - e não vai aqui qualquer bravata contra investimentos nesta área, muito ao contrário - não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, os governos tirânicos e corruptos, as “guerras cirúrgicas”, realizações de pessoas muito letradas e “educadas”. Se argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos não convencem, mostremos então razões econômicas para investir na primeira infância. O Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que um dólar investido nesta faixa etária gera economia de sete dólares em assistência social, atendimento a doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e em evasão escolar e 15 dólares por pessoa em doenças que continuam a se manifestar na vida adulta como depressões, suicídios, homicídios, abusos de drogas, sintomas físicos entre outros. Nada teremos de diferente do cenário atual se não tomarmos rumos econômicos mais humanitários conosco mesmos.
O novo cenário exige o resgate de valores essenciais à vida em sociedade, tais como a ética, amor e respeito às diferenças. Com isso será possível a promoção da convivência societária e solidária fundamentada cientificamente na resiliência e na salutogênese. A resiliência, interativa, refere-se à relativa resistência de um individuo às experiências de risco em seu ambiente na superação dos estresses e adversidades de maneira saudável. É utilizado para referir-se a pessoas de performances psicológicas boas a despeito de vivências negativas das quais esperaríamos seqüelas graves. A salutogênese designa as forças que geram saúde. Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, é o oposto da patogênese, ou seja, as influências que causam a doença. Antonovsky recomenda potencializar forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar esta “força”, pela ciência, pela chamada salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social. Eis aqui os principais antídotos da violência que nos dispomos a aplicar.
Organização não-governamental, apartidária e humanitária sem fins lucrativos, o Instituto Zero a Seis (www.zeroaseis.org) nasceu para colaborar, sempre em bases científicas, na construção de uma geração que tenha a cultura de paz e não-violência como fundamento de seu estilo de vida reunindo e disseminando conceitos e práticas para criar uma massa crítica de consciência suficiente para cuidar melhor da primeira infância. No universo de seu público-alvo estão jovens, adultos cuidadores de crianças, pais e mães, educadores, cientistas, profissionais do Direito e da Saúde - especialmente da área mental -, comunicadores, empresários, gestores públicos e privados, artistas e formadores de opinião, além de empresas e instituições.
Portanto, é preciso agir preventivamente contra esses abusos físicos, sexuais e psíquicos oferecendo à criança ritmo, atenção, bons modelos de identificação, ambiente familiar saudável e estável e constância de vínculos, dentro de constelações sociais confiáveis que estimulem o desenvolvimento, o aprendizado de valores relacionados à cultura de paz e não exclusivamente à cultura de guerra que se embasa a história de nossa sociedade direcionados ao consumo, à competição e à rivalidade. Interferir adequadamente na infância é um desafio, e os achados científicos recentes podem contribuir para a implantação de práticas e políticas relativas à primeira infância voltadas à promoção da cidadania por meio do fomento da saúde mental e social (salutogênese) e de formas de educação e cuidado da criança que contribuam para que ela possa resolver, desde cedo, de forma pacífica e não-violenta os seus conflitos e superar as adversidades da vida, lidando de maneira respeitosa e generosa com o outro e com o ambiente, e confrontando-se com a realidade de forma construtiva e inclusiva das diferenças (resiliência). De fato, os conceitos de salutogênese e resiliência podem ser relevantes para explicar porque os indivíduos conseguem triunfar mesmo em ambientes eminentemente hostis e adversos.
Seria este o discurso delirante de um humanista nefelibata? Paulo Freire em a “Pedagogia da Indignação” nos socorre e ensina que “o discurso da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da constatação da impossibilidade, mas o discurso ideológico da inviabilização do possível”. Convirjamos então na construção desta “utopia possível”.
* João Augusto Figueiró é médico e psicoterapeuta do Hospital das Clinicas da FMUSP. Trabalhou ativamente na implantação das atividades da Universidade da Paz - ONU (www.upeace.org) em São Paulo e na construção da Rede Gandhi - uma parceria do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Unesco e Associacao Palas Athena. É membro fundador, presidente e diretor científico do Instituto Zero a Seis - Primeira Infância e Cultura de Paz (www.zeroaseis.org).
Referências:
1. Mídia e Violência: Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no Brasil, Silvia Ramos e Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), Iuperj-Tec, Secretaria Especial de Direitos Humanos e União Européia, 2007 . www.ucamcesec.com.br;
2. Prevenção de abuso sexual infantil: Um enfoque interdisciplinar. Williams, L.C.A. & Araújo, E.A.C. (ORGS.). (2009). Curitiba: Editora Juruá.
3. CD - Abusos, maus tratos e proteção à Criança e ao Adolescente: CEIIAS/IESC/Laprev/ISPCAN (orgs.), Rio de Janeiro, 2009. http://www.ufscar.br/laprev/ e www.ceiias.org.br
4. Violência e saúde mental na infancia e adolescência - Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol. 14, número 2, março/abril 2009, 343-688. www.cienciaesaudecoletiva.com.br;
5. Child Victimization: Maltreatment, Bullying and Dating Violence, Prevention and Intervention, Kathleen A Kendall-Tacket, Sarah M Giacomoni (Eds.), Civic Research Institute, Kingston, NJ, 2005.
6. Adverse Childhood Experience: Straus, MA: Child Abuse and Neglect 1998, 22: 249-270 - http://www.cdc.gov/nccdphp/ace
Agradecimentos:
Dra. Lucia Williams, psicóloga e professora titular da UFSCar, LAPREV, São Carlos, SP;
Dra. Evelyn Eisenstein, médica pediatra e clinica de adolescentes, professora adjunta da FCM-UERJ/NESA e CEIIAS, Rio do Janeiro;
Antonia Sarah Aziz - Educadora
Claudia Lazzarotto - Instituto Zero a Seis.(O autor)
Hábitos de consumo: por que é tão difícil mudar?
Por Neuza Árbocz, para a Envolverde
A situação ambiental atual pede novas formas de realizar negócios, buscando construir um mundo em equilíbrio com o ritmo de renovação da Natureza. A grande questão para as indústrias e empresas é, contudo, como fazer frente ao crescimento, constante, do consumo. O primeiro "R" do "Reduzir, Re-utilizar e Reciclar" está sendo ignorado solenemente, segundo dados de mercado.
A crise que deu ao planeta um tempo de descanso, já dá sinais de enfraquecimento, tendo sido, inclusive, amenizada por medidas imediatistas, como a redução de IPI justamente para carros, um dos elementos centrais da poluição atmosférica e de stress e conflito nos grandes centros urbanos. Mercado se aquecendo, as indústrias precisam encontrar uma forma de ampliar a produção, para manter preços estáveis e evitar antigos fantasmas como o da inflação.
O vício nas datas comemorativas impulsiona ainda mais a roda do consumo, sempre em movimento. E a mais temível de todas as datas, o Natal, logo baterá a nossas portas novamente, provocando ondas de compras de todo tipo de produtos; mesmo os supérfluos, que ficam jogados em gavetas ou aqueles nada duráveis, que estragam mal começamos a usar. Mas afinal, quem quer arriscar novas formas de demonstrar afeto e carinho, sem os tradicionais presentes?
Será que alguém acredita ser possível mantermos estes costumes e diminuir, ao mesmo tempo, o impacto provocado nos ciclos naturais que sustentam nossas vidas? Provavelmente, muitos já diriam que consumir num ritmo tão constante e acelerado não faz mesmo sentido. Contudo, parar de comprar de fato é, ainda, uma atitude de poucos.
Consumo x realização pessoal
Desejamos muitas coisas das quais não precisamos. Comprar coisas chiques, exclusivas e desnecessárias seria uma forma de atender nossa vontade de nos diferenciarmos, de nos sentirmos únicos, segundo o professor e teólogo Jung Mo Sung. Sung explicou, durante uma mesa redonda no Simpósio de Sustentabilidade Planetária organizado pela Fundação Mokiti Okada, nos dias 18 e 19 de agosto em São Paulo, que há 250 anos estamos sendo condicionados a ligar nossa realização pessoal ao consumo.
