segunda-feira, 3 de março de 2014
E lá se vão 10 anos...
Foi numa segunda-feira, após um domingo de melhora que quase todos os netos a visitaram que, como ela mesma diria, a "maldita" a levou de nós.
Foi-se a doçura, até mesmo quando ralhava, foi-se o exemplo presente para nós e para toda a família. Ela era uma mulher à frente de seu tempo. Trabalhou desde mocinha, formou-se quando já tinha seus cinco filhos nascidos e desta sua iniciativa, amigas e parentes também resolveram estudar e ter um nível superior.
Era puro amor, puro serviço, alma bondosa e justa.
Sou testemunha daquele dito que diz que os filhos nunca mais são os mesmos quando os pais se vão.
Mas, sou testemunha também do ciclo da vida que nos renova e nos torna feliz, mesmo faltando peças insubstituíveis e inesquecíveis na nossa vida.
Talvez seja exatamente esse o segredo. Para quem vive o amor e no amor as vidas não se acabam. A presença, na ausência, com todas as lembranças e ensinamentos positivos, é mais forte do que a saudade. De todo o choro de toda a tristeza, renasce a alegria.
Socorro-me do poeta Gonzaguinha para me dizer hoje uma pessoa feliz, ao lado da minha Carol O' de Almeida, da pequena, alegre, carinhosa e fofa Ana Laura, que ela certamente amaria como amou todos os netos que conheceu, e feliz mesmo longe dos meus nem tão pequenos João Pedro O'de Almeida e Ana Ana Luisa O de Almeida:
"É um carinho guardado no cofre
De um coração que voou
É um afeto deixado nas veias
De um coração que ficou
É a certeza da eterna presença
Da vida que foi
Da vida que vai
É a saudade da boa
Feliz, cantar
Que foi, foi, foi
Foi bom e pra sempre será
Mais, mais, mais
Maravilhosamente amar"
Começar de Novo - Ricardo Melo
Folha de São Paulo, 03.03.2014
Admissão pelo presidente do STF de que penas foram elevadas artificialmente aumenta irregularidades
Se o Supremo Tribunal Federal pretende recuperar sua respeitabilidade, só há uma saída: refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado mensalão petista. A admissão, pelo presidente do STF, de que penas foram aumentadas artificialmente em prejuízo dos réus fez transbordar o copo de irregularidades da Ação Penal 470.
Relembrando algumas: a obrigatoriedade de foro privilegiado para acusados com direito a percorrer várias instâncias da Justiça; a adoção do princípio de que todos são culpados até prova em contrário, cerne da teoria do "domínio do fato"; o fatiamento de sentenças conforme conveniências da relatoria. E, talvez a mais espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações.
A jabuticaba jurídica tem nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470.
Não é um documento qualquer. Por intermédio dos 78 volumes do inquérito 2474, repleto de laudos oficiais e baseado em investigações da Polícia Federal, réus poderiam rebater argumentos decisivos para sua condenação.
A negativa do acesso ao inquérito foi justificada da seguinte forma: "razões de ordem prática demonstram que a manutenção, nos presente autos, das diligências relativas à continuidade das investigações [...], em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, pode gerar confusão e ser prejudicial ao regular desenvolvimento das investigações." O autor do despacho, de outubro de 2006, foi ele mesmo, Joaquim Barbosa.
Imagine a situação: o sujeito é acusado de homicídio, o julgamento do réu começa e, durante os trabalhos da corte, antes mesmo de qualquer decisão do júri, a suposta vítima aparece vivinha da silva. "Ah, mas outra investigação afirma que ele estava morto", argumenta o promotor. "Isto vai criar confusão". O julgamento continua. O vivo respira, mas nos autos está morto. E o réu, que não matou ninguém, é condenado por assassinato.
O paralelo parece absurdo, mas absurdo é o que fez o STF. A existência do inquérito 2474 tornou-se pública em 2012, em reportagem desta Folha sobre o caso de um executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos.
A conexão com a AP 470 era evidente, pois focava o mesmo Visanet apontado como irrigador do mensalão. O processo havia sido aberto seis anos antes, em 2006, portanto em tempo mais do que hábil para ser examinado.
Nenhum desses fatos é propriamente novidade. Eles ressurgiram em janeiro deste ano, quando o ministro Ricardo Lewandovski liberou a papelada aos advogados de Henrique Pizzolato. Estranhamente, ou convenientemente, o assunto passou quase despercebido.
