sexta-feira, 22 de março de 2013

Caminhos para enfrentar o Frankenstein urbano - WASHINGTON NOVAES

O ESTADÃO - 22/03 Muitos leitores deste jornal devem ter tomado um susto na quinta-feira da semana passada ao lerem a mais do que contundente entrevista do respeitado arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, dono de um currículo admirável, que inclui, entre muitas criações, a participação no projeto de construção de Brasília, a rede de hospitais Sarah e, com Darcy Ribeiro, a criação do conceito dos centros de educação integral, os Cieps, para manter o aluno na escola durante todo o dia, fornecer alimentação, assistência médica e psicológica, esporte e muito mais - além de um sistema de ensino exemplar. Lelé foi conciso e contundente na entrevista. "Cidades como São Paulo são um grande Frankenstein", disse ele, apontando o "descontrole geral", a arquitetura "correndo atrás da imagem", com os arquitetos "a reboque dessas pressões". "Todo mundo quer morar onde convém e o mercado se aproveita disso para fazer um adensamento descomprometido com a cidade." Em sua opinião, "não há mais como planejar", até porque "as cidades estão se desintegrando" e "não oferecem soluções". A seu ver, "o arquiteto deveria ser o (médico) clínico da cidade; no entanto, não tem uma visão global e as obras vivem um Frankenstein. A cidade é o maior Frankenstein de todos". Assustador o diagnóstico. Mas pode piorar se se lembrar que só nos dois primeiros meses do ano mais de 500 mil veículos saíram das fábricas para as ruas (Estado, 7/3) e que o Brasil já é o quarto maior mercado mundial. Que os espaços públicos urbanos, já congestionados ao extremo, só tendem a piorar com o agravamento das inundações - mais frequentes, mais intensas, mais duradouras. Cada enchente causa prejuízo de até R$ 1 milhão e há 749 pontos de alagamento já catalogados, diz estudo do professor Eduardo A. Haddad, da Faculdade de Economia da USP (Agência Fapesp, 15/3). Chuvas com mais de 80 milímetros eram raras; mas só na primeira década deste século foram nove. A Prefeitura promete quatro novos piscinões e enterrar a fiação dos semáforos para que não se apaguem durante os temporais (10/3). Mas como vai fazer, se toda a fiação elétrica em São Paulo chega a 38 mil quilômetros (só há uns 3 mil km enterrados em Higienópolis e imediações) e o custo seria de R$ 100 bilhões? Nova York tem mais de 150 mil km sepultados; a Alemanha, em três anos, passou a parte enterrada de 4,3% para 75%; a Grã-Bretanha, de 1,4% para 81% (Folha de S.Paulo, 24/2). Não são as únicas soluções urbanas. No pedágio urbano de Londres o motorista tem de pagar mais de R$ 30 por dia para trafegar na área sob controle, e com isso a circulação ali caiu 25% e aumentou a velocidade dos ônibus. A prefeitura vai instalar 1.300 pontos de recarga de veículos elétricos e reduzir em 40% a emissão, por eles, de carbono. Já há muitos pontos de carros compartilhados, onde o usuário paga por hora e divide o custo com quem quiser. Mas quem quer ouvir falar dessas coisas por aqui e se arriscar a perder os votos dos adversários da proposta - como foi o caso da necessária taxa do lixo, depois renegada pelos criadores e revogada pelos sucessores -, embora seja a fórmula que tem dado certo em toda a Europa? Que diria, então, de soluções mais radicais, como a da cidade de Drachten, na Holanda, que, com seus 50 mil habitantes, instituiu o espaço urbano sem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meio-fio, lombadas elétricas, etc., segundo Antenor Pinheiro, da ANTT (O Popular, 10/3). Um espaço compartilhado por pessoas, automóveis, ônibus e motos em baixa velocidade, bicicletas. Em absoluta paz e harmonia, sem acidentes desde 2003, quando foi implantado, apenas com discretos sinais que indicam a mão de direção. Uma ideia do engenheiro Hans Moderman, falecido em 2008, mas que pode ser replicada numa parte do espaço urbano, se for o caso, em qualquer cidade. Na verdade, caminhos há. Basta consultar a legislação vigente para verificar o quanto o poder constituído deixa de cumprir - gerando e agravando dramas nas cidades. Um bom exemplo é o da legislação em vigor para novos empreendimentos, obrigatória para todos os Poderes e empreendedores, que, se executada, evitaria ou teria evitado a maior parte dos problemas. É o caso, por exemplo, das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Qualquer administrador público, assim como os Tribunais de Contas da União, dos Estados ou dos municípios, deveria começar seu exame dos processos que lhe chegam à mão pela Resolução n.º 1, de 23/1/1986, que contém uma norma que impediria a execução da maioria das propostas. É o inciso I do artigo 5.º, que obriga o estudo do empreendimento a "contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto". E isso vale para projetos urbanísticos com mais de cem hectares, aterros, rodovias, ferrovias, portos e terminais, oleodutos, gasodutos, emissários de esgotos, projetos agropecuários também com mais de cem hectares. Outras resoluções do Conama incluem o controle de ruídos de indústrias ou veículos e o controle da poluição do ar (que está no centro de uma polêmica paulistana). Tão importante quanto é o artigo 6.ª dessa Resolução 1/86, que torna obrigatórias "as análises dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas (...), discriminando: os impactos positivos e negativos, diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais". Esta última disposição, por exemplo, quantos benefícios poderia trazer a uma cidade, ajudando a evitar impactos cada vez mais danosos para seus habitantes? O professor Filgueiras Lima tem razão em suas visões. Mas há como começar a enfrentar o Frankenstein se de fato quisermos.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O novo bispo de Roma - Luiz Alberto Gómez de Souza