Para o estudioso, todos nós temos um desejo infinito de Ser e de Ser infinitamente e isto não se preenche com objetos e compras. Mas, como não sabemos exatamente o que queremos ser, temos esta compulsão de tentar completarmos-nos com que há no exterior. Contudo, isto não nos preenche. "Não é possível possuir o infinito", ressalta. "Resolver a Sustentabilidade Planetária é definir como diminuir o sofrimento e aumentar a dignidade e a alegria de viver. Só se atinge a almejada infinitude através do amor mútuo". Para Sung, só este amor tem força bastante para inspirar que se abra mão dos desejos pessoais pelo bem do coletivo. E este amor tem que ser expresso no presente, aqui e agora.
Contudo, ele adverte que é preciso uma visão prática e não romanceada da realidade. "Amar a Natureza e mantê-la intocada é um discurso lindo, mas se torna difícil na prática. Podemos amar as plantas e os animais. Mas, precisamos comer. Aí como faz?", comenta o professor. "É natural defendermos que todos merecem uma vida com conforto. Mas se cada ser humano dos 6,5 bilhões que somos recebesse um rolo de papel higiênico branquinho por semana, que fosse; de onde tiraríamos tantas árvores para produzi-los?", questionou.
Além disto, a complexidade do dia-a-dia nos impede de abandonar certas atitudes, como por exemplo, abrir mão de transportes poluentes. Como dar conta de uma agenda cheia sem usar um carro, numa grande metrópole? Aqueles que tentam se deparam com transporte público insuficiente e, não raro, precário; falta de ciclovias e, muitas vezes, falta até de calçadas seguras para caminhar. "Outro fator que dificulta mudanças é que nos últimos 10 mil anos, grande parcela da população vive acreditando que Deus resolve a história e tudo acabará bem no final. Então, como se motivar a fazer sacrifícios agora, pensando num futuro que já se crê definido?", continuou Sung.
Somos a Vida da Terra
Uma resposta a esta contradição foi sugerida pela Monja Coen, presente na mesma mesa. A religiosa da tradição Zen Budista esclareceu que somos a vida na terra. "Por ignorância, nos percebemos separados, o que nos deixa com "cor rupto" - coração partido, em latim. Neste estado, confundimos nossas necessidades verdadeiras. Se nos víssemos como parte do todo, como realmente somos, agiríamos com gratidão por tudo que existe e nos mantém vivos. Esta gratidão construiria o equilíbrio que está faltando no uso do que a Natureza nos oferece".
Quanto à alimentação, ela relembrou o caso de um monge da mesma tradição que ao ser indagado como aceitava provocar a morte de um peixe - seu prato predileto - para comê-lo, respondeu: "Peixe está se tornando monge", referindo-se ao ciclo contínuo de transformação em que tudo está mergulhado. "O universo está em constante mudança", ressaltou a monja.
Ela destacou a importância de se cuidar de nosso efeito sobre o todo. "O primeiro ambiente de que temos que cuidar, é o nosso próprio corpo. Se partirmos dele, perceberemos que gostamos de ar puro, de água pura e de viver sem violência...". Ao despertar para nosso interior e sua conexão com o todo, podemos dar o melhor de nós, a todo o momento. "Não se trata de fazer o possível. Mas fazer o melhor, pensando em todas as formas de vida ao nosso redor. Eu acredito que somos capazes de dar uma virada e formar uma vida na Terra maravilhosa. Isto tem que começar com seres humanos bons e éticos. Aquilo que pensamos, falamos e fazemos influi e transforma o que existe. O ser humano precisa mudar no seu coração, na sua essência", defendeu Coen. "Eu acredito que somos capazes de fazer a transformação que queremos na Terra. Nosso destino depende de nosso pensamento coletivo", falou a mestra.
Depois dela, o ministro Fernando Augusto de Souza, da Igreja Messiânica, ressaltou que pesquisas já mostraram que aumentar o consumo e a renda não traz mais felicidade. Ele concorda que tudo que expressamos, seja em pensamento, fala ou ação, reflete naquilo que está acontecendo e nos faz um convite para adotarmos o 'regime do relógio do sol'.
"O que faz o relógio do sol? Ele só marca os momentos iluminados. Assim, se formos falar, escrever, produzir arte ou que quer que seja, podemos escolher nos expressar sobre momentos iluminados, momentos que nos inspiram; onde o bem, o bom e o belo se manifestam" falou Augusto, alinhado com o saber antigo que diz: aquilo em que colocamos nossa atenção é o que cresce. "Nosso desafio maior é expressar a Verdade do plano divino, neste mundo de aparência", concluiu o religioso.
* Neuza Árbocz é jornalista.
A situação ambiental atual pede novas formas de realizar negócios, buscando construir um mundo em equilíbrio com o ritmo de renovação da Natureza. A grande questão para as indústrias e empresas é, contudo, como fazer frente ao crescimento, constante, do consumo. O primeiro "R" do "Reduzir, Re-utilizar e Reciclar" está sendo ignorado solenemente, segundo dados de mercado.
A crise que deu ao planeta um tempo de descanso, já dá sinais de enfraquecimento, tendo sido, inclusive, amenizada por medidas imediatistas, como a redução de IPI justamente para carros, um dos elementos centrais da poluição atmosférica e de stress e conflito nos grandes centros urbanos. Mercado se aquecendo, as indústrias precisam encontrar uma forma de ampliar a produção, para manter preços estáveis e evitar antigos fantasmas como o da inflação.
O vício nas datas comemorativas impulsiona ainda mais a roda do consumo, sempre em movimento. E a mais temível de todas as datas, o Natal, logo baterá a nossas portas novamente, provocando ondas de compras de todo tipo de produtos; mesmo os supérfluos, que ficam jogados em gavetas ou aqueles nada duráveis, que estragam mal começamos a usar. Mas afinal, quem quer arriscar novas formas de demonstrar afeto e carinho, sem os tradicionais presentes?
Será que alguém acredita ser possível mantermos estes costumes e diminuir, ao mesmo tempo, o impacto provocado nos ciclos naturais que sustentam nossas vidas? Provavelmente, muitos já diriam que consumir num ritmo tão constante e acelerado não faz mesmo sentido. Contudo, parar de comprar de fato é, ainda, uma atitude de poucos.
Consumo x realização pessoal
Desejamos muitas coisas das quais não precisamos. Comprar coisas chiques, exclusivas e desnecessárias seria uma forma de atender nossa vontade de nos diferenciarmos, de nos sentirmos únicos, segundo o professor e teólogo Jung Mo Sung. Sung explicou, durante uma mesa redonda no Simpósio de Sustentabilidade Planetária organizado pela Fundação Mokiti Okada, nos dias 18 e 19 de agosto em São Paulo, que há 250 anos estamos sendo condicionados a ligar nossa realização pessoal ao consumo.
Para o estudioso, todos nós temos um desejo infinito de Ser e de Ser infinitamente e isto não se preenche com objetos e compras. Mas, como não sabemos exatamente o que queremos ser, temos esta compulsão de tentar completarmos-nos com que há no exterior. Contudo, isto não nos preenche. "Não é possível possuir o infinito", ressalta. "Resolver a Sustentabilidade Planetária é definir como diminuir o sofrimento e aumentar a dignidade e a alegria de viver. Só se atinge a almejada infinitude através do amor mútuo". Para Sung, só este amor tem força bastante para inspirar que se abra mão dos desejos pessoais pelo bem do coletivo. E este amor tem que ser expresso no presente, aqui e agora.
Contudo, ele adverte que é preciso uma visão prática e não romanceada da realidade. "Amar a Natureza e mantê-la intocada é um discurso lindo, mas se torna difícil na prática. Podemos amar as plantas e os animais. Mas, precisamos comer. Aí como faz?", comenta o professor. "É natural defendermos que todos merecem uma vida com conforto. Mas se cada ser humano dos 6,5 bilhões que somos recebesse um rolo de papel higiênico branquinho por semana, que fosse; de onde tiraríamos tantas árvores para produzi-los?", questionou.