É hora de acender a luz. O comportamento ao mesmo tempo espalhafatoso e indecoroso do presidente do STF tende a concentrar as atenções no desfecho da AP 470. Neste momento, por razões diversas, pode ser confortável jogar nas costas de Joaquim Barbosa o ônus, ou o bônus, do julgamento. É claro que seu papel é inapagável, mas ele tem razão ao lembrar que o fundamental foi decidido em plenário.
No final das contas, há gente condenada e presa num processo que tem tudo para ser contestado. O país continua sem saber realmente se houve e, se houve, o que foi realmente o chamado mensalão.
Conformar-se, ou não, com o veredicto da inexistência de formação de quadrilha é muito pouco diante das excentricidades jurídicas, para dizer o menos, que cercaram o julgamento e têm orientado a execução das penas.
Embora desperte curiosidade justificada, o que menos importa é o futuro de Barbosa. Quem está na berlinda é o STF como um todo: importa saber se o país possui uma instância jurídica com credibilidade para fazer valer suas decisões.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
A mais longa viagem: rumo ao próprio coração - Leonardo Boff
Observava o grande conhecedor dos meandros da psiqué humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o Todo.
Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las.
Indo diretamente ao assuto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento.
Mais que idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida.
O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos, surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e inteligente, Todos nós esamos vinculados a esta tradição primeva.
O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco em Lampedusa face aos imigrados africanos criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadeer e de chorar.
Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se começou resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50).
Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passa a vida, a Humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar a inteligência emoconal sem o que não construíremos uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor.
Um dado entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psiqué humana. Partindo de Aristótles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura( chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher, Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo.
O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido tambem pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano.
O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.
Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito.
Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As Confissões testemunha com comovido sentimento:
Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei.Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não respousar em ti (livro X, n.27).
Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigíla. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso humano e divino.
Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes 2002.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Pelo Direito de usar meu O'
Nasci em uma família cujas origens ainda não conseguimos esclarecer: seria francesa? seria portuguesa?
Pelo menos um historiador paraense diz que a família O' de Almeida é originária de Salvador, Bahia.
O fato é que crescemos tendo que esclarecer e explicar o O' de nosso nome composto O'de Almeida.
Outro dia descobrimos um ramo da família com uma escrita diferente: eles são "do O'de Almeida", com raízes em Belém. Estaríamos nós do ramo de Antônio O' de Almeida a grafar incorretamente o nome?
Isto será trabalho para quando o tempo deste seja o mesmo do lazer.
Aliás, em Belém, a família O' de Almeida registra o nome de duas vias e uma praça: a Rua O' de Almeida, em homenagem a Antônio O'de Almeida, não o pai, mas seu filho, que foi intendente (prefeito) de Belém. A sua irmã Teodósia se casou com Lauro Sodré, duas vezes governador do Pará e várias senador. Os filhos de Lauro Sodré fundaram o Botafogo Football Club, mas não ficaram conhecidos pelos seus nomes O'de Almeida, mas pelo Sodré. Aliás, em quase todos os registros históricos no Rio, onde moraram, e do Botafogo relacionados à Emmanuel e Benjamin(o Mimi, grande artilheiro) se intitulam "de Almeida Sodré" e não "O'de Almeida Sodré". A passagem Vereador Emanoel O'de Almeida e a praça Emanoel O'de Almeida são em homenagem a meu pai (1930-1996), fotógrafo, jornalista e vereador (de 1976 a 1996).
Mas, voltando ao assunto, desde que me entendi por gente percebi que temos problemas com o O'. Parece incrível, mas o O' é como se fosse invisível ou uma grande oportunidade para as pessoas demonstrarem como são atenciosas e espertas para perceberem que o O' é uma abreviação. Então, tomem a me chamar de Mauro de Almeida, ou Mauro Oliveira de Almeida. Chegam até a dizer Mauro "O' de Oliveira" (é muito perspicaz o ser humano). Alguns primos resolveram capitular, simplesmente excluíram o O' da sua vida. Mas, eu não.
Como hoje em dia sou um homem público, em qualquer evento que me chamam para falar ou palestrar, 99% das vezes meu O' é excluído. Vai daí que começo sempre lembrando que a única herança que meu pai me deixou foi meu nome e que por isso tenho o dever de lutar por minha própria existência. Normalmente, isso serve para quebrar o gelo na minha fala, já que as pessoas recebem como uma coisa engraçada. Mas, elas não sabem o que é passar décadas corrigindo o nome. Tentei ver se a numerologia me socorria, quem sabe mudando a estrutura, o nome se tornasse até mais forte. Nada. Forte mesmo é o O' de Almeida, numerologicamente falando.