Quero fazer uma breve nota, depois de ler e ouvir tantas declarações contraditórias. Há uma avalanche de textos e reflexões sobre Francisco e uma estranha superexposição sua na mídia. A sempre lúcida Ivone Gebara denunciou esse grande número de informações da sociedade do espetáculo, que podem ter “o poder de amortizar as mentes e de impedir que perguntas críticas aflorem”. Também muitas das leituras fazem uma análise puramente sociológica ou política, e tratam do fato como fariam com um novo presidente da república ou o novo rei da Holanda (com sua rainha, também argentina!). Muitos dizem, com intenções ideológicas evidentes, que Francisco, falando dos pobres, retira a bandeira dos governos progressistas da América Latina. Uma grande tolice. Ao contrário, se coloca na mesma onda para exigir justiça social. Essa centralidade do pobre vem lá de trás, da Igreja primitiva e, mais recentemente, do “pacto das catacumbas” de muitos bispos ao final do Vaticano II, em 1965, pedindo uma Igreja despojada e pobre, e foi fortemente afirmada nas reuniões dos bispos da América Latina em Medellín (1968) e em Puebla (1979), com a declaração da “opção preferencial pelos pobres”. Está, além disso, no centro da teologia da libertação das últimas décadas. Dizem que Francisco não seria favorável a essa teologia, mas ele propõe o que está no coração dela e que vem sendo afirmado nas pastorais sociais e nas comunidades eclesiais de base. É uma alegria ver o novo bispo de Roma confirmar o que tem sido o centro das comunidades cristãs católicas latino-americanas mais evangélicas, comprometidas e espirituais. Os pobres evangelizam, foi dito em Puebla. O outro ponto que quero realçar é que Francisco se apresentou fundamentalmente como bispo de Roma e, nessa condição, ele é o primeiro entre os bispos, com quem terá de estar em profunda comunhão. Ele era, até então, cardeal arcebispo de Buenos Aires. Agora é antes de tudo, e isso basta, bispo de Roma. O título de cardeal é uma criação histórica de alguns séculos, para aqueles bispos (e mesmo sacerdotes e leigos no passado) que se ligam a Roma, teoricamente como auxiliares, onde tem uma igreja da qual são titulares. São chamados indevidamente de “príncipes da Igreja”, numa acepção de cunho monárquico, anacrônica e duvidosa, sem real sentido evangélico. Arcebispo é também uma criação para indicar que são bispos à frente de uma província eclesiástica, estrutura agora praticamente em desuso. Essas denominações históricas em nada acrescentam às funções pastorais dos bispos. Oxalá os títulos de cardeal e de arcebispo venham um dia a desaparecer e o colégio dos cardeais possa ser substituído por um colégio dos presidentes das conferências nacionais dos bispos, como a nossa CNBB. Seria uma maneira de limpar a Igreja de títulos nobiliárquicos ou atos administrativos já caducando, e de afirmar a colegialidade real prevista pelo Vaticano II. Além disso, prefiro chamar Francisco de bispo de Roma antes que de papa. Assim, podemos ver melhor os bispos do mundo unidos a seu irmão maior, o bispo romano. É mais eclesial e de uma tradição mais evangélica. Na Igreja primitiva, o bispo de Roma era o ‘primus inter pares’ entre os patriarcas de Constantinopla, Antioquia e Alexandria. Poderia no futuro, quem sabe, não custa esperar, estar em comunhão com Igrejas articuladas no Conselho Ecumênico das Igrejas. Mas antes dessa praticamente impossível comunhão ecumênica nos nossos dias, intenção provável de João XXIII ao convocar o Vaticano II (depois posta de lado pelos entraves concretos), no momento Francisco é basicamente o bispo primeiro da Igreja Católica Romana e com isso tem o magistério universal em sua Igreja. Vejo muitas perplexidades em caros amigos da Argentina, diante das posições do provincial dos jesuítas Bergoglio; pelo menos, há que reconhecer seu pesado silêncio durante a ditadura argentina (como o de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial). Há também a insistência de que tem posições conservadoras diante de problemas até agora congelados, como o celibato obrigatório, o uso dos contraceptivos, a moral sexual em geral, a união de homossexuais, o segundo casamento, a ordenação de mulheres e muitos outros. Lembremos que Roncalli, patriarca de Veneza, era um bispo considerado conservador, mas, como João XXIII, transformou profundamente a Igreja e quis pô-la em dia com os “sinais dos tempos” (aggiornamento). O evangelho deste domingo, o quinto da quaresma, tem uma afirmação de Paulo em sua carta aos Filipenses (3, 13): “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta... que Deus me chama a receber em Cristo Jesus”. Agora não temos mais Bergoglio e seu passado, mas Francisco e seu futuro. Esperemos os sinais e as decisões de Francisco. Já mostrou humildade e despojamento em suas primeiras manifestações públicas, no seguimento de Francisco de Assis. Ele foi eleito possivelmente a partir de uma crítica à cúria romana. Mas, também, transformar a cúria não basta, ainda que isso seja inadiável. Não são suficientes apenas atos administrativos. Oxalá inaugure um grande diálogo, sem medos nem autocensuras, sobre problemas como os citados acima e muitos outros, alguns já assinalados em 1999 por Carlo Martini, bispo de Milão, outro jesuíta, que tínhamos sonhado como bispo de Roma. Agora Francisco, quem sabe, não custa esperar, poderia abrir uma reflexão coletiva com tantos temas “disputados”, com liberdade e sem censura, para que os anseios da base da Igreja se exprimam e subam até futuros atos do magistério. Francisco e seus irmãos bispos poderiam recolher desejos que são ditos em voz baixa por leigas e leigos, religiosas e religiosos, teólogas e teólogos, sacerdotes e inclusive outros bispos, para fazer um discernimento – palavra cara aos jesuítas - e para que possamos viver na Igreja, como disse o bom João XXIII, “uma inesperada primavera”. Para realizar isso, não se deveriam reduzir a análise e as práticas a posições ideológicas, ou a classificações próprias de movimentos políticos, porém explicitar uma postura valente de profunda religiosidade e com uma espiritualidade renovada e aberta aos anseios e às carências do mundo de hoje. *Luiz Alberto Gómez de Souza é diretor do programa de estudos avançados em ciência e religião da Universidade Cândido Mendes.