Além disto, a complexidade do dia-a-dia nos impede de abandonar certas atitudes, como por exemplo, abrir mão de transportes poluentes. Como dar conta de uma agenda cheia sem usar um carro, numa grande metrópole? Aqueles que tentam se deparam com transporte público insuficiente e, não raro, precário; falta de ciclovias e, muitas vezes, falta até de calçadas seguras para caminhar. "Outro fator que dificulta mudanças é que nos últimos 10 mil anos, grande parcela da população vive acreditando que Deus resolve a história e tudo acabará bem no final. Então, como se motivar a fazer sacrifícios agora, pensando num futuro que já se crê definido?", continuou Sung.
Somos a Vida da Terra
Uma resposta a esta contradição foi sugerida pela Monja Coen, presente na mesma mesa. A religiosa da tradição Zen Budista esclareceu que somos a vida na terra. "Por ignorância, nos percebemos separados, o que nos deixa com "cor rupto" - coração partido, em latim. Neste estado, confundimos nossas necessidades verdadeiras. Se nos víssemos como parte do todo, como realmente somos, agiríamos com gratidão por tudo que existe e nos mantém vivos. Esta gratidão construiria o equilíbrio que está faltando no uso do que a Natureza nos oferece".
Quanto à alimentação, ela relembrou o caso de um monge da mesma tradição que ao ser indagado como aceitava provocar a morte de um peixe - seu prato predileto - para comê-lo, respondeu: "Peixe está se tornando monge", referindo-se ao ciclo contínuo de transformação em que tudo está mergulhado. "O universo está em constante mudança", ressaltou a monja.
Ela destacou a importância de se cuidar de nosso efeito sobre o todo. "O primeiro ambiente de que temos que cuidar, é o nosso próprio corpo. Se partirmos dele, perceberemos que gostamos de ar puro, de água pura e de viver sem violência...". Ao despertar para nosso interior e sua conexão com o todo, podemos dar o melhor de nós, a todo o momento. "Não se trata de fazer o possível. Mas fazer o melhor, pensando em todas as formas de vida ao nosso redor. Eu acredito que somos capazes de dar uma virada e formar uma vida na Terra maravilhosa. Isto tem que começar com seres humanos bons e éticos. Aquilo que pensamos, falamos e fazemos influi e transforma o que existe. O ser humano precisa mudar no seu coração, na sua essência", defendeu Coen. "Eu acredito que somos capazes de fazer a transformação que queremos na Terra. Nosso destino depende de nosso pensamento coletivo", falou a mestra.
Depois dela, o ministro Fernando Augusto de Souza, da Igreja Messiânica, ressaltou que pesquisas já mostraram que aumentar o consumo e a renda não traz mais felicidade. Ele concorda que tudo que expressamos, seja em pensamento, fala ou ação, reflete naquilo que está acontecendo e nos faz um convite para adotarmos o 'regime do relógio do sol'.
"O que faz o relógio do sol? Ele só marca os momentos iluminados. Assim, se formos falar, escrever, produzir arte ou que quer que seja, podemos escolher nos expressar sobre momentos iluminados, momentos que nos inspiram; onde o bem, o bom e o belo se manifestam" falou Augusto, alinhado com o saber antigo que diz: aquilo em que colocamos nossa atenção é o que cresce. "Nosso desafio maior é expressar a Verdade do plano divino, neste mundo de aparência", concluiu o religioso.
* Neuza Árbocz é jornalista.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
TERRAMÉRICA - O longo exílio da Terra
Por Leonardo Boff*
Rio de Janeiro, 24 de agosto (Terramérica).- Duas visões sobre a Terra se contrapõem em nosso tempo. Para uns, é matéria extensa e sem espírito, entregue ao ser humano para que possa explorá-la e expressar sua liberdade criativa conforme seu desejo. Para outros, é nosso lar, um superorganismo vivo que se autorregula, com uma comunidade vital única. Optar por uma ou outra visão tem consequências totalmente diferentes: a cooperação e o respeito, ou a agressão e a dominação.
A humanidade sempre considerou a Terra como a grande mãe que inspirava amor, veneração e respeito. Porém, desde a irrupção da ciência moderna, com René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, a partir do século XVI começou a ser considerada como objeto, “res extensa”, que pode submeter-se à intervenção humana, inclusive violenta, para extrair os benefícios de seus recursos e serviços. Era o projeto do “dominium mundi”. Criou maravilhas como as máquinas e os antibióticos, nos levou à Lua e ao espaço exterior.
Seria obscurantista não reconhecer os méritos desse desígnio. Entretanto, deve-se reconhecer também que a razão instrumental e analítica – sem complementar-se com a razão emocional, sensível e cordial, fundamental para o mundo dos valores – construiu uma máquina de morte, capaz de destruir a espécie humana mediante 25 formas diferentes, com armas nucleares, químicas e biológicas. Nossa geração é a primeira na história da antropogênesis que se transformou em uma força geofísica destrutiva.
Há uma convicção que está se generalizando: assim como está, a humanidade não pode continuar. O modo atual de produção e consumo faz de tudo uma mercadoria, inclusive as realidades mais sagradas como a vida, os órgãos e os genes. A cada ano, 3.500 espécies desaparecem da face da Terra devido às agressões sistemáticas à natureza. A roda do aquecimento global começou a girar e não pode ser detida, apenas se pode reduzir sua velocidade e minimizar seus efeitos catastróficos. Isto pode devastar muitos ecossistemas, arrastando consigo milhões de pessoas obrigadas a se deslocar ou morrer.
Portanto, temos de mudar para sobreviver. O futuro será uma promessa de vida se inaugurarmos “um novo modo sustentável de viver”, como o formulado pela Carta da Terra. É urgente mudar nosso sistema de exploração do planeta e de seus recursos e nossas formas de relações sociais, com mais inclusão, mais igualdade e sintonia com o universo. É imprescindível assumir uma ética do cuidado, do respeito, da responsabilidade, da solidariedade, da cooperação e, não em último lugar, de compaixão com os que sofrem na humanidade e na natureza.
Hoje sabemos que a Terra não possui vida somente em sua atmosfera, formando dessa forma a biosfera, mas que ela mesma é vivente e produtora de todas as expressões vitais. Os modernos a chamam Gaia, o nome mitológico grego para designar a Terra vivente. Nesse contexto crítico, deve-se voltar à concepção da Terra como mãe. Temos que unir dois polos: o mais ancestral, da Terra como mãe de nossos povos originários, com o mais contemporâneo, da nova astrofísica e biologia que vê o planeta como Gaia.
O que São Francisco de Assis contemplava em sua mística cósmica há mais de 800 anos, quando cantava o sol como Senhor e Irmão e a Terra como Mãe e Irmã e chamava todos os seres de irmãos e irmãs, hoje sabemos por uma verificação empírica da biologia genética e molecular. Todos os seres vivos, desde a bactéria que emergiu há 3,8 bilhões de anos, passando pelas grandes florestas, dos dinossauros aos cavalos, dos colibris até nós, temos o mesmo alfabeto genético.
Todos somos constituídos pelos mesmos 20 aminoácidos e as mesmas quatro bases fosfatadas (adenina, timina, citosina e guanina). Somente a combinação das letras químicas deste alfabeto com suas respectivas bases produz as diferenças da grande diversidade biológica. Portanto, todos somos irmãos e irmãs, membros da grande comunidade de vida. Assim, não há meio ambiente, mas o ambiente inteiro. Nós, os seres humanos, não estamos fora ou acima da natureza. Estamos dentro dela, como parte de sua realidade. Somos a porção consciente e inteligente da Terra. Nos últimos séculos, estivemos exilados da Terra. Temos de voltar ao nosso lar e cuidar dele porque se encontra ameaçado em seu equilíbrio e em seu futuro.
* O autor é teólogo, escritor e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Direitos exclusivos IPS.