O pior é que, agora, na ditadura digital, o apóstrofo (sim, reconheço que essa parte é difícil, afinal o apóstrofo, segundo o Houaiss, é um sinal diacrítico freq. em forma de vírgula voltada para a esquerda, mas tb. reto, que, alceado a um nível superior ao das letras minúsculas, serve para indicar a supressão de letra(s) e som(ns) - como, p.ex., mãe-d'água, Vozes d'África etc.- não é o que podemos chamar de uma coisa comum e também não parece estar cumprindo a sua função de acepção suprimindo alguma parte do nome que viria depois) não é reconhecido como um caractere válido. Ou seja, já era meu O' na identidade, carteira funcional, título de eleitor, passaporte. Mas, não me rendo.
Fico pensando naquelas pessoas que tem nomes bem mais complicados, como meu amigo Stoessel, ou o Wandenkolk Pasteur, deputado federal pelo Pará (como será que ele pede voto para o interiorano humilde?).
Mas, tal qual a Scarlett O'Hara (olha o apóstrofo aí de novo) e suas frases de efeito em "E o vento levou", enquanto vida tiver "jamais passarei fome outra vez". Bem, isso espero também, mas "jamais deixarei de lutar pelo direito de usar o meu O'", pois "amanhã será outro dia" e certamente terei que lutar pela sua existência, pois, uma coisa é certa, sem meu O' eu não sou ninguém.
A transfiguração na morte - Leonardo Boff
O Dia dos Mortos, 2 de novembro, é sempre ocasião para pensarmos na morte. Trata-se de um tema existencial. Não se pode falar da morte de uma maneira exterior a nós mesmos, porque todos nós somos acompanhados por esta realidade que, segundo Freud, é a mais difícil de ser digerida pelo aparelho psíquico humano. Especialmente nossa cultura procura afastá-la, o mais possível, do horizonte, pois ela nega todo seu projeto assentado sobre a vida material e seu desfrute etsi mors non daretur, como se ela não existisse.
No entando, o sentido que damos à morte é o sentido que nós damos à vida. Se decidimos que a vida se resume entre o nascimento e a morte, e esta detém a última palavra, então a morte ganha um sentido, diria, trágico, porque com ela tudo termina no pó cósmico. Mas se interpretarmos a morte como uma invenção da vida, como parte da vida, então não a morte mas a vida constitui a grande interrogação.
Em termos evolutivos, sabemos que, atingido certo grau elevado de complexidade, ela irrompe como um imperativo cósmico, no dizer do Prêmio Nobel de Biologia Christian de Duve, que escreveu uma das mais brilhantes biografias da vida sob o título Poeira vital (1984). Mas ele mesmo assevera: podemos descrever as condições de seu surgimento, mas não podemos definir o que ela seja. Na minha percepção, a vida não é nem temporal, nem material, nem espiritual. A vida é simplesmente eterna. Ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte. Transformamo-nos pela morte, pois ela representa a porta de ingresso no mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo mas só a eternidade.
Consintam-me testemunhar duas experiências pessoais de morte, bem diversas da visão dramática que a nossa cultura nos legou. Venho da cultura espiritual franciscana. Nos meus quase 30 anos de frade, pude vivenciar a morte como São Francisco a vivenciou.
A primeira experiência era aquela que, como frades, fazíamos toda sexta-feira, às sete e meia da noite: “o exercício da boa morte”. Deitávamo-nos na cama, com hábito e tudo. Cada um se colocava diante de Deus e fazia um balanço de toda a sua vida, regredindo até onde a memória pudesse alcançar. Colocávamos tudo, à luz de Deus e aí, tranquilamente, refletíamos sobre o porquê da vida e o porquê dos zigue-zagues deste mundo. No final, alguém recitava em voz alta no corredor o famoso salmo 50, o Miserere, no qual o rei Davi suplicava a Deus o perdão de seus pecados. E também se proclamavam as consoladoras palavras da epístola de São João: “Se o teu coração te acusa, saiba que Deus é maior do que o teu coração”.