É possível um exercício do papado diferente - Leonardo Boff

Quarta-Feira, 20 de Março de 2013 A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome. A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas. Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas. Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma. Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade. A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa. Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos, como a dos jovens a se realizar no Rio. Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma. Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas? O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina? A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação? Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos. *Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

quinta-feira, 14 de março de 2013

O colapso de sua teologia: razão maior da renúncia de Bento XVI?

Nutro séria suspeita de que o fracasso e colapso do edifício teológico de Bento XVI lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa, “sentir incapacidade de exercer seu ministério”. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar. Por Leonardo Boff Leonardo Boff É sempre arriscado nomear um teólogo para a função de papa. Ele pode fazer de sua teologia particular a teologia universal da Igreja e impô-la a todo o mundo. Suspeito que esse foi o caso de Bento XVI, primeiramente enquanto cardeal, nomeado prefeito da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Inquisição) e depois papa. Tal fato não goza de legitimidade e se transforma em fonte de condenações injustas. Efetivamente, condenou mais de cem teólogos e teólogas por não se enquadrarem em sua leitura teológica da Igreja e do mundo. Razões de saúde e o sentimento de impotência face à gravidade da crise na Igreja o levaram a renunciar. Mas não só. No texto de sua renúncia dá conta da “diminuição de vigor do corpo e do espírito” e de “sua incapacidade” de enfrentar as questões que dificultavam o exercício de sua missão. Por detrás desta formulação, estimo que se oculta a razão mais profunda de sua renúncia: a percepção do colapso de sua teologia e do fracasso do modelo de Igreja que quis implementar. Uma monarquia absolutista não é tão absoluta a ponto de dobrar a inércia de envelhecidas estruturas curiais. As teses centrais de sua teologia sempre foram problemáticas para a comunidade teológica. Três delas acabaram refutadas pelos fatos: o conceito de Igreja como “pequeno mundo reconciliado”; a Cidade dos Homens só ganha valor diante de Deus passando pela mediação da Cidade de Deus; e o famoso “subsistit” que significa: só na Igreja Católica subsiste a verdadeira Igreja de Cristo; todas as demais Igrejas não podem ser designadas igrejas. Esta compreensão estreita de uma inteligência aguda mas refém de si mesma não tinha a força intrínseca suficiente e a adesão para ser implementada. Bento XVI teria reconhecido o colapso e coerentemente renunciado? Há razões para esta hipótese. O papa emérito teve em Santo Agostinho seu mestre e inspirarador, objeto aliás de algumas conversas pessoais com ele. De Agostinho assumiu a perspectiva de base, começando com sua exdrúxula teoria do pecado original (se transmite pelo ato sexual da geração). Isso faz com que toda a humanidade seja uma “massa condenada”. Mas dentro dela, Deus por Cristo, instaurou uma célula salvadora, representada pela Igreja. Ela é “um pequeno mundo reconciliado” que tem a representação (Vertretung) do resto da humanidade perdida. Não é necessário que tenha muitos membros. Bastam poucos, contanto que sejam puros e santos. Ratzinger incorporou esta visão. Completou-a com a seguinte reflexão: a Igreja é