Crédito da imagem: Fabrício Vanden Broeck
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
Rio de Janeiro, 24 de agosto (Terramérica).- Duas visões sobre a Terra se contrapõem em nosso tempo. Para uns, é matéria extensa e sem espírito, entregue ao ser humano para que possa explorá-la e expressar sua liberdade criativa conforme seu desejo. Para outros, é nosso lar, um superorganismo vivo que se autorregula, com uma comunidade vital única. Optar por uma ou outra visão tem consequências totalmente diferentes: a cooperação e o respeito, ou a agressão e a dominação.
A humanidade sempre considerou a Terra como a grande mãe que inspirava amor, veneração e respeito. Porém, desde a irrupção da ciência moderna, com René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, a partir do século XVI começou a ser considerada como objeto, “res extensa”, que pode submeter-se à intervenção humana, inclusive violenta, para extrair os benefícios de seus recursos e serviços. Era o projeto do “dominium mundi”. Criou maravilhas como as máquinas e os antibióticos, nos levou à Lua e ao espaço exterior.
Seria obscurantista não reconhecer os méritos desse desígnio. Entretanto, deve-se reconhecer também que a razão instrumental e analítica – sem complementar-se com a razão emocional, sensível e cordial, fundamental para o mundo dos valores – construiu uma máquina de morte, capaz de destruir a espécie humana mediante 25 formas diferentes, com armas nucleares, químicas e biológicas. Nossa geração é a primeira na história da antropogênesis que se transformou em uma força geofísica destrutiva.
Há uma convicção que está se generalizando: assim como está, a humanidade não pode continuar. O modo atual de produção e consumo faz de tudo uma mercadoria, inclusive as realidades mais sagradas como a vida, os órgãos e os genes. A cada ano, 3.500 espécies desaparecem da face da Terra devido às agressões sistemáticas à natureza. A roda do aquecimento global começou a girar e não pode ser detida, apenas se pode reduzir sua velocidade e minimizar seus efeitos catastróficos. Isto pode devastar muitos ecossistemas, arrastando consigo milhões de pessoas obrigadas a se deslocar ou morrer.
Portanto, temos de mudar para sobreviver. O futuro será uma promessa de vida se inaugurarmos “um novo modo sustentável de viver”, como o formulado pela Carta da Terra. É urgente mudar nosso sistema de exploração do planeta e de seus recursos e nossas formas de relações sociais, com mais inclusão, mais igualdade e sintonia com o universo. É imprescindível assumir uma ética do cuidado, do respeito, da responsabilidade, da solidariedade, da cooperação e, não em último lugar, de compaixão com os que sofrem na humanidade e na natureza.
Hoje sabemos que a Terra não possui vida somente em sua atmosfera, formando dessa forma a biosfera, mas que ela mesma é vivente e produtora de todas as expressões vitais. Os modernos a chamam Gaia, o nome mitológico grego para designar a Terra vivente. Nesse contexto crítico, deve-se voltar à concepção da Terra como mãe. Temos que unir dois polos: o mais ancestral, da Terra como mãe de nossos povos originários, com o mais contemporâneo, da nova astrofísica e biologia que vê o planeta como Gaia.
O que São Francisco de Assis contemplava em sua mística cósmica há mais de 800 anos, quando cantava o sol como Senhor e Irmão e a Terra como Mãe e Irmã e chamava todos os seres de irmãos e irmãs, hoje sabemos por uma verificação empírica da biologia genética e molecular. Todos os seres vivos, desde a bactéria que emergiu há 3,8 bilhões de anos, passando pelas grandes florestas, dos dinossauros aos cavalos, dos colibris até nós, temos o mesmo alfabeto genético.
Todos somos constituídos pelos mesmos 20 aminoácidos e as mesmas quatro bases fosfatadas (adenina, timina, citosina e guanina). Somente a combinação das letras químicas deste alfabeto com suas respectivas bases produz as diferenças da grande diversidade biológica. Portanto, todos somos irmãos e irmãs, membros da grande comunidade de vida. Assim, não há meio ambiente, mas o ambiente inteiro. Nós, os seres humanos, não estamos fora ou acima da natureza. Estamos dentro dela, como parte de sua realidade. Somos a porção consciente e inteligente da Terra. Nos últimos séculos, estivemos exilados da Terra. Temos de voltar ao nosso lar e cuidar dele porque se encontra ameaçado em seu equilíbrio e em seu futuro.
* O autor é teólogo, escritor e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Direitos exclusivos IPS.
Crédito da imagem: Fabrício Vanden Broeck
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
Marina, a mídia e os desafios que virão
Por Alberto Dines, do Observatório da Imprensa
A imprensa saudou com entusiasmo o anúncio do desligamento da senadora Marina Silva do PT e sua filiação ao Partido Verde, pelo qual deverá concorrer à presidência da República. Marina Silva é uma das raras unanimidades positivas. Num momento em que o Senado tornou-se uma Casa dos Horrores, sua trajetória pessoal e política é impecável, sua postura e compostura primam pela elegância.
Marina fala bem, escreve bem e, sobretudo, pensa bem. Tem carisma e nenhuma arrogância. Além dos atributos pessoais, o simples aparecimento de um novo nome num quadro eleitoral há muito saturado pela mesmice já é, em si, excelente notícia – cria novas expectativas, algumas incógnitas e sugere surpresas. A imprensa adora novidades e novidades na corrida presidencial abrem o leque da representatividade e da democracia.
Caso positivo?
Acontece que Marina Silva tem compromissos públicos com a causa ambiental e o desenvolvimento sustentável. Sua plataforma será majoritariamente verde, o que será muito bom para o país, para as Américas e o resto do mundo.
Então, cabe perguntar: este entusiasmo da mídia pela inflexível Marina vai continuar quando suas ousadas e justas propostas começarem a ser debatidas? A mídia saberá acolher suas bandeiras anticonsumo desenfreado com o mesmo entusiasmo com que agora recebeu uma nova candidatura feminina, a anti-Dilma?
Sabemos que a mídia adora denunciar o desmatamento acelerado da Amazônia, mas sabemos também que a mídia é avessa à punição de ruralistas, quase todos na oposição. Nossos veículos usam as cruzadas ambientais para atrair simpatias, sobretudo no leitorado mais jovem. Cada jornalão preserva como ícone um articulista antipoluidor Mas quando entrar em discussão o controle do apetite empresarial a mídia manterá o mesmo idealismo? Em caso positivo, será uma revolução.
* Comentário para o programa radiofônico do OI, 24/8/2009.
(Envolverde/Observatório da Imprensa)
A imprensa saudou com entusiasmo o anúncio do desligamento da senadora Marina Silva do PT e sua filiação ao Partido Verde, pelo qual deverá concorrer à presidência da República. Marina Silva é uma das raras unanimidades positivas. Num momento em que o Senado tornou-se uma Casa dos Horrores, sua trajetória pessoal e política é impecável, sua postura e compostura primam pela elegância.
Marina fala bem, escreve bem e, sobretudo, pensa bem. Tem carisma e nenhuma arrogância. Além dos atributos pessoais, o simples aparecimento de um novo nome num quadro eleitoral há muito saturado pela mesmice já é, em si, excelente notícia – cria novas expectativas, algumas incógnitas e sugere surpresas. A imprensa adora novidades e novidades na corrida presidencial abrem o leque da representatividade e da democracia.
Caso positivo?
Acontece que Marina Silva tem compromissos públicos com a causa ambiental e o desenvolvimento sustentável. Sua plataforma será majoritariamente verde, o que será muito bom para o país, para as Américas e o resto do mundo.
Então, cabe perguntar: este entusiasmo da mídia pela inflexível Marina vai continuar quando suas ousadas e justas propostas começarem a ser debatidas? A mídia saberá acolher suas bandeiras anticonsumo desenfreado com o mesmo entusiasmo com que agora recebeu uma nova candidatura feminina, a anti-Dilma?
Sabemos que a mídia adora denunciar o desmatamento acelerado da Amazônia, mas sabemos também que a mídia é avessa à punição de ruralistas, quase todos na oposição. Nossos veículos usam as cruzadas ambientais para atrair simpatias, sobretudo no leitorado mais jovem. Cada jornalão preserva como ícone um articulista antipoluidor Mas quando entrar em discussão o controle do apetite empresarial a mídia manterá o mesmo idealismo? Em caso positivo, será uma revolução.