Éramos, assim, educados para uma entrega total, um encontro face a face com a morte diante de Deus. Era um entregar-se confiante, como quem se sabe na palma da mão de Deus. Depois, íamos alegremente para a recreação tomar algum refresco, jogar xadrez ou simplesmente conversar. Esse exercício tinha como efeito um sentimento de grande libertação. A morte era vista como a irmã que nos abria a porta para a Casa do Pai.
A outra experiência diz respeito ao dia da morte e do sepultamento de algum confrade. Quando morria alguém, fazia-se festa no convento, com recreação à noite com comes e bebes. O mesmo ocorria depois de seu sepultamento. Todos se reuniam e celebravam a passagem, a páscoa e o natal, o vere dies natalis (o verdadeiro dia do nascimento) do falecido. Pensava-se: ele na vida foi, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de nascer em Deus. Por isso havia festa no céu e na terra. Esse rito é sagrado e celebrado em todos os conventos franciscanos.
O frade que deixou este mundo entrava na comunhão dos santos, está vivo, não é um ausente, apenas um invisível. Há celebração mais digna da morte do que esta inventada por São Francisco de Assis, que chamava a todos os seres de irmãos e irmãs e também a morte de irmã?
A percepção da morte é outra. As pessoas são induzidas a conviver com a morte, não como uma bruxa que vem e arrebata a vida mas como a irmã que vem abrir a porta para um nível mais alto de vida em Deus.
Cada cultura tem a sua interpretação da morte. Estive há tempos entre osmapuches,no sul da Patagônia argentina, falando com os lomkos, os sábios da tribo. Eles têm bem outra compreensão da morte. A morte significa passar para o outro lado, para o lado onde estão os anciãos. Não é abandonar a vida, é deixar seu lado visível para entrar no lado invisível e conviver com os anciãos. De lá acompanham as famílias, os entes queridos e outros próximos, iluminando-os. A morte não tem nenhuma dramaticidade. Ela pertence à vida, é o seu outro lado.
Poderíamos passar por várias outras culturas para conhecer-lhes o sentido da vida e da morte. Mas fiquemos no nosso tempo moderno. Há um filósofo que trabalhou positivamente o tema da morte: Martin Heidegger. Em sua analítica existencial afirma que a condição humana, em grau zero, é a de que somos um ser no mundo, este não como lugar geográfico mas como o conjunto das relações que nos permitem produzir e reproduzir a vida. A condition humaine é estar no mundo com os outros, cheios de cuidados e abertos para a morte. A morte é vista não como uma tragédia e, sim, como a derradeira expressão da liberdade humana, enquanto último ato de entrega. Essa entrega sem resto abre a possibilidade para um mergulho total na realidade e no Ser. É uma espécie de volta ao seio de onde viemos como entes mas que buscam o Ser. E finalmente, ao morrer, somos acolhidos pelo Ser. E aí já não falamos porque não precisamos mais de palavras. É o puro viver pela alegria de viver e de ser no Ser. Para o homem religioso, este Ser não é outro senão o Supremo Ser, o Deus vivo que nos dá a plenitude da vida.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro 'Vida para além da morte' ( Vozes, 2012)
O júbilo e a hipocrisia - Mauro Santayana
O ministro Joaquim Barbosa escolheu a data de 15 de novembro, Proclamação da República, para ordenar a prisão e a transferência para Brasília, em pleno feriado, e sem carta de sentença, de parte dos réus condenados pela Ação-470.
O simples fato de saber que os “mensaleiros” — como foram batizados pela grande mídia — viajaram algemados e em silêncio; que estão presos em regime fechado, tomando banho com água gelada, e comendo de marmita, encheu de regozijo parte das redes sociais.
É notável o ensandecido júbilo, principalmente nos sites e portais frequentados por certa minoria que se intitula genericamente de “classe média”, e se abriga nas colunas de comentários da mídia mais conservadora.
Parte da população, a menos informada, é levada a comemorar a prisão do grupo detido neste fim de semana como se tratasse de uma verdadeira Queda da Bastilha, com a ida de “políticos” “corruptos” para a cadeia.
Outros, menos ingênuos e mais solertes, saboreiam seu ódio e tripudiam sobre cidadãos condenados sob as sombras do “domínio do fato”, quando sabem muito bem que dezenas, centenas de corruptos de outros matizes políticos — alguns comprovadamente envolvidos com crimes cometidos anos antes desse processo — continuam soltos, sem nenhuma perspectiva de julgamento.