constituída por Cristo e os Doze Apóstolos. Por isso é apostólica. Ela é apenas este pequeno grupo. Desconsidera os discípulos, as mulheres e as massas que seguiam Jesus. Para ele não contam. São atingidas pela representação (Vertretung) que “o pequeno mundo reconciliado” assume. Esse modelo eclesiológico não dá conta do vasto mundo globalizado. Quis então fazer da Europa “o mundo reconciliado” para reconquistar a humanidade. Fracassou porque o projeto não foi assumido por ninguém e até posto a ridículo. A segunda tese tirada também de Santo Agostinho é sua leitura da história: o confronto entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Na Cidade de Deus está a graça e a salvação: ela é o único pedágio que dá acesso à salvação. A Cidade dos Homens é construída pelo esforço humano. Mas como já é contaminado, todo o seu humanismo e demais valores não conseguem salvar porque não passaram pela mediação da Cidade de Deus (Igreja). Por isso que ela é eivada de relativismos. Consequentemente o cardeal Ratzinger condena duramente a teologia da libertação, porque esta buscava a libertação pelos pobres mesmos, feitos sujeitos autônomos de sua história. Mas como não se articula com a Cidade de Deus e sua célula, a Igreja, é insuficiente e vã. A terceira é uma interpretação pessoal que dá do Concílio Vaticano II quando fala da Igreja de Cristo. A primeira elaboração conciliar dizia que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo. As discussões, visando o ecumenismo, substituíram o é pelo subsiste para dar lugar a que outras Igrejas cristãs, a seu modo, realizassem também a Igreja de Cristo. Essa interpretação, sustentada na minha tese doutoral, mereceu uma explícita condenação do cardeal Ratzinger no seu famoso documento Dominus Jesus (2000). Afirma que susbsiste vem de "subsistência", que só pode ser uma e se dá na Igreja Católica. As demais Igrejas possuem “somente” elementos eclesiais. Esse “somente” é um acréscimo arbitrário que fez ao texto oficial do Concílio. Tanto eu quanto outros notáveis teólogos mostramos que este sentido essencialista não existe no latim. O sentido é sempre concreto: “ganhar corpo”, “realizar-se objetivamente”. Esse era o “sensus Patrum” o sentido dos Padres conciliares. Estas três teses centrais foram refutadas pelos fatos: dentro do “pequeno mundo reconciliado” há demasiados pedófilos, até entre cardeais, e ladrões de dinheiros do Banco Vaticano. A segunda, de que a Cidade dos Homens não tem densidade salvadoradiante de Deus, labora num equívoco ao restringir a ação da Cidade de Deus apenas ao campo da Igreja. Dentro da Cidade dos Homens, se encontra também a Cidade de Deus, não sob a forma de consciência religiosa mas sob a forma de ética e de valores humanitários. O Concílio Vaticano II garantiu a autonomia das realidades terrestres (outro nome para secularização), que tem valor independentemente da Igreja. Contam para Deus. A Cidade de Deus (Igreja) se realiza pela fé explícita, pela celebração e pelos sacramentos. A Cidade dos Homens pela ética e pela política. A terceira de que somente a Igreja Católica é a única e exclusiva Igreja de Cristo e, ainda mais, que fora dela não há salvação, tese medieval ressuscitada pelo cardeal Ratzinger, foi simplesmente ignorada como ofensiva às demais Igrejas. Ao invés do “fora da Igreja não há salvação” se introduziu no discurso dos papas e dos teólogos “o universal oferecimento da salvação a todos os seres humanos e ao mundo”. Nutro séria suspeita de que tal fracasso e colapso de seu edifício teológico lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa, “sentir incapacidade de exercer seu ministério”. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar. * Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21734