* Comentário para o programa radiofônico do OI, 24/8/2009.
(Envolverde/Observatório da Imprensa)
E o corrimão da Presidente Vargas?
Em 23 de Setembro do ano passado, publiquei um post com o título acima perguntando o que foi feito com o corrimão da Presidente Vargas. O que tem esse corrimão?
Na primeira foto acima, percebam que se trata de um obelisco de inauguração da rampa onde encostavam os barcos que traziam e levavam passageiros para o interior do Estado, como para o resto do país.
A data é 1916, quase cem anos atrás, portanto. O corrimão continua quebrado.
Segundo informações da época, ele foi quebrado por um ônibus que fez uma curva deficiente. Parte do corrimão ficou caída um tempo nas escadas e depois foi recolhido pela Prefeitura. Quase um ano e nada de consertarem.
E assim Belém vai construindo as ruínas da cidade.
Esta prédio histórico vai cair
Belém, travessa Gaspar Viana com Praça da Mercês. Um prédio histórico (e tombado) teve retirado o seu telhado e espera a hora da morte.
Retirar telhados de prédios históricos que não interessam mais ao seu proprietário é o traço mais comum para burlar a lei, que limita o uso e disposição de imóveis de valor cultural expressivo, e colocar a culpa na natureza.
Contrasta em relevo nas fotos acima, um outro imóvel ao lado do condenado, que recentemente teve a sua restauração concluída com recursos, inclusive, do projeto MONUMENTA, do Ministério da Cultura.
Este prédio, como todo o conjunto que ele integra, é tombado pelo IPHAN e pelo Município de Belém. É um dos conjuntos históricos mais bonitos da cidade. Se nada for feito ele vai cair
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Oração aos amigos.
Muito obrigado porque nos criastes, ó Deus. Querendo bem uns aos outros, viveremos no vosso amor. Vós nos dais a grande alegria de encontrar nossos amigos e conversar com eles.Podemos assim repartir com os outros as coisas bonitas que temos e as dificuldades que passamos
terça-feira, 18 de agosto de 2009
O Amor
O Amor
Gal Costa
Composição: Caetano Veloso (baseado em poema de Vladimir Maiakovski)
Talvez
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não
Podemos amar na vida
Com o estrelar
Das noites inumeráveis
Ressuscita-me
Ainda
Que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando
Contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais
Existam amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra
A Terra
A Terra
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Legado da crise: qual é o melhor sonho?
Por Leonardo Boff
A crise atual está destruindo o horizonte de esperança de grande parte da humanidade, especialmente dos jovens. Há um vazio de sonhos e de causas que possam mobilizar as pessoas. Miguel d’Escoto, Presidente da Assembléia da ONU, disse recentemente na esteira de J.Stiglitz, Nobel de economia: “O legado desta crise será uma batalha de alcance global em torno de idéias, melhor dito, em torno de qual sonho será melhor para a Humanidade e para a Terra”.
Tudo geralmente começa de baixo, de algo que parece insignificante mas que está na direção certa e que carrega as potencialidades do novo. Foram estas idéias que me vieram à mente ao participar do 12.Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base em Porto Velho, Rondônia, em meados de julho.
Lá estavam mais de três mil pessoas, representantes das cerca de cem mil comunidades, vindas de todos os cantos do Brasil. Durante três anos, mediante bons subsídios, se preparam, estudando os problemas ecológicos e sociais da Amazônia. O tema foi assim formulado:”Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia”.
Participei de grupos e das plenárias. Fiquei extasiado com nivel de consciência acerca das questões ecológicas locais e globais, do aquecimento global e da tragédia que pode advir sobre toda a humanidade, caso não mudarmos nosso modo de ser. O que mais os preocupava era o impacto dos grandes projetos previstos para a Amazônia: mais de 50 hidrelétricas, mineradoras, siderurgias e a abertura de estradas. Indignação causava o avanço do agronegócio e da pecuária sobre a floresta amazônica e sobre o cerrado.
Curiosamente, davam-se conta de que tais macroprojetos estão dentro da lógica do modelo de crescimento, atrasado, que se impõe de cima para baixo, sem dialogar com as populações locais, indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e outros. Este resistem, fecham estradas, cercam as obras para obrigar os diretores a dialogar com eles. Mas sabem que tais projetos se farão sem qualquer outra consideração. Mas eles querem mostrar que se pode fazer de outro jeito e até de buscar alternativas menos agressoras da natureza.
Foram analisados em detalhe os cinco gritos que irrompem da Amazônia: o grito dos povos originários, obrigados a transladar-se e a perder as suas terras, tradições e culturas; o grito da terra, grilada e devastada pela ganância de lucro; o grito das águas, muitas delas contaminadas pelo mercúrio dos garimpos, matando peixes e tirando a subsistência dos ribeirinhos; o grito das florestas sendo derrubadas; para eles era claro: o problema não é o chão que é pobre, mas o que está em cima dele como as plantas, os animais, os milhares de insetos, em fim, a biodiversidade; a missão da Amazônia não é ser terra para soja, cana ou gado, mas para ficar de pé afim de garantir o equilíbrio dos climas mundiais, assegurar a umidade para longinguas regiões atingidas pelos “rios voadores” que saem da floresta, pois cada grande árvore lança na atmosfera por dia, cerca de 300 litros de água em forma de umidade; o grito das cidades, 40% sem água encanada e 80% sem esgoto.
Tiraram-se conclusões claras: as CEBs não devem ser apenas comunidades eclesias mas também ecológicas de base, coisa que está presente na própria sigla CEBs. importa assumir a florestania, quer dizer, como ser cidadãos na floresta preservada e apoiar os movimentos populares e partidos políticos, ligados à transformação social.
Ecoava nos quatro dias o lema africano dito pelo extraordinário bispo da floresta Dom Moacyr Grechi:”gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, quando unidos, fazem coisas extraordinárias”. E a gente das CEBs está fazendo milagres. Por aqui há caminho e um futuro seminal para a humanidade.
Deus não planta árvores, dizia o Bispo. Planta sementes. Entre elas estão as CEBs: sementes do novo.
Leonardo Boff é autor de Eclesiogênese:a reinvenção da Igreja, Record 2008
A crise atual está destruindo o horizonte de esperança de grande parte da humanidade, especialmente dos jovens. Há um vazio de sonhos e de causas que possam mobilizar as pessoas. Miguel d’Escoto, Presidente da Assembléia da ONU, disse recentemente na esteira de J.Stiglitz, Nobel de economia: “O legado desta crise será uma batalha de alcance global em torno de idéias, melhor dito, em torno de qual sonho será melhor para a Humanidade e para a Terra”.
Tudo geralmente começa de baixo, de algo que parece insignificante mas que está na direção certa e que carrega as potencialidades do novo. Foram estas idéias que me vieram à mente ao participar do 12.Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base em Porto Velho, Rondônia, em meados de julho.
Lá estavam mais de três mil pessoas, representantes das cerca de cem mil comunidades, vindas de todos os cantos do Brasil. Durante três anos, mediante bons subsídios, se preparam, estudando os problemas ecológicos e sociais da Amazônia. O tema foi assim formulado:”Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia”.
Participei de grupos e das plenárias. Fiquei extasiado com nivel de consciência acerca das questões ecológicas locais e globais, do aquecimento global e da tragédia que pode advir sobre toda a humanidade, caso não mudarmos nosso modo de ser. O que mais os preocupava era o impacto dos grandes projetos previstos para a Amazônia: mais de 50 hidrelétricas, mineradoras, siderurgias e a abertura de estradas. Indignação causava o avanço do agronegócio e da pecuária sobre a floresta amazônica e sobre o cerrado.
Curiosamente, davam-se conta de que tais macroprojetos estão dentro da lógica do modelo de crescimento, atrasado, que se impõe de cima para baixo, sem dialogar com as populações locais, indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e outros. Este resistem, fecham estradas, cercam as obras para obrigar os diretores a dialogar com eles. Mas sabem que tais projetos se farão sem qualquer outra consideração. Mas eles querem mostrar que se pode fazer de outro jeito e até de buscar alternativas menos agressoras da natureza.