Esses, para enganar os incautos, já anteveem a queda da democracia. Propõem a formação de grupos de “caça aos corruptos”, desde que esses tenham alguma ligação com o governo. Sugerem que cidadãos se armem. Apelam para intervenções golpistas. Torcem para que os presos de ontem, que estejam doentes morram, ou que sejam agredidos por outros presos.
Ora, não existe justiça sem isonomia. Já que não se pode exigir equilíbrio e isenção de quem vive de manipular a opinião pública, espera-se que a própria população se manifeste, para que, na pior das hipóteses, o furor condenatório e punitivo de certos juízes caia, com a sutileza de um raio lançado por Zeus, sobre a cabeça de outros pecadores.
Há casos dez, vinte vezes maiores, que precisam ser investigados e julgados. Escândalos que envolvem inclusive a justiça de outros países, milionários e recentes ou que se arrastam desde a época da aprovação do instituto da reeleição — sempre ao abrigo de gavetas amigas, ou sucessivas manobras e protelações, destinadas a distorcer o tempo e a razão, como se estivéssemos em órbita de um buraco negro.
Seria bom, no entanto, que tudo isso se fizesse garantindo o mais amplo direito de defesa, no exclusivo interesse da Justiça. Ou a justiça se faz de forma equânime, desinteressada, equilibrada, justa, digna e contida, ou não pode ser chamada de Justiça. .
domingo, 15 de setembro de 2013
Impactos de um suicídio - JAIRO BOUER
O ESTADÃO - 15/09
A morte do baixista Champignon, de 35 anos, no início da última semana, trouxe o tema do suicídio novamente para o noticiário. Além do triste desfecho, alguns aspectos dessa história chamam a atenção. Em primeiro lugar, não parece mera coincidência o fato de três músicos que se conheciam - e eram praticamente de uma mesma geração - terem morrido de forma dramática em um intervalo tão curto de tempo. Outro ponto importante: essas mortes todas acontecem entre ídolos dos jovens, faixa da população em que está havendo um crescente número de casos de suicídio.
A primeira reação de muitos fãs ao saber, logo nas primeiras horas da madrugada da última segunda-feira, da morte de Champignon deve ter sido a incredulidade por mais um músico dessa turma morrer. Após a overdose de cocaína que matou Chorão (parceiro na banda Charlie Brown Jr. e grande amigo do baixista), em março, e o suicídio de Peu Sousa (ex-parceiro na banda Nove Mil Anjos), que foi encontrado enforcado em sua casa na Bahia, em maio, a morte do baixista podia parecer parte de uma sequência trágica de eventos.
De fato, alguns estudos apontam uma possibilidade maior de suicídio em pessoas que já conviveram com esse drama. Assim, filhos e parceiros de pessoas que cometeram suicídio estariam mais expostos ao risco. É como se "vivenciar" intensamente a perda de alguém próximo por essa causa tornasse o suicídio uma possibilidade mais concreta na vida das pessoas.
Na maioria das vezes, existe algum transtorno emocional ou psiquiátrico por trás do planejamento da própria morte. A depressão aparece como uma das principais causas de suicídio em todo o mundo. Talvez a experiência (perda de alguém de forma trágica) e os sintomas depressivos não estejam assim tão dissociados. Assim, quem conviveu com o suicídio pode carregar a depressão por anos a fio e, em algum momento da vida, por algum tipo de "descompensação", acaba tendo potencializado o risco de se matar. Pelas notícias publicadas na última semana, talvez cobranças e críticas que vinham sendo feitas pelos fãs ao músico por assumir o posto de vocalista em uma nova banda, ou, ainda, dívidas financeiras, teriam sido a gota d'água. Mas, nesse ponto, essas considerações são mera especulação.
Outro aspecto que chama a atenção é que o músico era jovem e fazia sucesso entre os mais novos. Artigos publicados na revista científica Lancet, em 2012, chamavam a atenção para o suicídio como um problema crescente de saúde pública entre os jovens. Dados da publicação apontavam o suicídio como segunda principal causa de mortes entre jovens em todo o mundo. Entre as garotas de 15 a 19 anos, foi considerado a principal causa de morte. Entre os garotos dessa faixa de idade, foi a terceira causa, atrás dos acidentes de trânsito e dos homicídios. Ainda de acordo com a Lancet, de 1980 a 2000, a taxa de suicídio aumentou cerca de dez vezes entre os jovens: de 0,4 para 4 em cada 100 mil pessoas. No Brasil, estima-se de 20 a 25 suicídios por dia, e se supõe que o número de tentativas seja 20 vezes superior ao de mortes.