segunda-feira, 4 de março de 2013

Valentões S/A - MARION STRECKER

FOLHA DE SP - 04/03 É muito mais comum encontrar alguém com coragem de falar no Twitter do que pelas ruas da cidade Algumas pessoas entenderam pelo meu último artigo que não acredito em psiquiatria. Quero desfazer essa impressão. Psiquiatria não é questão de fé. Penso que se as pessoas tomam remédio para colesterol alto ou pressão alta, por que não haveriam de tomar para "depressão alta"? Eu falava que a depressão é um dos motivos que levam as pessoas a mergulhar de cabeça nas redes sociais. O deprimido se isola, e páginas como o Facebook podem ser um bom passatempo. Quer dizer, bom ou mau. Depende. A depressão é uma doença que afeta algo em torno de 20% da população mundial ao menos uma vez na vida. Vamos olhar para os lados. A doença caracteriza-se pelo isolamento, pela autocomiseração, pela desesperança, pelo autoflagelo. Depressão não é sinônimo de tristeza. Encarar depressão como um estado de humor e achar que a pessoa pode se curar sozinha é privá-la de ajuda médica. Isso é sério. Suicídio é a pior consequência da omissão de socorro. Depressão é uma doença biológica ou comportamental. Ou ambas. Nem toda depressão traz tristeza. Depressão pode trazer irritação e ansiedade, por exemplo. As doenças psiquiátricas mais populares podem ser subdivididas de acordo com os sintomas em dois grandes grupos: neuroses ou psicoses. Depressão, ansiedade ou pânico estão no grupo das neuroses, enquanto alucinação, delírio ou paranoia estão no grupo das psicoses. Parece simples? Não é. Não há distinção clara entre casos comuns e problemas mentais severos. E sintomas de neurose e psicose podem surgir simultaneamente. Se você quer ajudar alguém ou ser ajudado, procure um médico. Isso posto, posso voltar a falar sobre o comportamento dos usuários de redes sociais. Minha impressão é que as redes sociais exacerbam certos comportamentos, inclusive psicoses. Sim, estou falando de perda de contato com a realidade. Todo o mundo pode ser valentão do outro lado da tela do computador. É muito mais comum encontrar um valentão no Twitter do que nas ruas da cidade. Fiquei boba com a reação à visita ao Brasil da dissidente e blogueira cubana Yoani Sánchez no mês passado. Na vida real, seu primeiro compromisso em solo nacional, que era a projeção de um documentário em Feira de Santana (BA), teve de ser cancelado devido a protestos. Como assim? Impede-se a projeção de um documentário por discordância ideológica? Onde estamos? Brasil? Século 21? Na internet, o mínimo que ouvi em redes sociais foi um grito retumbante: "Fora, Yoani". Pessoalmente, sei apreciar os avanços da sociedade cubana e sua importância para o mundo. Mas não compactuo com a falta de liberdade de expressão e com o cerco ao direito de ir e vir. Simples assim. Não podemos conviver com opiniões discordantes? Por que os gritos de "Fora,Yoani"? Quando perguntei isso no Twitter, os covardes se calaram. Então penso que o embate nas redes sociais está educando os cidadãos aos poucos. É um processo longuíssimo e doloroso. Mas, no embate cotidiano, alguma coisa melhor há de surgir. Ah, sim, há de surgir.