Foram analisados em detalhe os cinco gritos que irrompem da Amazônia: o grito dos povos originários, obrigados a transladar-se e a perder as suas terras, tradições e culturas; o grito da terra, grilada e devastada pela ganância de lucro; o grito das águas, muitas delas contaminadas pelo mercúrio dos garimpos, matando peixes e tirando a subsistência dos ribeirinhos; o grito das florestas sendo derrubadas; para eles era claro: o problema não é o chão que é pobre, mas o que está em cima dele como as plantas, os animais, os milhares de insetos, em fim, a biodiversidade; a missão da Amazônia não é ser terra para soja, cana ou gado, mas para ficar de pé afim de garantir o equilíbrio dos climas mundiais, assegurar a umidade para longinguas regiões atingidas pelos “rios voadores” que saem da floresta, pois cada grande árvore lança na atmosfera por dia, cerca de 300 litros de água em forma de umidade; o grito das cidades, 40% sem água encanada e 80% sem esgoto.
Tiraram-se conclusões claras: as CEBs não devem ser apenas comunidades eclesias mas também ecológicas de base, coisa que está presente na própria sigla CEBs. importa assumir a florestania, quer dizer, como ser cidadãos na floresta preservada e apoiar os movimentos populares e partidos políticos, ligados à transformação social.
Ecoava nos quatro dias o lema africano dito pelo extraordinário bispo da floresta Dom Moacyr Grechi:”gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, quando unidos, fazem coisas extraordinárias”. E a gente das CEBs está fazendo milagres. Por aqui há caminho e um futuro seminal para a humanidade.
Deus não planta árvores, dizia o Bispo. Planta sementes. Entre elas estão as CEBs: sementes do novo.
Leonardo Boff é autor de Eclesiogênese:a reinvenção da Igreja, Record 2008
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Aprender do sofrimento
Por Leonardo Boff
O sofrimento é a grande escola do aprendizado humano. Contém verdade, a frase atribuída a Hegel:”o ser humano aprende da história que não aprende nada da história, mas aprende tudo do sofrimento”. Prefiro a formulação de Santo Agostinho em suas Confissões:” o ser humano aprende do sofrimento mas muito mais do amor”.
O amor fati (o amor à realidade crua e nua) dos antigos e retomado por Freud se impõe nos dias atuais em que a humanidade se vê assolada por grave crise de sentido, subjacente à crise econômico-financeira. Devemos reaprender a amar de forma desinteressada e incondicional a Terra, todos os seres, especialmente os humanos, os que sofrem, respeitá-los em sua diferença e em suas limitações. O amor é uma força cósmica que “move o céu e as estrelas” no dizer de Dante. Só quem ama, transforma e cria.
Os grandes se reúnem, estão confusos e não sabem exatamente o que fazer. É que amam mais o dinheiro que a vida. Se amor houvesse, aprovariam o que está sendo proposto: uma “Declaração Universal do Bem Comum da Humanidade”, base para uma “Nova Ordem Global e Multilateral” contemplando toda a humanidade, a Terra incluída. Mas não. Perplexos, preferem repetir fundamentalmente, as fórmulas que não deram certo. Caberia, entretanto, perguntar: que capacidade possuem 20 governos de decidir em nome de 172? Onde estão os títulos de sua legitimidade? Apenas porque são os mais fortes?
Mesmo assim vejo que se podem tirar algumas lições, úteis para as próximas crises que estão se anunciando.
A primeira dela é que os governantes, para além de suas diferenças, podem se unir face a um perigo global. Mesmo que suas soluções não representem uma saída sustentável da crise, o fato de estarem juntos é significativo, pois dentro de pouco enfrentaremos uma crise muito pior: da insustentabilidade da Terra e dos efeitos perversos do aquecimento global. Este trará consigo a crise da água e da insegurança alimentar de milhões e milhões de pessoas. Tal situação forçará uma união dos povos e dos governos, maior do que essa dos G-20 em Londres, caso queiram sobreviver. Se grande será o perigo, maior será a chance de salvação, dizia um poeta alemão, mas desde que ocorra esta união. A solução virá somente de uma política mundial assentada na cooperação, na solidariedade, na responsabilidade global e no cuidado para com a Terra viva.
A segunda lição é que não podemos mais prolongar o fundamentalismo do mercado, o pensamento único que arrogantemente anunciava não haver alternativas à ordem vigente, como se a história tivesse sido engessada a seu favor e destruído o princípio esperança. Nem podemos mais confiar na mera razão funcional, desvinculada da razão sensível e cordial, base do mundo das excelências e dos valores infinitos (Milton Santos, nosso grande geógrafo) como o amor, a cooperação, o respeito, a justiça e outros. Desta vez, ou elaboramos uma alternativa, vale dizer, um novo paradigma civilizatório, com outro modo de produção, respeitador dos ritmos da natureza e um novo padrão de consumo solidário e frugal ou então teremos que aceitar o risco do desaparecimento de nossa espécie e de uma grave lesão da biosfera. A Terra pode continuar sem nós. Nós não podemos viver sem a Terra.
A terceira lição é constatar que a economia, feita eixo estruturador de toda a vida social, se torna hostil à vida e ao desenvolvimento integral dos povos. Ela deve ser reconduzida à sua verdadeira natureza, a de garantir a base material para a vida e para a sociedade.
Vivemos tempos de grandes decisões que representam rupturas instauradores do novo. Bem notava Keynes:”a dificuldade não estriba tanto na formulação de novas idéias mas no sacudir as velhas”. As velhas se desmoralizaram. Só nos resta confiar nas novas. Nelas está um futuro melhor.
Leonardo Boff é autor de “Ecologia, Mundialização e Espiritualidade” pela Record, Rio de Janeiro.
O sofrimento é a grande escola do aprendizado humano. Contém verdade, a frase atribuída a Hegel:”o ser humano aprende da história que não aprende nada da história, mas aprende tudo do sofrimento”. Prefiro a formulação de Santo Agostinho em suas Confissões:” o ser humano aprende do sofrimento mas muito mais do amor”.
O amor fati (o amor à realidade crua e nua) dos antigos e retomado por Freud se impõe nos dias atuais em que a humanidade se vê assolada por grave crise de sentido, subjacente à crise econômico-financeira. Devemos reaprender a amar de forma desinteressada e incondicional a Terra, todos os seres, especialmente os humanos, os que sofrem, respeitá-los em sua diferença e em suas limitações. O amor é uma força cósmica que “move o céu e as estrelas” no dizer de Dante. Só quem ama, transforma e cria.
Os grandes se reúnem, estão confusos e não sabem exatamente o que fazer. É que amam mais o dinheiro que a vida. Se amor houvesse, aprovariam o que está sendo proposto: uma “Declaração Universal do Bem Comum da Humanidade”, base para uma “Nova Ordem Global e Multilateral” contemplando toda a humanidade, a Terra incluída. Mas não. Perplexos, preferem repetir fundamentalmente, as fórmulas que não deram certo. Caberia, entretanto, perguntar: que capacidade possuem 20 governos de decidir em nome de 172? Onde estão os títulos de sua legitimidade? Apenas porque são os mais fortes?
Mesmo assim vejo que se podem tirar algumas lições, úteis para as próximas crises que estão se anunciando.
A primeira dela é que os governantes, para além de suas diferenças, podem se unir face a um perigo global. Mesmo que suas soluções não representem uma saída sustentável da crise, o fato de estarem juntos é significativo, pois dentro de pouco enfrentaremos uma crise muito pior: da insustentabilidade da Terra e dos efeitos perversos do aquecimento global. Este trará consigo a crise da água e da insegurança alimentar de milhões e milhões de pessoas. Tal situação forçará uma união dos povos e dos governos, maior do que essa dos G-20 em Londres, caso queiram sobreviver. Se grande será o perigo, maior será a chance de salvação, dizia um poeta alemão, mas desde que ocorra esta união. A solução virá somente de uma política mundial assentada na cooperação, na solidariedade, na responsabilidade global e no cuidado para com a Terra viva.