Identificar fatores de risco talvez seja o primeiro ponto importante para a redução das tentativas de suicídio. Alterações agudas de comportamento, sintomas depressivos, quadros psiquiátricos graves, história recente de perdas trágicas, grandes problemas familiares, inconformismo com o fim de relacionamento amoroso, grande desmoralização por questões financeiras ou sociais e problemas crônicos de saúde são alguns desses fatores.
Alguns trabalhos recentes mostram que, em tempos em que tudo acontece nas redes sociais, declarações e publicações em páginas pessoais poderiam dar pistas para amigos e parentes das intenções de alguém que enfrenta sérias dificuldades. Estar atento a esses sinais poderia ajudar a evitar suicídios.
sexta-feira, 22 de março de 2013
Caminhos para enfrentar o Frankenstein urbano - WASHINGTON NOVAES
O ESTADÃO - 22/03
Muitos leitores deste jornal devem ter tomado um susto na quinta-feira da semana passada ao lerem a mais do que contundente entrevista do respeitado arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, dono de um currículo admirável, que inclui, entre muitas criações, a participação no projeto de construção de Brasília, a rede de hospitais Sarah e, com Darcy Ribeiro, a criação do conceito dos centros de educação integral, os Cieps, para manter o aluno na escola durante todo o dia, fornecer alimentação, assistência médica e psicológica, esporte e muito mais - além de um sistema de ensino exemplar.
Lelé foi conciso e contundente na entrevista. "Cidades como São Paulo são um grande Frankenstein", disse ele, apontando o "descontrole geral", a arquitetura "correndo atrás da imagem", com os arquitetos "a reboque dessas pressões".
"Todo mundo quer morar onde convém e o mercado se aproveita disso para fazer um adensamento descomprometido com a cidade." Em sua opinião, "não há mais como planejar", até porque "as cidades estão se desintegrando" e "não oferecem soluções". A seu ver, "o arquiteto deveria ser o (médico) clínico da cidade; no entanto, não tem uma visão global e as obras vivem um Frankenstein. A cidade é o maior Frankenstein de todos".
Assustador o diagnóstico. Mas pode piorar se se lembrar que só nos dois primeiros meses do ano mais de 500 mil veículos saíram das fábricas para as ruas (Estado, 7/3) e que o Brasil já é o quarto maior mercado mundial. Que os espaços públicos urbanos, já congestionados ao extremo, só tendem a piorar com o agravamento das inundações - mais frequentes, mais intensas, mais duradouras. Cada enchente causa prejuízo de até R$ 1 milhão e há 749 pontos de alagamento já catalogados, diz estudo do professor Eduardo A. Haddad, da Faculdade de Economia da USP (Agência Fapesp, 15/3). Chuvas com mais de 80 milímetros eram raras; mas só na primeira década deste século foram nove. A Prefeitura promete quatro novos piscinões e enterrar a fiação dos semáforos para que não se apaguem durante os temporais (10/3). Mas como vai fazer, se toda a fiação elétrica em São Paulo chega a 38 mil quilômetros (só há uns 3 mil km enterrados em Higienópolis e imediações) e o custo seria de R$ 100 bilhões? Nova York tem mais de 150 mil km sepultados; a Alemanha, em três anos, passou a parte enterrada de 4,3% para 75%; a Grã-Bretanha, de 1,4% para 81% (Folha de S.Paulo, 24/2).
Não são as únicas soluções urbanas. No pedágio urbano de Londres o motorista tem de pagar mais de R$ 30 por dia para trafegar na área sob controle, e com isso a circulação ali caiu 25% e aumentou a velocidade dos ônibus. A prefeitura vai instalar 1.300 pontos de recarga de veículos elétricos e reduzir em 40% a emissão, por eles, de carbono. Já há muitos pontos de carros compartilhados, onde o usuário paga por hora e divide o custo com quem quiser. Mas quem quer ouvir falar dessas coisas por aqui e se arriscar a perder os votos dos adversários da proposta - como foi o caso da necessária taxa do lixo, depois renegada pelos criadores e revogada pelos sucessores -, embora seja a fórmula que tem dado certo em toda a Europa?