A segunda lição é que não podemos mais prolongar o fundamentalismo do mercado, o pensamento único que arrogantemente anunciava não haver alternativas à ordem vigente, como se a história tivesse sido engessada a seu favor e destruído o princípio esperança. Nem podemos mais confiar na mera razão funcional, desvinculada da razão sensível e cordial, base do mundo das excelências e dos valores infinitos (Milton Santos, nosso grande geógrafo) como o amor, a cooperação, o respeito, a justiça e outros. Desta vez, ou elaboramos uma alternativa, vale dizer, um novo paradigma civilizatório, com outro modo de produção, respeitador dos ritmos da natureza e um novo padrão de consumo solidário e frugal ou então teremos que aceitar o risco do desaparecimento de nossa espécie e de uma grave lesão da biosfera. A Terra pode continuar sem nós. Nós não podemos viver sem a Terra.
A terceira lição é constatar que a economia, feita eixo estruturador de toda a vida social, se torna hostil à vida e ao desenvolvimento integral dos povos. Ela deve ser reconduzida à sua verdadeira natureza, a de garantir a base material para a vida e para a sociedade.
Vivemos tempos de grandes decisões que representam rupturas instauradores do novo. Bem notava Keynes:”a dificuldade não estriba tanto na formulação de novas idéias mas no sacudir as velhas”. As velhas se desmoralizaram. Só nos resta confiar nas novas. Nelas está um futuro melhor.
Leonardo Boff é autor de “Ecologia, Mundialização e Espiritualidade” pela Record, Rio de Janeiro.
Complexo de Lear - Marina Silva (Folha de São Paulo - 03/08/2009)
DURANTE CURSO de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.
Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar.
Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.
Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.
O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder.
Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.
Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.
Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.
O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.
Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade.
Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar.
Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.
Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.
O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder.
Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.
Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.
Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.
O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.
Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade.
quinta-feira, 30 de julho de 2009
Anatomia do atraso
Belém tem uma certa resistência a crescer com civilidade.
Eu e um de meus irmãos brincamos que não conhecemos uma cidade pelo número de Shopping Centers que possui, mas pelos leitos de UTI, posto que isso demonstra a preocupação com a saúde em estado mais grave da população.
Mas, ainda que Belém tenha UTI's razoavelmente instaladas, ainda tem muitos ranços do provincianismo.
Um deles é a liberação de profissionais da saúde em época de natal, ano novo e também...de férias de julho.
Chega-me a notícia que amanhã, 31 de julho de 2009, do século XXI, não haverá expediente no serviço de quimioterapia do Hospital Ophir Loyola, referência em câncer para o Pará por conta do veraneio de julho.
Crescer? para onde?
Eu e um de meus irmãos brincamos que não conhecemos uma cidade pelo número de Shopping Centers que possui, mas pelos leitos de UTI, posto que isso demonstra a preocupação com a saúde em estado mais grave da população.
Mas, ainda que Belém tenha UTI's razoavelmente instaladas, ainda tem muitos ranços do provincianismo.
Um deles é a liberação de profissionais da saúde em época de natal, ano novo e também...de férias de julho.
Chega-me a notícia que amanhã, 31 de julho de 2009, do século XXI, não haverá expediente no serviço de quimioterapia do Hospital Ophir Loyola, referência em câncer para o Pará por conta do veraneio de julho.
Crescer? para onde?
Cidades Menores
Belém é uma cidade sui generis nas férias escolares.
Neste período, muitas pessoas simplesmente se mudam da cidade, "morando" um mês, quinze ou dez dias nos balneários e em outros municípios.
Estima-se que mais de 500 mil, dos 1 milhão e meio de habitantes de Belém se movam daqui.
O resultado: ruas com trânsito calmo, menos barulho, mais tranquilidade. Poderia dizer também menos produção de lixo, violência etc, mas fiquemos nos primeiros.
Há muito venho expondo aqui no blog a necessidade de reorganização das cidades brasileiras, baseada sobretudo na melhor distribuição dos centros comerciais, escolas, pólos de moradia, melhor distribuição e acesso de transporte público. E ainda que entenda que o fato de que as escolas estejam em recesso, o que facilita muito a mobilidade do transporte, o que salta aos olhos como conclusão do evento férias é que as cidades precisam ficar menores.
Também aqui no espaço tenho dado grande importância ao controle da natalidade e planejamento familiar como mecanismo de urbanificação da cidade entendido este termo como um procedimento racional de correção dos distúrbios causados pelo crescimento e origem das cidades, sendo estes de cunho social, econômico, político, ambiental, cultural,etc.O termo urbanificação foi cunhado por Gaston Bardet, para designar a aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que a urbanização é o mal, a urbanificação é o remédio" (cf. "Direito Urbanístico Brasileiro", Ed. Malheiros, São Paulo, 2.ª edição, 1995, pág. 21).
É evidente que transferir pessoas de uma cidade para outra, coordenadamente, é tarefa quase impossível, ainda que isso aconteça de forma espontânea, como é o caso da população do Maranhão, que invade Belém e o Pará em busca de oportunidades. O único exemplo conhecido foi do ex-prefeito de SP, Jânio Quadros, que pagava passagens para migrantes voltarem para seus Estados natais, sobretudo o nordeste.
Tornar as cidades, sobretudo capitais e metrópoles, mais humanas e habitáveis é tarefa que ainda a ser vencida.
Neste período, muitas pessoas simplesmente se mudam da cidade, "morando" um mês, quinze ou dez dias nos balneários e em outros municípios.
Estima-se que mais de 500 mil, dos 1 milhão e meio de habitantes de Belém se movam daqui.
O resultado: ruas com trânsito calmo, menos barulho, mais tranquilidade. Poderia dizer também menos produção de lixo, violência etc, mas fiquemos nos primeiros.
Há muito venho expondo aqui no blog a necessidade de reorganização das cidades brasileiras, baseada sobretudo na melhor distribuição dos centros comerciais, escolas, pólos de moradia, melhor distribuição e acesso de transporte público. E ainda que entenda que o fato de que as escolas estejam em recesso, o que facilita muito a mobilidade do transporte, o que salta aos olhos como conclusão do evento férias é que as cidades precisam ficar menores.
Também aqui no espaço tenho dado grande importância ao controle da natalidade e planejamento familiar como mecanismo de urbanificação da cidade entendido este termo como um procedimento racional de correção dos distúrbios causados pelo crescimento e origem das cidades, sendo estes de cunho social, econômico, político, ambiental, cultural,etc.O termo urbanificação foi cunhado por Gaston Bardet, para designar a aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que a urbanização é o mal, a urbanificação é o remédio" (cf. "Direito Urbanístico Brasileiro", Ed. Malheiros, São Paulo, 2.ª edição, 1995, pág. 21).
É evidente que transferir pessoas de uma cidade para outra, coordenadamente, é tarefa quase impossível, ainda que isso aconteça de forma espontânea, como é o caso da população do Maranhão, que invade Belém e o Pará em busca de oportunidades. O único exemplo conhecido foi do ex-prefeito de SP, Jânio Quadros, que pagava passagens para migrantes voltarem para seus Estados natais, sobretudo o nordeste.
Tornar as cidades, sobretudo capitais e metrópoles, mais humanas e habitáveis é tarefa que ainda a ser vencida.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Tá nascendo.....
Há nove meses, depois de uma tempestade, apareceu um sol louro na minha vida. Essa moça aí da foto. A Ana Carolina, a Carol, como disse um amigo meu, apareceu com uma nova proposta e me fez rever as idéias de levar uma vida alone by my self.
Nove meses...Parece estar nascendo uma nova história de amor...
Mussum Forévis....
29 de julho de 1994 - 29 de julho de 2009
É muito tempo sem a alegria do Mussum. Para mim, junto com o Zacarias, os melhores trapalhões.
Saudades do forévis, cacildis, da Mangueira, do tempo que tudo isso representou.
terça-feira, 28 de julho de 2009
NO LIMITE...