Que diria, então, de soluções mais radicais, como a da cidade de Drachten, na Holanda, que, com seus 50 mil habitantes, instituiu o espaço urbano sem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meio-fio, lombadas elétricas, etc., segundo Antenor Pinheiro, da ANTT (O Popular, 10/3). Um espaço compartilhado por pessoas, automóveis, ônibus e motos em baixa velocidade, bicicletas. Em absoluta paz e harmonia, sem acidentes desde 2003, quando foi implantado, apenas com discretos sinais que indicam a mão de direção. Uma ideia do engenheiro Hans Moderman, falecido em 2008, mas que pode ser replicada numa parte do espaço urbano, se for o caso, em qualquer cidade.
Na verdade, caminhos há. Basta consultar a legislação vigente para verificar o quanto o poder constituído deixa de cumprir - gerando e agravando dramas nas cidades. Um bom exemplo é o da legislação em vigor para novos empreendimentos, obrigatória para todos os Poderes e empreendedores, que, se executada, evitaria ou teria evitado a maior parte dos problemas. É o caso, por exemplo, das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Qualquer administrador público, assim como os Tribunais de Contas da União, dos Estados ou dos municípios, deveria começar seu exame dos processos que lhe chegam à mão pela Resolução n.º 1, de 23/1/1986, que contém uma norma que impediria a execução da maioria das propostas. É o inciso I do artigo 5.º, que obriga o estudo do empreendimento a "contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto". E isso vale para projetos urbanísticos com mais de cem hectares, aterros, rodovias, ferrovias, portos e terminais, oleodutos, gasodutos, emissários de esgotos, projetos agropecuários também com mais de cem hectares. Outras resoluções do Conama incluem o controle de ruídos de indústrias ou veículos e o controle da poluição do ar (que está no centro de uma polêmica paulistana).
Tão importante quanto é o artigo 6.ª dessa Resolução 1/86, que torna obrigatórias "as análises dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas (...), discriminando: os impactos positivos e negativos, diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais". Esta última disposição, por exemplo, quantos benefícios poderia trazer a uma cidade, ajudando a evitar impactos cada vez mais danosos para seus habitantes?
O professor Filgueiras Lima tem razão em suas visões. Mas há como começar a enfrentar o Frankenstein se de fato quisermos.
quarta-feira, 20 de março de 2013
O novo bispo de Roma - Luiz Alberto Gómez de Souza
Quero fazer uma breve nota, depois de ler e ouvir tantas declarações contraditórias. Há uma avalanche de textos e reflexões sobre Francisco e uma estranha superexposição sua na mídia. A sempre lúcida Ivone Gebara denunciou esse grande número de informações da sociedade do espetáculo, que podem ter “o poder de amortizar as mentes e de impedir que perguntas críticas aflorem”. Também muitas das leituras fazem uma análise puramente sociológica ou política, e tratam do fato como fariam com um novo presidente da república ou o novo rei da Holanda (com sua rainha, também argentina!).
Muitos dizem, com intenções ideológicas evidentes, que Francisco, falando dos pobres, retira a bandeira dos governos progressistas da América Latina. Uma grande tolice. Ao contrário, se coloca na mesma onda para exigir justiça social. Essa centralidade do pobre vem lá de trás, da Igreja primitiva e, mais recentemente, do “pacto das catacumbas” de muitos bispos ao final do Vaticano II, em 1965, pedindo uma Igreja despojada e pobre, e foi fortemente afirmada nas reuniões dos bispos da América Latina em Medellín (1968) e em Puebla (1979), com a declaração da “opção preferencial pelos pobres”.
Está, além disso, no centro da teologia da libertação das últimas décadas. Dizem que Francisco não seria favorável a essa teologia, mas ele propõe o que está no coração dela e que vem sendo afirmado nas pastorais sociais e nas comunidades eclesiais de base. É uma alegria ver o novo bispo de Roma confirmar o que tem sido o centro das comunidades cristãs católicas latino-americanas mais evangélicas, comprometidas e espirituais. Os pobres evangelizam, foi dito em Puebla.
O outro ponto que quero realçar é que Francisco se apresentou fundamentalmente como bispo de Roma e, nessa condição, ele é o primeiro entre os bispos, com quem terá de estar em profunda comunhão. Ele era, até então, cardeal arcebispo de Buenos Aires. Agora é antes de tudo, e isso basta, bispo de Roma. O título de cardeal é uma criação histórica de alguns séculos, para aqueles bispos (e mesmo sacerdotes e leigos no passado) que se ligam a Roma, teoricamente como auxiliares, onde tem uma igreja da qual são titulares. São chamados indevidamente de “príncipes da Igreja”, numa acepção de cunho monárquico, anacrônica e duvidosa, sem real sentido evangélico.