Lemos e vemos nos jornais impressos e televisivos, uma nova onda de protestos, agora dos chamados FRETADOS, ônibus alugados por grupos de pessoas para apanhá-los e deixá-los em pontos pré-definidos.
Mais um caso de solução estatal bem depois da distorção criada.
As cidades tem crescido, via-de-regra, sem planejamento. E o poder público é quase sempre responsável pelas distorções criadas a partir de sua incúria.
Os centros comerciais e de trabalho não são distribuídos harmonicamente pela cidade, muito pelo contrário.
Normalmente, um centro comercial consolidado como os de Rio e São Paulo são pressionados cada vez mais por mais pessoas trabalhando no local porque prédios antigos que comportavam menos gente e salas são substituídos por grandes estruturas de andares e salas, sem a correspondente contrapartida de estacionamento, só para dar um exemplo.
E as distorções começam. As pessoas tem que trabalhar e não tem opção de transporte coletivo ou o transporte é deficiente, ou ainda as linhas não contemplam de forma isonômica a todos os usuários. Nascem as Vans, motos-táxis e, como vemos, os FRETADOS.
Aí o trânsito engarrafa, o comércio começa a perder dinheiro, as empresas tem problemas com os atrasos dos funcionários, as associações comerciais e empresariais reclamam para a prefeitura, a prefeitura tenta resolver e o picadeiro está armado.
armado, inclusive, por aqueles que não querem mais paradas de FRETADOS na frente de suas casas e prédios.
São Paulo talvez seja o melhor exemplo de cidade que queira sobreviver ao caos e insiste em não prever a mobilidade humana, acolhendo mais e mais pessoas de outros estados e cidades, numa luta inglória e de resultado previsível.
Ela não será o único exemplo. Cidades bem, mas bem menores que São Paulo, como Belém, por exemplo, já começam a viver o problema do caos urbano do transporte porque não consegue dar conta de oferecer oportunidade de meios de locomoção, nem se organizar, planejando-se, suficientemente bem para dar paz aos moradores.
Creio que se a Rede Globo, ao invés de ficar criando ambientes artificiais de programas como JOGO DURO e NO LIMITE, criasse um programa que simplesmente teriam pessoas que enfrentassem o dia-a-dia urbano, o resultado seria bem melhor....
Mais um caso de solução estatal bem depois da distorção criada.
As cidades tem crescido, via-de-regra, sem planejamento. E o poder público é quase sempre responsável pelas distorções criadas a partir de sua incúria.
Os centros comerciais e de trabalho não são distribuídos harmonicamente pela cidade, muito pelo contrário.
Normalmente, um centro comercial consolidado como os de Rio e São Paulo são pressionados cada vez mais por mais pessoas trabalhando no local porque prédios antigos que comportavam menos gente e salas são substituídos por grandes estruturas de andares e salas, sem a correspondente contrapartida de estacionamento, só para dar um exemplo.
E as distorções começam. As pessoas tem que trabalhar e não tem opção de transporte coletivo ou o transporte é deficiente, ou ainda as linhas não contemplam de forma isonômica a todos os usuários. Nascem as Vans, motos-táxis e, como vemos, os FRETADOS.
Aí o trânsito engarrafa, o comércio começa a perder dinheiro, as empresas tem problemas com os atrasos dos funcionários, as associações comerciais e empresariais reclamam para a prefeitura, a prefeitura tenta resolver e o picadeiro está armado.
armado, inclusive, por aqueles que não querem mais paradas de FRETADOS na frente de suas casas e prédios.
São Paulo talvez seja o melhor exemplo de cidade que queira sobreviver ao caos e insiste em não prever a mobilidade humana, acolhendo mais e mais pessoas de outros estados e cidades, numa luta inglória e de resultado previsível.
Ela não será o único exemplo. Cidades bem, mas bem menores que São Paulo, como Belém, por exemplo, já começam a viver o problema do caos urbano do transporte porque não consegue dar conta de oferecer oportunidade de meios de locomoção, nem se organizar, planejando-se, suficientemente bem para dar paz aos moradores.
Creio que se a Rede Globo, ao invés de ficar criando ambientes artificiais de programas como JOGO DURO e NO LIMITE, criasse um programa que simplesmente teriam pessoas que enfrentassem o dia-a-dia urbano, o resultado seria bem melhor....
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Um blogueiro inconstante...
Faz quase um mês que não escrevo no blog ou não reproduzo matérias, como era de meu feitio.
Não posso atribuir ao tempo, já que o meu trabalho me faz continuar a observar o cotidiano nacional.
Também adoro observar o cotidiano local, sobretudo o da minha cidade.
Nesse mês que quase se vai, pessoas se foram e me emocionaram.
A morte, aliás, já não escolhe perfil de personalidade(será que um dia escolheu?).
Antes se dizia que os estressados e irriquietos seriam mais propensos a receber a visita da maldita senhora, mas agora não há limites para ela. Pelo menos no quesito morte morrida.
De morte matada ou morte acidentada, falemos em outra hora.
Coração, AVC ou câncer, pessoas jovens estão indo.
Duas em particular me chamaram a atenção José Franco e Juvêncio Arruda.
Zé Franco no mesmo dia que Michael Jackson, morreu depois de visitar e confraternizar com seu pai, que fazia mais um aniversário, bem depois dos 70 anos. Trabalhando, a morte o levou pelo coração.
Pessoa das mais cordiais que já conheci, gostava de malhar, receber, ser amigo, papear...Cuidava-se para envelhecer com sua Adriana e seus filhos. Nada, a maldita da morte o levou.
Juvêncio, que passou 54 anos nesta terra, sociólogo, a quem não conhecia, estreou como blogueiro há pouco mais de um ano e logo se tornou referência como se jornalista fosse. Aliás, um exemplo de quem, mesmo não tendo diploma, sabe comunicar.
Segundo disseram, um câncer de rim o levou em menos de um Mês desde diagnóstico.
Por que isso está acontecendo?
Por que tantos canceres? Por que tantas mortes súbitas?
Será que já experimentamos o resultado do que comemos e o modelo de vida que nos infligem?
É só meio-ambiente ou é o trabalho também?
Só fazer yôga adianta?
De passamento em passamento vou me tornando um blogueiro inconstante....
Não posso atribuir ao tempo, já que o meu trabalho me faz continuar a observar o cotidiano nacional.
Também adoro observar o cotidiano local, sobretudo o da minha cidade.
Nesse mês que quase se vai, pessoas se foram e me emocionaram.
A morte, aliás, já não escolhe perfil de personalidade(será que um dia escolheu?).
Antes se dizia que os estressados e irriquietos seriam mais propensos a receber a visita da maldita senhora, mas agora não há limites para ela. Pelo menos no quesito morte morrida.
De morte matada ou morte acidentada, falemos em outra hora.
Coração, AVC ou câncer, pessoas jovens estão indo.
Duas em particular me chamaram a atenção José Franco e Juvêncio Arruda.
Zé Franco no mesmo dia que Michael Jackson, morreu depois de visitar e confraternizar com seu pai, que fazia mais um aniversário, bem depois dos 70 anos. Trabalhando, a morte o levou pelo coração.
Pessoa das mais cordiais que já conheci, gostava de malhar, receber, ser amigo, papear...Cuidava-se para envelhecer com sua Adriana e seus filhos. Nada, a maldita da morte o levou.
Juvêncio, que passou 54 anos nesta terra, sociólogo, a quem não conhecia, estreou como blogueiro há pouco mais de um ano e logo se tornou referência como se jornalista fosse. Aliás, um exemplo de quem, mesmo não tendo diploma, sabe comunicar.
Segundo disseram, um câncer de rim o levou em menos de um Mês desde diagnóstico.
Por que isso está acontecendo?
Por que tantos canceres? Por que tantas mortes súbitas?
Será que já experimentamos o resultado do que comemos e o modelo de vida que nos infligem?
É só meio-ambiente ou é o trabalho também?
Só fazer yôga adianta?
De passamento em passamento vou me tornando um blogueiro inconstante....
Assinar:
Postagens (Atom)