Arcebispo é também uma criação para indicar que são bispos à frente de uma província eclesiástica, estrutura agora praticamente em desuso. Essas denominações históricas em nada acrescentam às funções pastorais dos bispos. Oxalá os títulos de cardeal e de arcebispo venham um dia a desaparecer e o colégio dos cardeais possa ser substituído por um colégio dos presidentes das conferências nacionais dos bispos, como a nossa CNBB. Seria uma maneira de limpar a Igreja de títulos nobiliárquicos ou atos administrativos já caducando, e de afirmar a colegialidade real prevista pelo Vaticano II. Além disso, prefiro chamar Francisco de bispo de Roma antes que de papa. Assim, podemos ver melhor os bispos do mundo unidos a seu irmão maior, o bispo romano. É mais eclesial e de uma tradição mais evangélica.
Na Igreja primitiva, o bispo de Roma era o ‘primus inter pares’ entre os patriarcas de Constantinopla, Antioquia e Alexandria. Poderia no futuro, quem sabe, não custa esperar, estar em comunhão com Igrejas articuladas no Conselho Ecumênico das Igrejas. Mas antes dessa praticamente impossível comunhão ecumênica nos nossos dias, intenção provável de João XXIII ao convocar o Vaticano II (depois posta de lado pelos entraves concretos), no momento Francisco é basicamente o bispo primeiro da Igreja Católica Romana e com isso tem o magistério universal em sua Igreja.
Vejo muitas perplexidades em caros amigos da Argentina, diante das posições do provincial dos jesuítas Bergoglio; pelo menos, há que reconhecer seu pesado silêncio durante a ditadura argentina (como o de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial). Há também a insistência de que tem posições conservadoras diante de problemas até agora congelados, como o celibato obrigatório, o uso dos contraceptivos, a moral sexual em geral, a união de homossexuais, o segundo casamento, a ordenação de mulheres e muitos outros. Lembremos que Roncalli, patriarca de Veneza, era um bispo considerado conservador, mas, como João XXIII, transformou profundamente a Igreja e quis pô-la em dia com os “sinais dos tempos” (aggiornamento).
O evangelho deste domingo, o quinto da quaresma, tem uma afirmação de Paulo em sua carta aos Filipenses (3, 13): “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta... que Deus me chama a receber em Cristo Jesus”. Agora não temos mais Bergoglio e seu passado, mas Francisco e seu futuro.
Esperemos os sinais e as decisões de Francisco. Já mostrou humildade e despojamento em suas primeiras manifestações públicas, no seguimento de Francisco de Assis. Ele foi eleito possivelmente a partir de uma crítica à cúria romana. Mas, também, transformar a cúria não basta, ainda que isso seja inadiável. Não são suficientes apenas atos administrativos. Oxalá inaugure um grande diálogo, sem medos nem autocensuras, sobre problemas como os citados acima e muitos outros, alguns já assinalados em 1999 por Carlo Martini, bispo de Milão, outro jesuíta, que tínhamos sonhado como bispo de Roma.
Agora Francisco, quem sabe, não custa esperar, poderia abrir uma reflexão coletiva com tantos temas “disputados”, com liberdade e sem censura, para que os anseios da base da Igreja se exprimam e subam até futuros atos do magistério. Francisco e seus irmãos bispos poderiam recolher desejos que são ditos em voz baixa por leigas e leigos, religiosas e religiosos, teólogas e teólogos, sacerdotes e inclusive outros bispos, para fazer um discernimento – palavra cara aos jesuítas - e para que possamos viver na Igreja, como disse o bom João XXIII, “uma inesperada primavera”. Para realizar isso, não se deveriam reduzir a análise e as práticas a posições ideológicas, ou a classificações próprias de movimentos políticos, porém explicitar uma postura valente de profunda religiosidade e com uma espiritualidade renovada e aberta aos anseios e às carências do mundo de hoje.
*Luiz Alberto Gómez de Souza é diretor do programa de estudos avançados em ciência e religião da Universidade Cândido Mendes.
É possível um exercício do papado diferente - Leonardo Boff
Quarta-Feira, 20 de Março de 2013
A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome.
A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas.
Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas.
Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma. Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade.
A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa. Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos, como a dos jovens a se realizar no Rio.
Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma.
Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas? O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina?
A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação? Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
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